QUARTETO DE SUCESSO: Filantropia – Liderança – Comunidade – Conhecimento

Por on 11/01/2025

Em projetos sociais, a filantropia sozinha não resolve e o seu alcance é reduzido vis-à-vis ao seu potencial de promover o bem. Comunidade engajada também acaba limitada em sua capacidade de solucionar os muitos problemas de pobreza e carência do território. Um líder isolado muitas vezes nem sequer se descobre como líder e o seu dom de multiplicar acaba desperdiçado. Também conhecimento sem prática é estéril e inútil. Porém quando o quarteto “Filantropia – Liderança – Comunidade – Conhecimento” se junta em torno de um Propósito de transformação e bem-estar social, a resultante pode ser poderosa.
Tive a oportunidade de constatar in loco a eficácia dessa estratégia ao visitar, no início de dezembro último, três projetos /iniciativas sociais conduzidos por diferentes organizações da sociedade civil (OSCs) em favelas do Rio de Janeiro.

Os projetos sociais visitados


1 – Desenvolvimento de Jogo pedagógico para envolver a comunidade local na discussão e equacionamento dos próprios problemas sociais e ambientais.

A OSC X já atua no campo da educação há mais de 40 anos na favela X, sendo respeitada e valorizada por seus moradores. A ideia do Jogo surgiu quando, numa reunião da comunidade na organização X no início de 2024, todos reclamaram da sujeira e do lixo amontoado na favela. Então, a coordenadora da OSC perguntou: quem dentre vocês trabalham como empregadas domésticas, zeladores ou com limpeza em geral, cuidando dos bairros “chiques” do Rio?
Um percentual grande do grupo levantou a mão. Aí ela fez a proposta: vamos fazer um plano de limpeza e colocá-lo em prática para podermos cuidar do próprio território onde moramos? Com isso, vamos conseguir manter o local limpo, agradável para se morar, e ainda vamos poder gerar oportunidades de trabalho e renda para nós mesmos (moradores) aqui dentro?
Esse desafio serviu como o pontapé para que o professor de informática daquela OSC, especialista no campo da Inteligência Artificial (IA), começasse a desenvolver com os seus alunos, todos moradores daquela favela, um jogo pedagógico (tipo “jogo de percurso”). Além de incentivar o uso da informática entre os alunos, nessa primeira etapa o jogo pretendeu sobretudo estimular a reflexão e a discussão entre eles, não apenas sobre o problema do lixo na comunidade, mas incluir também os demais problemas locais de mobilidade, saneamento, saúde, moradia, trabalho e assistência às famílias.
No momento da minha visita, a turma já estava avançando para a 2ª fase do desenvolvimento do jogo e, agora mediante o uso (mais tangível e simplificado) de um tabuleiro e dados, ampliar o seu alcance para conseguir envolver todos os moradores na discussão dos problemas daquela favela. O desejo é que o jogo se expanda e se transforme depois em uma tecnologia social de protagonismo e ação para o equacionamento dos muitos problemas sociais e ambientais em locais pobres e precarizados, levando em conta as suas especificidades.
Como pude verificar, o desenvolvimento desse jogo pedagógico foi financiado por recursos da filantropia, idealizado por um especialista e com a participação de jovens daquela favela, como instrumento para estimular atitudes participativas e proativas, e formar líderes locais com vistas a gerar desenvolvimento econômico, social e ambiental nesses territórios vulneráveis.

2 – Rede articulada de voluntários para disponibilizar cuidados paliativos para pacientes que vivem com doenças graves e em situação de vulnerabilidade, nas áreas de favela.

Nas famílias com recursos, os seus entes queridos com doenças graves podem ser tratados com dignidade, pois têm condições de acessar os cuidados necessários com alimentação, higiene, medicação e atendimento especializado. Têm plano de saúde particular, cuidadores profissionais para além do “cuidador familiar”.
Já nas áreas de favela, onde a escassez de recursos é generalizada, em muitos casos é a rede de solidariedade entre os moradores que cuida dos pacientes com doenças graves. Porém, essa rede de solidariedade se mostra insuficiente e precisa ser fortalecida para dar conta dessa missão.
Foi, pois, com esse diagnóstico que na favela Y nasceu em 2018 o projeto voltado para cuidados paliativos. Graças à filantropia, 4 anos depois a OSC havia sido formalizada (com cnpj) e passara a ter uma sede que funciona na parte central e “perigosa” da favela.
Pelo que pude perceber, o trabalho está todo baseado na liderança do seu fundador (voluntário especialista), que tem uma capacidade impressionante para coordenar e integrar (i) um grupo de voluntários – especialistas da área médica (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, e outras especialidades), e (ii) um grupo de voluntários – moradores, que se tornam os “padrinhos” próximos dos pacientes assistidos e de suas famílias.
Os voluntários-especialistas prestam serviços aos pacientes, quando acionados, e orientam a atuação dos voluntários-moradores. São eles também que fazem a “ponte” com o poder público. Não é o objetivo do projeto substituir o poder público, mas sim ser um facilitador para que os moradores daquela comunidade possam acessar os serviços disponíveis na rede pública, para o tratamento dos seus pacientes com doenças graves.
A estratégia central do projeto está baseada (i) no mutirão mensal, que é quando os grupos de voluntários (constituídos por especialistas e moradores) visitam os pacientes e, logo em seguida, realizam uma discussão ampla na organização para discutirem a situação dos pacientes, caso a caso; e (ii) nos cursos de capacitação com orientações básicas dadas pelo voluntários – especialistas aos voluntários – moradores da comunidade.
Mas o que mais me impressionou foi a construção do banco de dados do projeto, que a equipe denomina “prontuário”, com as informações do perfil, situação social e do acompanhamento (pelo projeto) quanto ao tratamento de cada paciente. Todos os dados estão sistematizados e disponíveis online, podendo até serem acessados e analisados por inteligência artificial. E mais importante ainda, o banco de dados já dispõe de uma dinâmica acordada entre os especialistas para garantir a sua permanente atualização. Vale aqui observar que é muito raro encontrar um banco de dados com tal qualidade em projetos sociais de organizações do terceiro setor.
Como visto, esse projeto ilustra também o quarteto em plena atividade: filantropia, liderança, comunidade e conhecimento.

3 – Esporte e educação para crianças e adolescentes na favela Z

É um projeto recente, iniciado em 2022, atravessando atualmente a fase difícil do pós-formalização como OSC. A sua fundadora é movida pelo desejo de poder retribuir as oportunidades que ela teve na vida, e que começaram a ser abertas a partir de um projeto social desse tipo quando ainda era criança na favela Z. Ela soube aproveitar essas oportunidades, a tal ponto que acabou cursando graduação e mestrado na área esportiva em uma das melhores universidades dos EUA. Agora de volta, e ainda moradora da mesma favela Z, quer disponibilizar o conhecimento adquirido e a sua rede de contatos para conseguir transformar também a vida das crianças e adolescentes daquela comunidade.
A minha visita foi por ocasião da festa de encerramento do ano de 2024. Dentre as realizações do ano, a fundadora mencionou os torneios realizados, os passeios feitos, as bolsas de inglês e para estudar em colégios particulares que foram conseguidas (pelo projeto), e as aprovações no “funil” para os treinos em clubes profissionais. Ela fez questão de reforçar que os critérios adotados para a indicação dos alunos para essas oportunidades foram a frequência deles ao projeto, e a prática de valores como disciplina, amizade, respeito e excelência.
Durante o evento, foi interessante observar a animação dos alunos nas atividades, o carinho deles com as duas professoras, e também a participação atuante das mães e responsáveis (dos alunos) na organização da festa. A preparação do (gostoso) almoço, trazido em panelões, foi na casa de uma das mães com a ajuda de várias outras. Muitos alunos chegavam à festa, trazendo um refrigerante grande, ou uma pizza ou um prato de doces. Essa responsabilidade compartilhada entre as famílias e a organização mostrou-se fundamental para viabilizar a festa, sobretudo nessa fase do projeto em que os recursos da filantropia ainda estão escassos.
Como se vê, esse projeto social de esporte e educação na favela tem um senso firme de propósito, e vem funcionando com base em liderança conquistada, conhecimentos na área esportiva e engajamento da comunidade. Porém, o quarteto do sucesso ainda está manco: falta desenvolver a perna da filantropia / mobilização de recursos. Pois um “determinado nível de acesso” à filantropia se faz necessário para garantir a sustentabilidade inicial do projeto social, e a sua capacidade de prosseguir na direção da transformação social desejada naquela favela Z.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.