Moradores de rua, empresas e governo: um debate inusitado

Por on 09/11/2018

Em São Francisco, tida como uma das cidades mais importantes do Vale do Silício (EUA), região-berço das empresas de tecnologia mais valiosas do mundo, convivem as maiores fortunas do mundo e a miséria das ruas.  O problema dos moradores de rua sempre existiu na cidade, mas se agravou nesses últimos anos. O que fazer?

Para os padrões brasileiros, é inusitada a forma como vem sendo debatida por lá a questão dos moradores de rua. Mostro a seguir um paralelo com a realidade do Brasil.

 

O que propõe Marc Benioff, CEO da Salesforce

Benioff lidera um grupo de grandes empresários da cidade que defende uma taxação extra sobre as suas próprias empresas, ai incluídos os “bilionários” da cidade. Inusitado, não?

Ele propõe que as grandes empresas da cidade (aquelas com faturamento anual superior a U$ 50 milhões) tenham um aumento de imposto sobre a sua renda bruta anual, variando entre 0,175 a 1,5% (dependendo do setor da empresa), a ser destinado exclusivamente a atender às diferentes necessidades da população de rua. Dessa maneira estima-se levantar em torno de US$ 300 milhões por ano, a serem alocados às instituições que trabalham com a prevenção e o combate do problema, sejam elas públicas ou do terceiro setor, como as escolas, os hospitais (de doenças mentais e tratamento de drogados.), as organizações voltadas para a construção e aluguel de moradias populares, a qualificação e a inserção no mercado de trabalho. Benioff argumenta que:

  • Quem nasceu, foi criado e se tornou empreendedor bem-sucedido a partir de São Francisco, como é o meu caso, não pode ficar indiferentes a esse problema da nossa cidade. É de doer o coração quando nós andamos pelas ruas…. Ou será que estamos nos tornando insensíveis ao sofrimento do outro?
  • A solução não está em apontar o dedo para os ricos da cidade como sendo os grandes culpados por essa situação de miséria e desigualdade. Nesse momento de crise, é preciso uma solução urgente. Ao invés de nos dividirmos, entre o mundo dos negócios e o mundo das pessoas em geral, temos é que nos unir, pois somos todos responsáveis pela cidade em que vivemos. Devemos “ser Um” e estarmos todos conectados.
  • Não tenho a menor pretensão em ser político. A questão é que a nossa cidade está vivendo uma crise humanitária – e cabe a nós, grandes empresários locais, retribuir o muito que já recebemos da cidade. É uma questão de responsabilidade moral e de justiça.
  • Nós, empresas, não podemos cruzar os braços e aguardar a ação dos governos. Não se sustenta mais a alegação de que o problema dos moradores de rua é competência apenas do setor público. Também foi-se o tempo em que as empresas trabalhavam apenas para aumentar os lucros de seus acionistas; hoje o foco está em todos os seus stakeholders. E os moradores de rua são também stakeholders da empresa, ou não são? Daqui a pouco, os nossos funcionários não vão querer mais morar em São Francisco, porque o problema dos moradores de rua está incomodando às suas famílias….
  • É evidente que a cidade (como um todo) não tem tratado de forma adequada o problema dos moradores de rua. Falta dinheiro para lidar com esse grave problema social. Doações filantrópicas pontuais não resolvem. Para nós, grandes empresários da cidade, o que significa a doação média de (apenas) 0,5% do nosso faturamento anual? Muito pouco. Ao passo que pode ter um papel muito significativo na construção da solução, se todas as pessoas da cidade se envolverem na construção dessa solução, seja doando o seu tempo, talentos e recursos.

Vale o registro de que nas eleições agora dos EUA de 6 de novembro (06/11/2018), essa proposta liderada por Benioff, conhecida como Proposition C, foi aprovada em votação local por 60% dos votos. Só que para a sua implementação de fato, ainda há uma batalha legal pela frente.

 

A posição de London Breed, prefeita de São Francisco

A atual prefeita de São Francisco, London Breed, diz que certamente os defensores dessa maior taxação são bem-intencionados.  Explica que tratar a crise dos moradores de rua tem sido a prioridade de sua gestão (e com a qual ela se comprometeu em campanha), e enumera as suas muitas realizações nesse campo. Porém, ela é contrária a esse aumento de imposto.  Por que uma Prefeitura se negaria a receber mais recursos para poder ampliar o seu trabalho social, num momento tão crítico como esse? Inusitado também, não?

London Breed argumenta que:

  • Não há prestação de contas adequada – A Prefeitura (ainda) não tem auditoria dos recursos que já estão sendo aplicados com os moradores de rua. E não são poucos: esses recursos aumentaram “dramaticamente” nesses últimos anos. Também não temos uma avaliação sobre se melhoraram as condições de vida dessa população – e como. O cidadão de São Francisco precisa saber como estão sendo aplicados os impostos que eles Além do mais, esse aumento de taxação pretendido poderá gerar uma soma considerável de recursos, sem que tenha um plano detalhado sobre como deve ser a sua aplicação e prestação de contas.
  • Haverá a perda de postos de trabalho – Com essa maior taxação, “inevitavelmente” haverá a fuga de empresas de São Francisco para as outras cidades da região ou outros estados, sobretudo as do setor de manufatura, serviços e atacado. A classe média daqui não pode arcar com a perda de mais postos de trabalho.
  • Novos moradores de rua serão atraídos – Não podemos tratar esse problema de modo isolado na cidade, sem envolver os municípios vizinhos. A crise dos moradores de rua é regional e estadual. São Francisco não pode querer resolver o seu problema, simplesmente “fazendo cheques mais altos”, sob risco até de agravar a situação da cidade. É preciso atuarmos de forma integrada e coordenada, com os outros municípios vizinhos e o estado como um todo, na solução desse problema.

 

O que pensa Jack Dorsey, CEO do Twitter

Já Dorsey é um dos líderes do outro grupo das grandes empresas de São Francisco, e também do Vale do Silício como um todo, que considera que a filantropia de suas empresas tem que ter caráter global, como são os seus negócios. Esses empreendedores e suas empresas se percebem como cidadãos do mundo, sem primazia para seus locais /cidades. Inusitado para os padrões brasileiros, não?

Ele defende o papel central da Prefeitura para conduzir, de modo sustentável, a solução do problema dos moradores de rua.  Jack Dorsey diz confiar plenamente no comprometimento da Prefeita London Breed, que foi eleita justamente com a missão de “consertar” esse grave problema social da cidade.

Assim, esse grupo de grandes empreendedores vem adotando outros modelos e práticas de filantropia, que não os defendidas por Benioff, tais como:

  • Nada de ficar limitado a problemas locais imediatos. Como agentes de mudança que são, suas empresas vêm atuando em “projetos grandes”, de âmbito nacional ou global (casos da Microsoft e Facebook). Basta ver que, considerando o valor aplicado em filantropia pelas empresas do Vale do Silício em 2016, apenas 10% ficou na própria região.
  • Nada de ficar restrito a ações de caridade ou do improviso. Devem usar a linguagem de negócio: planejamento bem feito, indicadores, métricas, avaliação e cobrança de resultados. Devem atuar de modo estruturante, nas causas-raízes dos problemas (e não assistencial). E, como empresas de tecnologia que são, procurar atuar em problemas que envolvam o uso de tecnologia. Pois é onde podem ter o maior impacto possível.
  • Em se tratando de atuação local, as empresas têm preferido ter as próprias fundações ou iniciativas sociais (casos do Twitter e Dropbox) do que doar dinheiro para o setor público ou ongs locais, que vão atuar em soluções nada, ou pouco, escaláveis (como a doação de casas para moradores de rua).
  • Quando decidem colaborar com as ongs locais, as empresas têm preferido ceder horas de trabalho voluntário dos seus funcionários do que doar dinheiro.

 

Para os padrões brasileiros, quão inusitados são esses posicionamentos….

Para enfrentar a situação crítica dos moradores de rua de sua cidade, que empresário brasileiro proporia aumentar o imposto de renda de sua própria empresa?

Para enfrentar a situação crítica dos moradores de rua do seu município, que Prefeitura do Brasil rejeitaria receber recursos abundantes e sem custo, provenientes de fonte segura?

Qual empresário brasileiro iria destinar a quase totalidade (90%) dos seus recursos de filantropia para outros países, em detrimento de sua cidade/local de origem?

 

 #BRASIL-SomosTodosInsensíveis

No BRASIL estamos todos ficando insensíveis ao sério problema dos moradores de rua. Haja vista a BAIXÍSSIMA taxa de leitura e interesse dos artigos quando escrevo sobre esse tema, como foi o caso desse artigo no LinkedIn…… Nos EUA é o oposto: o problema gera indignação, debates acalorados, preocupação por encontrar solução, e atrai o interesse de midias influentes como WIRED e FORBES, como mostrei acima.

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2 Comentários
  1. Responder

    Maria Inês

    21/11/2018

    É um problema muito complexo. Doação de casas, melhorias dos programas sociais são bons! Mas creio que muitas metrópoles não têm mais como absorver tanta gente vinda do interior, a miséria só cresce. Se há melhoria das condições aos moradores de rua, outra leva chega atraída pelos benefícios, como formigas descobrem o doce. A saída é estimular o crescimento e as condições de infraestrutura, saúde, emprego e educação no campo e nas cidade menores, promovendo a volta destes cidadãos às suas cidades de origem.

  2. Maria Cecilia Prates Rodrigues
    Responder

    Maria Cecilia Prates Rodrigues

    26/11/2018

    Maria Inês, concordo plenamente com você.
    Mas as duas soluções não podem ser excludentes – têm que se somar. Precisamos tratar o (gravíssimo) problema dos moradores de rua, e também melhorar as condições de vida e trabalho nas cidades menores e no campo.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.