Assisti recentemente ao webinar da Alliance Magazine, com o provocativo título ‘Tributação e Filantropia: parentes próximos ou completos estranhos’. Recomendo (link). O tema por si só já é polêmico, e a apresentação dos palestrantes colocou ainda mais lenha nessa fogueira. Vale aqui retomar essa reflexão a partir de alguns dos questionamentos trazidos por eles, de modo a contribuir para o desenvolvimento da filantropia e, ao mesmo tempo, para o amadurecimento das políticas públicas no Brasil. Sou defensora do fortalecimento da cultura da doação em nosso país, razão pela qual precisamos amadurecer o tratamento para essas questões polêmicas.
1 – Filantropia com incentivo fiscal agrava as desigualdades de renda?
Se a tributação progressiva (quem é mais rico paga mais imposto) é vista como uma maneira de redistribuir renda, e a filantropia também é vista como uma forma voluntária de redistribuição de riqueza, então pode não fazer sentido expandir a filantropia usando recursos de incentivo fiscal.
A ideia aqui defendida é a de que, se a intenção é redistribuir renda, a filantropia deveria ser feita integralmente com recursos próprios do doador.
Um exemplo: suponha os recursos provenientes do imposto sobre herança – ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação). Na situação 1, há isenção do pagamento do imposto, sendo esse dinheiro integralmente alocado para doação, indo compor o montante do ‘principal`dos recursos da Fundação familiar, em que (apenas) os rendimentos são usados na causa filantrópica decidida pela família, que é a preservação de museus. No outro extremo, situação 2, há o pagamento integral do imposto, que é usado pelo governo, de imediato e em sua quase totalidade, para a melhoria do ensino fundamental das escolas públicas das periferias.
Esses dois casos são ilustrativos de que, quando a filantropia é feita mediante o uso de incentivo fiscal, a decisão quanto ao uso do recurso cabe ao filantropo e não ao governo, que foi eleito justamente com a atribuição específica para detectar prioridades sociais e urgências daquele território. Como evidenciam esses exemplos citados, há, sim, o risco de amplificar questões de pobreza e desigualdade, quando ocorre essa subtração de recursos públicos (que seriam usados para solucionar problemas sociais do presente), que passam a ser direcionados para o bolo da filantropia das Fundações (e seguem rendendo no mercado financeiro), com a justificativa de ganhar musculatura e perenidade no combate aos problemas delimitados pelo(s) filantropo(s).
2 – Será que não precisamos de filantropia, mas apenas de bons governos?
Segundo esse enfoque, quando temos ´bons governos` que conseguem assumir na prática e integralmente o seu papel de maestro da política social, então podemos prescindir da filantropia.
Assim, quando os governos são conduzidos de forma democrática, transparente e participativa (como os “bons governos” podem ser definidos), as pessoas tendem a se sentir seguras e até satisfeitas em cumprirem a sua obrigação quanto ao pagamento dos impostos. Pois elas são regularmente informadas sobre como os recursos são aplicados e, na maior parte das vezes, são ouvidas nas decisões quanto à destinação dada a eles. A Finlândia, país europeu com apenas 5,5 milhões de pessoas, foi citada no webinar como exemplo nesse sentido.
Na realidade, os governos são dependentes dos impostos para executarem as soluções para os problemas sociais e de pobreza. E se não houver arrecadação tributária suficiente, os governos não podem atuar de modo satisfatório. E é justo que quem tem renda mais alta deve contribuir com alíquotas de tributação mais elevadas (ou tributação progressiva).
Ou serão esses pressupostos totalmente irrealistas no mundo capitalista atual? Será mesmo que é possível haver pessoas satisfeitas em pagar impostos?
Pois na vida real o que ocorre é que as famílias e as empresas se consideram capazes de darem a melhor destinação aos recursos do que o governo. Pois há a crença de que há muita porosidade na burocracia pública, por onde os recursos se perdem em ineficiências. Além disso, se a taxa tributária é mais elevada em um dado país, os donos do capital vão tender a migrar para os países em que essas alíquotas são menores.
A meu ver, bons governos, munidos do seu poder de regulação (de estabelecer regras, leis e políticas), têm, sim, capacidade muito maior do que a filantropia para promover transformação social no longo prazo. Por definição, os governos constituem a espinha dorsal na condução de um país. Porém, o grande desafio está em ter, ou poder eleger, “bons governos”, que sejam de fato comprometidos e capazes de combater a pobreza e a exclusão social no país. Na medida em que esse ideal é difícil de ser atingido, a filantropia se faz também necessária.
3 – Precisamos da boa filantropia. Mas, que conceito é este?
Na filantropia clássica o que prevalece é que “há uma pessoa rica no comando e que decide se tal coisa é boa e digna o suficiente para usar o dinheiro dela”. Hoje cada vez mais está se formando consenso em torno do entendimento do que deveria ser a ‘boa filantropia`: (i) é a que se distancia cada vez mais da escolha de causas preferidas, e se move na direção de contribuir para mudanças sistêmicas e estruturais relevantes; (ii) que atua por meio de mobilização comunitária e da construção de relações de confiança; e (iii) que tem o foco no alcance de resultados para os problemas sociais.
No extremo, poder-se-ia afirmar que a “boa filantropia” (ou filantropia eficaz) trabalha para a sua própria extinção. Isto porque os problemas sociais vão ser solucionados, e a sociedade vai prescindir da filantropia…. será? Ou apenas mais uma visão idealista?
Dentro de uma visão realista, considero que por ora é necessário trabalhar o mindset dos filantropos: de uma mentalidade individualista e de caridade/bondade, para uma mentalidade de atuação coletiva, de dever a cumprir, e de compromisso com a transformação social e ambiental abrangentes.
Filantropia e Tributação: excludentes ou complementares?
Ultimamente esse debate tem estado bastante presente no Brasil. Por um lado, tem se discutido sobre o aumento da tributação sobre os ricos e os muito ricos (elevação das alíquotas do imposto de renda e do ITCMD), de modo a gerar receita para enfrentar o déficit público e ampliar as políticas públicas para a promoção do desenvolvimento social. Por outro lado, tem se buscado estimular a cultura da doação no país, por meio da ampliação do uso de incentivos fiscais – ou seja, tributar menos para incentivar a filantropia. Haveria incoerência nessas iniciativas, haja vista que estão disputando os mesmos recursos?
À primeira vista, pode parecer que sim, isto é, que filantropia e tributação sejam excludentes. Esses recursos sob disputa ou iriam para o governo ou para a filantropia. E mais: se a função precípua do Estado, e por consequência dos governos, é a promoção do desenvolvimento humano e social, então caberia a eles a prevalência no uso dos recursos com essa finalidade.
Porém, cabe reconhecer que nem todo recurso advindo de tributação é destinado às políticas públicas sociais. Há inúmeras outras finalidades que o recurso público precisa custear, com risco elevado de dispersão para além das questões sociais. Mas, como comentado acima, espera-se que “bons governos” [que sejam democráticos, participativos, transparentes e (acrescento aqui) tecnicamente competentes] tenham capacidade de eliminar a pobreza e combater as desigualdades, a partir de uma base tributária adequada.
Da mesma forma, também cabe admitir que nem todo recurso advindo de sistema de baixas alíquotas tributárias de um país será destinado (pelas famílias e empresas) para a filantropia. Aliás, no Brasil principalmente, a maior parte desse não-recolhimento tributário acaba sendo alocado no consumo, ou no mercado financeiro, ou diretamente na produção. Isto porque a prática da filantropia ainda é aqui bastante incipiente.
O ponto é que a alíquota tributária em si não parece ter o papel preponderante que se pretende dar a ela no combate à pobreza e no fomento da política social de um país. O mais preponderante nesse sentido parecem ser as estratégias adotadas pelos governos e pela filantropia.
Daí que, sob um olhar mais atento, tendo a concluir que governos e filantropia são complementares no combate à pobreza e à exclusão social de um dado território. A coordenação cabe aos governos, e a filantropia pode ser importante aliada. Já a tributação entra como instrumento a serviço de ´bons governos` e da ´boa filantropia`. Todavia, cabe destacar que esse papel da tributação precisa ser melhor entendido e aprofundado, nas diferentes circunstâncias em que ela é usada com o argumento da política social.