Tarik Fancy e ESG – será que podemos aproveitar alguma de suas críticas?

Por on 07/10/2022

Tarik Fancy foi diretor de Investimento Sustentável na BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, no período jan.2018-set.2019. Tudo começou quando ele recebeu o convite “irrecusável”(segundo ele) de Larry Fink, CEO da BlackRock, para liderar a área de sustentabilidade da gestora, tida como referência global do movimento da sustentabilidade. Na ocasião, esse canadense ainda com os seus 40 e poucos anos e uma bem-sucedida trajetória no setor financeiro de Wall Street, estava já decidido a “pular do barco” do setor financeiro e passar a se dedicar à Rumie, organização sem fins lucrativos que ele havia fundado há alguns anos (2013), voltada a oferecer ensino digital gratuito para jovens em situação de vulnerabilidade no mundo todo.

Para Tarik Fancy  o convite para trabalhar na BlackRock veio como uma oportunidade para realizar o seu sonho, ou seja, de poder contribuir em escala mundial no âmbito do investimento sustentável. Ele acreditava naquele momento ser o passo certo de empresas e sociedade se unirem no enfrentamento das mudanças climáticas e das injustiças sociais. Porém, em menos de 2 anos se decepcionou com o que realmente vinha sendo feito, frente à necessidade de uma atuação mais estruturante e efetiva. Segundo ele, “é preciso abordar uma crise sistêmica com soluções sistêmicas”.

No seu ensaio (ago.2021), ‘O diário secreto de um investidor sustentável,  em um estilo de desabafo Tarik Fancy apresenta os argumentos que o  foram  levando a concluir que as soluções que vinham sendo dadas no âmbito global das elites corporativas e dos investidores vinham funcionando “como um placebo perigoso que prejudica o interesse público”.  

Logo na introdução do texto, ele lança um desafio e um alerta contundentes:  “Desafio os líderes empresariais que têm defendido as ideias que questiono (nesse ensaio) para oferecerem uma refutação consistente. Pois já estamos ficando sem tempo…… não podemos mais nos dar ao luxo de responder verdades inconvenientes com fantasias convenientes”.

É por conta desse desafio  que recomendo a leitura do referido Diário. Para estimular a sua  leitura, vou pontuar a seguir alguns dos argumentos provocativos apontados por Fancy.  Se queremos fortalecer as medidas ESG que vêm sendo tomadas no âmbito corporativo no Brasil, precisamos saber conviver com as  críticas e extrair delas algum aspecto positivo – se houver.

  • A analogia entre o funcionamento do sistema econômico capitalista e o basquete profissional. No capitalismo, as empresas privadas competem entre si, em mercados justos e competitivos, para maximizar o lucro.  Tudo isso nos serve (sociedade) pois, ao promover inovações e melhorias de eficiência, em última análise vão melhorar nossas vidas e o bem-estar. No basquete, os jogadores competem em uma quadra especialmente projetada para marcar pontos. Tudo isso nos entretém (fãs) através de um jogo justo e altamente competitivo, que promove a melhor exibição de habilidades e inspiração. O placar da competição é claro e quantificável para ambos: lucros no capitalismo, pontos no basquete.
  • Sem regras, sem jogo. Um jogo profissional de alta qualidade não aparece magicamente do nada: há uma liga que ajuda a organizar os locais, agendar, gerenciar e atualizar as regras e regulamentos, e emprega os árbitros que aplicam essas regras do jogo.  Da mesma forma, nada existe em uma sociedade capitalista sem um governo para criar as pré-condições para que as empresas privadas concorram e inovem com segurança. Cabe ao governo elaborar regras e regulamentos em torno da concorrência privada de forma que sirva ao interesse público de longo prazo.
  • Para a academia, não está claro se há conexão real entre “ser sustentável ou ESG” e lucratividade da empresa. Por enquanto a relação parece “nula”, ou melhor ainda há muita incerteza. Em alguns casos, se supõe que depende da motivação dos pesquisadores ou da pesquisa. Há estudiosos do tema que afirmam que ter iniciativas ESG é quase como ter um “bem de luxo”: algo que faz muito bem quando as empresas têm dinheiro, e elas adoram gastar com isso porque faz com que elas se sintam bem, mas praticamente desaparece quando há pouco dinheiro.
  • Sustentabilidade e Esportividade. Um CEO pode decidir reduzir a pegada de carbono de sua empresa, mas ele não pode fazê-lo simplesmente porque é “justo” ou a “coisa certa a fazer”; tem que ser justificado em termos de interesses dos acionistas, isto é, da lucratividade. Da mesma forma, vale com o basquete.  Os  jogadores se engajaram coletivamente em formas de jogo “sujo” por décadas, porque marcar pontos é que ganha jogos. As regras não mudaram: na maioria dos casos, o jogo “sujo” ainda pode ajudar a maximizar os pontos, e os jogadores permanecem sob instruções estritas para marcar pontos, e apenas participar com espírito de esportividade na medida em que contribui para (ou não prejudica) o placar. Mesmo porque não há clareza sobre o que seja esse “espírito de esportividade” – da mesma forma que, até hoje, há muita nebulosidade em torno do conceito de sustentabilidade (ou ESG).  
  • Lucro e Propósito. Parece ser menor (do que se esperava) a sobreposição entre os círculos do Lucro e do Propósito. No âmbito do Propósito, algumas coisas só são importantes quando a atenção pública está diretamente focada nelas: pense em como os movimentos #MeToo (contra o assédio sexual e discriminação no trabalho) e #BlackLivesMatter (contra a discriminação do negro)  têm provocado respostas apressadas de empresas que reconhecem deficiências na sua esfera de Diversidade & Inclusão.
  • Papel regulador do Estado é fundamental. Como no início da pandemia de COVID-19 (mar.2019), o papel do governo (caso do Canadá) foi fundamental para estabelecer regras de isolamento / funcionamento para as organizações privadas e públicas do país todo. Assim também deveria ser o papel dos governos, no sentido de impor medidas severas contra as mudanças climáticas, se sobrepondo aos interesses individuais. Tanto o enfrentamento da COVID-19 como das mudanças climáticas e sociais, que são questões complexas, elas devem ser deixadas para os especialistas em políticas públicas, e não para que cada um busque descobrir “suas” soluções e aja por conta própria. Com o agravante de que no caso da COVID-19, os efeitos negativos da (in)ação ou de ações inadequadas de enfretamento foram percebidos de imediato; ao passo que, no caso das mudanças climáticas, essa percepção só vem no longo prazo. Ficará, portanto, muito mais difícil, senão impossível, corrigir depois.
  • Quem polui paga – Para serem eficazes, as políticas têm que elevar o preço do carbono, ou CO2, e ao fazer isso corrigir as externalidades negativas de mercado geradas por empresas e pessoas” – quem disse isso foi o ganhador do Prêmio Nobel 2018, William Nordhaus, em seu trabalho sobre a economia das mudanças climáticas. Assim, a ideia por trás de um imposto sobre o carbono é a seguinte: se você obriga a empresa / pessoa (que criou a externalidade negativa) pagar os custos (através de um imposto sobre a poluição), seus incentivos mudam e, portanto, o seu comportamento muda. Daí, o nosso sistema de negócios, mercados e concorrência existentes começaria a inovar em direção a alternativas mais verdes. E também as pessoas começariam, por exemplo,  a usar menos o carro particular, porque passou a “pesar no bolso” de cada uma delas – caso contrário, continua prevalecendo a lógica de que “só vou sacrificar o meu conforto se os outros também o fizerem”.  
  • Na maior parte das vezes, iniciativas individuais e voluntárias de sustentabilidade são como placebo para tratar um câncer –   Fazendo analogia, é como se estivéssemos vendendo ao público um placebo de grama de trigo como solução para tratar o início de um câncer. E o pior, a prática em paralelo (que sempre há)  do marketing  exaltando as iniciativas ESG acaba fazendo com que o paciente demore a se submeter à quimioterapia, tratamento efetivo. É uma “fantasia perigosa”, pois o tempo vai passando e, com isso, o câncer só vai se espalhando, agravando a situação do paciente e o levando à morte….. No nosso caso, o paciente é o planeta Terra, e inicialmente os mais atingidos (pelas mudanças climáticas) têm sido justamente as pessoas vivendo em situação de pobreza, como em áreas de encosta, em regiões inóspitas já castigadas por secas e inundações.

Sem dúvida, temos que saber conviver com as críticas e tirar proveito delas – é claro, se forem válidas. Em se tratando desse desabafo de Tarik Fancy  e, diga-se de passagem, feito com “conhecimento de causa”, eu concluo esse resumo com duas perguntas para autorreflexão, relacionadas ao tema ESG no Brasil:

(Para cada EMPRESA se fazer) – As suas práticas ESG estão realmente gerando resultado? É o melhor que vocês conseguem fazer? Por quê? Se houvesse obrigatoriedade, a contribuição social e ambiental da empresa poderia ser maior?

(Para cada esfera / instituição de GOVERNO) – Por que até hoje não conseguimos regulamentar /estabelecer a obrigatoriedade do cumprimento de medidas anti-poluição e pró-justiça social?

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.