E no BRASIL, quais os principais desafios da FILANTROPIA?

Por on 20/02/2025

Vislumbro alguns desafios a rondarem a evolução da filantropia no Brasil nesses próximos anos.

Acabo de ler dois artigos interessantes de Alex Hayes, diretor associado da New Philanthropy Capital (NPC), uma das organizações think-tank no Reino Unido nesse campo. E outro artigo da Cristiane Sultani, fundadora do Instituto Beja, voltado para promover a filantropia com impacto no Brasil. Dessas leituras, o que se percebe é que podemos traçar um paralelo entre os desafios para o Reino Unido e para o Brasil, só que distanciados no tempo e na intensidade / gravidade dessa evolução.

Desafios da filantropia no Reino Unido

No seu artigo (11.02.2025) – Funding and Philanthropy in 2025: 5 trends to watch, Hayes destaca quais são as 5 principais tendências que ele vê para a filantropia e o financiamento social nesse ano de 2025 para o REINO UNIDO. Na realidade, cada uma dessas 5 tendências traduz um desafio a ser enfrentado.

  1. Uso crescente de ferramentas de Inteligência Artificial (IA). Menciona que os “grandes financiadores estão felizes porque as organizações proponentes têm feito uso de ferramentas generativas de IA, como o ChatGPT, para escrever as suas propostas”.
  2. Crescimento do Investimento de Impacto – Observa que as organizações de impacto têm buscado acessar as diferentes formas de financiamento: se por um lado, elas estão mais acostumadas a captar doações; por outro lado, têm tido necessidade de suporte para acessarem os investimentos de impacto (que além do retorno social, devem gerar também retorno financeiro).
  3. Aproximação com as políticas de governo? No Reino Unido, o governo tem buscado fortalecer a parceria com a sociedade civil para o cumprimento de sua missão. Diferente, portanto, dos Estados Unidos, em que o novo governo de Donald Trump já assumiu atitude de desconfiança com o terceiro setor desde a sua posse, haja vista o imediato congelamento dos seus repasses para a USAID (United States Agency for International Development). A questão é se essa política de desconfiança dos Estados Unidos pode vir a influenciar a aproximação da filantropia com o governo no Reino Unido.
  4. Retomada lenta das doações e financiamentos sociais? Como Hayes aponta em outro artigo (Why have so many funders closed to applications?, de 14.10.2024), em 2024 houve um movimento grande no Reino Unido de paralisação /redução de recursos disponibilizados para a área social, seja proveniente de filantropia, de fundações (como a City Bridge Foundation) ou de fundos de investimento (como o Tudor Trust). Algumas possíveis razões foram a incapacidade dos financiadores em atender ao aumento significativo havido (2024) na demanda por recursos – e daí vários desses financiadores optaram por “parar, entender (o que estava acontecendo), replanejar e priorizar”; sem falar na redução havida no número de doadores e das doações de grandes filantropos. A expectativa para 2025 é de reversão lenta nesse quadro de disponibilização de recursos para a filantropia e o financiamento social.
  5. O aumento da colaboração – Hayes observa que os financiadores já vêm aportando recursos de modo conjunto para poderem ter uma atuação mais efetiva e de grande escala. Ele espera que essa tendência siga crescendo, deixando sempre para as comunidades atendidas o poder de decisão sobre como melhor aplicarem os recursos.

Já no seu artigo A filantropia em Davos (Valor, 03.02.2025), Cristiane Sultani reforça justamente a importância desse 5º aspecto (apontado por Hayes) para o fortalecimento da filantropia em âmbito global. Ela esteve presente ao Fórum Econômico Mundial em Davos deste ano, cujo tema central foi o da “Colaboração na Era da Inteligência”. Para Sultani, ficou muito claro o senso de que a filantropia precisa avançar por meio de pautas coletivas, e que a colaboração é a única estratégia capaz de alavancar a solução de problemas sistêmicos (como é o caso das questões sociais, humanas e ambientais). Daí, porque é preciso coletivizar as individualidades, capacidades e habilidades para garantir conquistas a curto, médio e longo prazo.

E no Brasil, quais os principais desafios?

No Brasil, a filantropia ainda é uma prática incipiente, diferente dos Estados Unidos, Reino Unido e alguns outros países da Europa. Basta ver que, até há bem poucos anos (início dos anos 2000), o termo filantropia era ainda estigmatizado em nosso país, uma vez que associado a assistencialismo e “intenção velada” dos filantropos em manter o status quo de privilégio e desigualdade. No entanto recentemente tem havido um movimento forte de fortalecimento da filantropia no Brasil, capitaneado por instituições-referência nesse campo como o IDIS, GIFE, Instituto Phi e a Sitawi.

A seguir, busco identificar o paralelo entre os desafios acima identificados para a filantropia no Reino Unido e os desafios para a filantropia no Brasil nos próximos anos.

  1. Avanços nas áreas de TI (Tecnologia da Informação) e IA (Inteligência Artificial) – Como comentei em artigo recente (Avaliação no Terceiro Setor: estamos avançando!), as ferramentas de TI e IA estão ficando cada vez mais disponíveis para as organizações da sociedade civil (OSCs), o que lhes permitiria, sem dúvida, um processo de gestão mais ágil e competente. Porém, mais importante do que as ferramentas em si, é poder contar com equipe devidamente capacitada para saber fazer o uso adequado e correto delas. Senão, “garbage in, garbage out” (lixo entra, lixo sai), e o uso do instrumento terá sido simplesmente dispendioso e inútil. O que ocorre é que muito poucas OSCs no Brasil conseguem realmente dispor de equipes competentes para fazerem esse bom uso das novas ferramentas. O desafio está justamente em contratar e treinar as pessoas que trabalham nas OSCs para, aí sim, poderem fazer uso desses avanços da tecnologia.
  2. Crescimento do investimento de impacto – É extremamente desejável que o investimento de impacto ganhe escala nos próximos anos. No Brasil, país em que a filantropia ainda não chegou sequer a se consolidar, o grande risco me parece ser o da concorrência entre os recursos destinados à filantropia e aos investimentos de impacto. Com isso, fragilizando a filantropia em si e, portanto, as muitas organizações filantrópicas que dependem exclusivamente dessa fonte de recurso. O desafio está em dar clareza e atuar em prol da motivação que rege cada uma dessas duas modalidades de financiamento social, o que a Sitawi tem buscado fazer. Pois ambas, filantropia e investimento de impacto, precisam ser devidamente estimulados.
  3. Aproximação com as políticas de governo? No Brasil existe atualmente um sentimento forte de estranheza e desconfiança das OSCs para com os governos. Elas fogem de criar laços de dependência e favor para com o Poder Público, e de serem usadas como “cabides eleitorais”. Querem preservar a sua autonomia, ainda que isso signifique ficarem à mingua de recursos e parcerias públicas. O desafio está em romper essa forte barreira de desconfiança, de modo a criar um ambiente sinérgico nos territórios entre o Poder Público e o Terceiro Setor para o atendimento das demandas sociais.
  4. Doações e o acirramento da concorrência entre OSCs – No Brasil, estamos assistindo à crescente concorrência entre OSCs, via editais, para se candidatarem aos recursos da filantropia das empresas, proveniente de recursos incentivados ou próprios. Realidade perversa, uma vez que as grandes OSCs estão muito melhores estruturadas do que as pequenas OSCs e as iniciativas comunitárias nessa corrida por recursos e, com isso, esse segundo grupo só vai ficando para trás. Cada vez menos, as doações têm se baseado na filantropia de vizinhança, na generosidade e no “valor social” do trabalho realizado. O desafio [e aqui vale tanto para os filantropos e investidores de impacto] está em criar lentes justas e adequadas para a seleção das organizações a serem apoiadas. Não podemos simplesmente seguir copiando a lógica adotada pelos atores econômicos, pois essa lógica pode induzir a graves erros de seleção quando se trata da área social.
  5. O aumento da colaboração – Como comentei em artigo de alguns anos atrás (Organizações sociais: iniciativas de impacto isolado ou de impacto coletivo?), a importância da colaboração, ou do impacto coletivo, já vem sendo enfatizada e colocada em prática desde 2011, nos Estados Unidos, Reino Unido e outros países da Europa. No Brasil, ainda é uma prática que começa a ganhar força, conhecida como “desenvolvimento de territórios vulneráveis”, mas ainda muito sujeita a desconfianças entre os parceiros envolvidos e a incompetências na condução de uma atuação conjunta sinérgica. No que se refere especificamente à filantropia, vejo que aqui o desafio está em romper barreiras da nossa cultura do querer fazer sozinho, do pretender saber o que é melhor para a comunidade dos atendidos, da vaidade do querer deixar um legado, e do aprender a escutar para poder somar forças e construir juntos.
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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.