Filantropia: no modo tradicional ou ecossistêmico?

Por on 29/08/2024

A filantropia inserida na abordagem ecossistêmica vem conquistando adeptos nos Estados Unidos e também na Europa.  Assisti recentemente (20.08.2024) ao webinar intitulado “Adotando uma abordagem ecossistêmica para a filantropia” (vídeo), organizado pela FSG e a GEO (Grantmakers for Effective Organizations), e depois li o artigo da FSG, de mesmo título.  A ideia central no trabalho é que “a abordagem ecossistêmica altera fundamentalmente o trabalho dos financiadores (filantropos), influenciando o desenvolvimento, implementação e aprendizado & avaliação da estratégia junto com as organizações filantrópicas (grantees) e os parceiros” (texto na figura). E que com isso, o potencial de transformação social se tornaria muito mais sólido e sustentável.

Depois de ver o vídeo e ler o artigo, a impressão que me ficou é a de que o modo de fazer filantropia segundo a abordagem ecossistêmica é  superior ao da filantropia tradicional, no que se refere à sua capacidade de gerar transformação social. Será, então, que todos os filantropos – sejam eles indivíduos, famílias ou empresas – deveriam adotar a abordagem ecossistêmica daqui para frente?

Filantropia: entendendo a abordagem tradicional

Na filantropia tradicional o doador doa (recursos e/ou trabalho voluntário) para uma organização do terceiro setor, ou filantrópica. Assim, ela é caracterizada por essa centralidade da relação entre doador (ou filantropo, financiador) e donatário (ou pessoa, ou organização receptora da doação).  Na filantropia tradicional o doador, seja ele indivíduo ou empresa, tem o poder de definir e/ou aprovar o que será feito com os recursos doados.

Só que às vezes o(s) doador(es) faz(em) uso dessa prerrogativa, às vezes não. Daí que a filantropia tradicional pode se desdobrar em diferentes tipos, indo de um formato extremamente centralizado para um formato super participativo, com diferentes gradações nesse intervalo.

O formato centralizado é conhecido como filantropia “de cima para baixo” (top-down). É quando os recursos doados para as organizações filantrópicas já vêm discriminados (ou carimbados) quanto ao uso a ser dado a eles, como, por exemplo, em qual(is) projetos / iniciativas devem ser investidos, qual a estratégia a ser usada, quais os resultados esperados e como prestar contas.

Já o formato participativo é conhecido como filantropia “de baixo para cima” (bottom-up). É quando os doadores (ou grantmakers) fazem a doação, porém dão liberdade de decisão quanto ao uso dos recursos à organização executora do serviço social (grantees). Os pressupostos são que, primeiro, é a organização executora (e não o doador!) quem está mais capacitado para identificar o melhor uso para os recursos, isto é, qual a estratégia mais eficaz.  E segundo, a organização executora deve desenvolver ou coordenar um processo de engajamento e escuta ativa com o público-alvo, para detectar as necessidades e problemas da comunidade, urgências e melhores maneiras para o atendimento.

Filantropia: como ela se insere na abordagem ecossistêmica?

Na abordagem ecossistêmica, os filantropos reconhecem o poder dos ecossistemas e da atuação em rede para a promoção da mudança social desejada. Daí, eles passam a atuar em parceria com esse ‘ecossistema de stakeholders`, e não mais dentro daquela relação linear da filantropia tradicional entre doadores e donatários.  É quando o papel do(s) doador(es) / filantropo(s) perde a centralidade que tinha no modelo tradicional de filantropia, e passa a assumir as funções de “facilitador, conector e aprendiz nesse grande ecossistema de atores que atuam para criar as mudanças duradouras e a nível de sistemas”.

Ao invés de focar em organizações ou projetos individuais, a abordagem ecossistêmica considera como as diferentes partes do sistema (seja do setor público, empresas, terceiro setor e universidades) podem interagir, e como as intervenções podem gerar mudanças sustentáveis no longo prazo, dentro do território. É, pois, dentro desse contexto, abrangente, múltiplo e dinâmico, que os  filantropos devem buscar se inserir. Na linha de frente dessa nova abordagem estão a FSG, organização de consultoria internacional, fundada em 1999 por Michael Porter e Mark Kramer a partir da ideia do impacto coletivo; e mais recentemente (2020) o movimento da Filantropia baseada na Confiança (em inglês: Trust-Based Philanthropy – TBP).

Artigo recente da FSG (de maio 2024) ´Embracing an Ecosystem Approach for Philanthropy` explica que essa mudança de abordagem, da tradicional para a inserida no modelo sistêmico, vai muito além da mudança de poder entre doadores (funders) e donatários (grantees).  Representa “uma redistribuição estratégica de poder, que passa a incluir o poder de outros atores, em um ecossistema para criar mudança social”. E essa alteração envolve todas as etapas do modelo de geração de valor para o território como um todo (e não mais limitado à organização executora), indo desde o desenvolvimento da estratégia, passando por sua implementação, até a fase de avaliação e aprendizado. Senão, vejamos as principais ideias do referido texto em relação a cada uma dessas etapas:

1 – Desenvolvimento da estratégia

O desafio é que as fundações (na condição de filantropos / financiadores / grantmakers) e as organizações do terceiro setor (na condição de executoras / grantees)  estão trabalhando em ambientes cada vez mais complexos e em rápida mudança, onde nenhuma organização ou indivíduo tem acesso a todas as informações e nem controle sobre todos os atores de um ecossistema.  Como consequência, muitas vezes é impossível desenvolver uma estratégia que forneça todas as orientações para um passo a passo de modo a alcançar o resultado desejado. Assim, as soluções devem ser adaptáveis.

Daí porque, em sistemas complexos, a estratégia deve servir como uma bússola e não um mapa, estabelecendo direção e foco claros para o trabalho e, em seguida, permitindo o aprendizado e a correção de rota ao longo do percurso. Ferramentas de estratégia tradicionais, como as teorias de mudança, podem ser úteis para obter alinhamento interno e externo sobre como os financiadores e seus parceiros antecipam a mudança que pode ocorrer, mas devem ser tratadas com a seriedade de teorias que são, e regularmente serem reexaminadas e ajustadas com base em novas informações e mudanças no campo.

2 – Implementação da estratégia

Nessa nova abordagem de filantropia, o papel dos financiadores (ou fundações, ou filantropos) na implementação da estratégia não é ser prescritivo sobre soluções específicas, mas é ser sobretudo um parceiro e um ouvinte profundo junto às organizações executoras (grantees) e demais parceiros da comunidade, sobre o que é mais necessário e quando. Pois esses (novos) financiadores entendem que as pessoas mais próximas dos problemas é que têm o conhecimento mais profundo das soluções; e, daí, eles (os filantropos) têm frequentemente se concentrado na ‘construção do poder da comunidade`, garantindo que a infraestrutura cívica inclua vozes marginalizadas e financiando soluções voltadas para a comunidade. ….. É assim que ocorre nas estratégias de impacto coletivo.

3- Aprendendo e Avaliando

Na abordagem ecossistêmica, os resultados não acontecem no nível do cronograma de uma doação.  Para os financiadores / fundações que adotam a abordagem sistêmica e praticam a filantropia baseada na confiança, o aprendizado e a avaliação podem ser uma das áreas mais desafiadoras a serem trilhadas. Pois ao invés de se concentrarem em exigir das organizações donatárias (receptoras das doações) a prestação de contas e/ou a medição do impacto gerado, esses financiadores devem fazer uso da etapa de avaliação e aprendizado para entenderem o seu próprio desempenho como financiadores, e assim moldarem e adaptarem continuamente a estratégia adotada.

No Brasil a filantropia dentro dessa abordagem ecossistêmica ainda é uma prática muito pouco difundida, salvo algumas poucas exceções como a atuação da Fundação Tide Setubal no Jardim Lapena, em São Paulo.

Filantropia tradicional ou inserida na abordagem ecossistêmica?

Vimos que a filantropia tradicional é baseada na relação direta do doador(es) com a organização do terceiro setor que executa o serviço social. Ela pode ser do tipo “de cima para baixo”, quando o poder de decisão está centralizado no doador; ou do tipo participativo “de baixo para cima”, que é quando as comunidades beneficiadas são ouvidas e engajadas nas tomadas de decisão e no trabalho social em si.

Já na filantropia conduzida segundo a abordagem ecossistêmica, o(s) doador(es) participa(m) como ator(es) parceiro(s) do processo de transformação social. E quando as forças de vários atores atuam em rede em prol de objetivos comuns, a expectativa é de que o poder da filantropia tende a ser significativamente potencializado em prol de uma transformação social mais ampla, sólida e sustentável, vis-a-vis ao poder da filantropia agindo de modo individual. É um caso típico em que o resultado pode ser bem maior do que a soma das partes.

Por outro lado, há que se reconhecer também que a filantropia exercida dentro da abordagem sistêmica é uma dinâmica bem mais complexa do que a filantropia tradicional, e mais exigente em termos de coordenação, conciliação de “egos”, recursos e tempo mais prolongado para surtir os efeitos desejados.  Além do que, se não houver um entrosamento razoável entre as organizações participantes do ecossistema, os riscos de fracasso e retrocesso (eficácia social negativa) são reais e maiores do que na filantropia tradicional.

CONCLUINDO, considero que, no âmbito da filantropia tradicional, a abordagem participativa é superior à abordagem centralizada, ou “top-down”. Pois essa última padece do grande erro de não ouvir as comunidades envolvidas com as iniciativas sociais, justamente que é quem vive o problema social e está melhor posicionado para apresentar estratégias e soluções.

Porém, em se tratando da ‘filantropia tradicional participativa` e da filantropia ecossistêmica, tendo a afirmar que elas são abordagens distintas, considerando contextos e objetivos específicos. Quando a questão é buscar solução para um dado problema social numa determinada comunidade, a filantropia tradicional participativa pode ser a mais indicada, em função de sua possível agilidade para equacionar o problema social.  Já quando temos um território conflagrado e cheio de diferentes e graves problemas sociais, a filantropia ecossistêmica pode se mostrar mais adequada, justamente por suas características de “paciência” e flexibilidade. Em síntese, esses dois modelos podem ser complementares, mas um não é superior ao outro.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.