Filantropia com Desconfiança

Por on 15/07/2022

No Brasil, o que dificulta o fortalecimento da filantropia  é o sentimento de desconfiança que se alastra cada vez mais entre os potenciais doadores.  Desconfiança no trabalho sério e efetivo das organizações filantrópicas apoiadas.

Todo cidadão brasileiro tende a ser em si um potencial doador, na medida de suas capacidades (financeiras e/ou talentos)  e de sua generosidade.   Porém, uma forte razão que impede o florescimento desse nosso potencial doador é a existência da pilantropia, ou da “falsa filantropia”, que nos ataca por todos os lados, valendo-se da boa fé dos doadores e das mazelas sociais (dos outros).  

Vou narrar o que aconteceu comigo recentemente. Trata-se de fato real, apenas vou usar a seguir nomes fictícios.

Normalmente, quando ligam de uma instituição beneficente para (o telefone fixo da) minha casa para solicitar doação, sou firme em dizer “não”, apesar das insistências e da apelação para o sentimento de compaixão por meio de afirmativas, tais como: “de que só será essa vez, depois não vão ligar mais”, “de que essa pequena ajuda vai servir para dar o alimento para crianças que têm fome”, “de que vai dar o remédio e a cadeira de rodas para uma criança que está sofrendo (costumam até citar o nome e a idade da criança)”. Tento fechar o coração e manter o meu “não”, afirmando que também trabalho com projetos sociais e sei muito bem que doações pontuais e pequenas ajudam  muito pouco, ou praticamente nada. E explico também que tenho as organizações beneficentes com as quais eu assumi o compromisso de contribuir regularmente, todo mês.

Só que uma vez, há 5 anos, amoleci o coração e caí no “golpe” da pilantropia. Ou melhor, a voz firme do outro lado da linha e muito segura do que estava dizendo (que se diferenciava das vozes usuais do telemarketing) conseguiu me convencer para a relevância da causa  e me fez comprometer com doações (que seriam apenas) semestrais. Um mensageiro iria passar no meu bairro para recolher as doações. De fato, o mensageiro veio e deixou um recibo, até muito bem apresentável. Na ocasião nem questionei a necessidade do mensageiro (a doação poderia ser via transferência bancária ou, mais recentemente, via PIX), uma vez que muitas organizações do terceiro setor usam ainda esse método.

Nas vezes seguintes, foi sempre o mesmo interlocutor de voz firme e segura, e me impressionava (bem) por ser possuidor de uma base de dados muito organizada, pois sempre ele mencionava com quanto eu havia contribuído da vez anterior e o que eu havia dito naquela ocasião. Ele se apresentava como sendo João Macedo; dizia que falava em nome do padre Marcos e depois, com o seu falecimento, o padre Filipe o havia substituído para dar continuidade às obras sociais do Lar da Infância de X  naquela comunidade pobre de MG.

Veio a pandemia, e as ligações do João Macedo se tornaram mais frequentes, porque “como a senhora sabe (dizia ele) tá cada vez mais difícil conseguir manter a alimentação das nossas crianças, com a redução das subvenções do governo e dos demais apoios”. Daí, acabei me tornando doadora do (tal) Lar da Infância de X, inclusive até com doações esporádicas, ou seja, para além das contribuições semestrais com as quais eu havia me comprometido inicialmente. 

Não sei o porquê, mas sempre me batia uma pontada de desconfiança quando fazia essa doação. Mais de uma vez, procurei o site da  instituição na Internet, e não o encontrei (apenas o nome dela na telelistas), mas o João Macedo foi firme em explicar que o site estava em construção e que o dinheiro andava muito curto.

Por conta dessa desconfiança, passei também a ir colecionando os recibos que o mensageiro (de moto) deixava, sobretudo para controlar a periodicidade e os valores doados. Cada recibo, em si, parece demonstrar a seriedade da instituição. Lembro que, uma vez, até questionei o João Macedo porque o endereço havia mudado, os telefones…. mas ele me respondeu, com a sua segurança de sempre, que com o falecimento do padre Marcos, alguns ajustes estavam sendo feitos na instituição. Eu me dei por satisfeita, em certa medida porque o valor doado era relativamente pequeno, e vida que segue até uma próxima ligação…. 

Na última ligação que recebi do João Macedo (com a sua voz sempre conhecida e característica) nessa semana, concordei de pronto que o mensageiro poderia ir, como de costume, para apanhar o cheque da contribuição. Porém, ao desligar o telefone, novamente me bateu a desconfiança…  Então, me debrucei na comparação das informações que constavam nos vários recibos que me foram sendo entregues….  constatei que elas foram se modificando ao longo do tempo, tais como cnpj, endereço, telefones, site (que no início até existia) e carimbos. Fiz quase um trabalho de detetive!

Logo em seguida e já com o grau de desconfiança aumentado, decidi fazer, dessa vez, a pesquisa na internet pelo nome do (sempre citado nas ligações) padre Filipe. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar o nome dele associado a “falso padre”, que “usurpou o legado  de muitos anos deixados pelo falecido padre Marcos”, “invadiu a casa paroquial e roubou todos os pertences deixados pelo padre Marcos”, “associação com criminosos”, “dono de boca em MG”, “estelionatário”, e que “vem fazendo ameaças de morte a pessoas respeitadas na comunidade local”.

A minha desconfiança estava finalmente se confirmando! De imediato, tomei o telefone e liguei de volta para o João Macedo. Só dava ocupado; possivelmente em ligação com outros crédulos doadores. Quando finalmente atendeu, disse-lhe que era para o mensageiro não ir no dia seguinte, conforme acabáramos de acertar, e que eu não iria mais contribuir para o Lar da Infância de X. Dada a minha assertividade, dessa vez ele respondeu simplesmente: “Está bem. Vou retirar o seu nome do nosso cadastro de contribuintes.”

É claro que, se fosse uma organização social séria (como eu insisti em acreditar), o tal João Macedo teria questionado o porquê dessa minha decisão tão repentina e, ao mesmo tempo, tão firme.  Com probabilidade de 98% de acerto, suponho que ele sabia muito bem qual era o principal motivo da minha deserção como doadora do Lar da Infância de X.

Concluindo o nosso caso, nesse momento em que se pretende estimular a cultura da doação no Brasil é fundamental encontrar maneiras para combater a pilantropia.  Uma possibilidade seria pensar estratégias de aproximação entre organizações filantrópicas e doadores, que sejam capazes de gerar, desde o início, sentimento de confiança e colaboração. Outra maneira seria começar a olhar com lupa sobre como funciona essa questão em países, como os EUA e Reino Unido, onde a filantropia já se encontra em estágio bem mais avançado do que no nosso. O que é feito lá para coibir essa prática nefasta, que impede o florescimento da filantropia por aqui? Será que a força da pilantropia é maior no Brasil do que nesses países?

Figura em: https://pixabay.com/cs/illustrations/d%C5%AFv%C4%9Bra-ned%C5%AFv%C4%9Bra-ulice-podepsat-4760282/

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.