Gestão social no Terceiro Setor: o caso dos 5 erros

Por on 12/11/2025

Vale a pena assistir ao episódio 2 da série espanholaAnimal” que entrou recentemente na Netflix. A série acompanha um veterinário rural, Antón, que, por dificuldades financeiras, se muda para a cidade para trabalhar em um moderno pet shop de luxo dirigido por sua sobrinha.

Fazendo aqui um paralelo, acredito que esse episódio serve para ilustrar de maneira cômica e sutil os conflitos e dificuldades por que passa uma organização do Terceiro Setor. Pois, ao mesmo tempo em que a instituição precisa estar comprometida com o atendimento efetivo aos seus beneficiários, ela precisa arrecadar recursos para garantir a sua manutenção e poder continuar existindo e cumprindo o seu propósito. E, para isso, é preciso haver clareza dos seus objetivos, competências, processos, resultados esperados e modos de avaliação.

Vou a seguir sintetizar alguns momentos hilários desse episódio (temporada 1 / episódio 2: Sorriso atrai sorriso).

O caso – Atendimento no pet shop

1 – Anton, o veterinário, começou a atuar em um pet shop de luxo, gerenciada por sua sobrinha Uxia. Estava cumprindo período de teste, e poderia ser aprovado (ou não) para a vaga. Logo no primeiro dia, encontrou a sala de espera cheia. O primeiro cliente a ser atendido entrou com o seu cachorro, e o problema trazido foi que o seu cão estava mancando cada vez mais.

2 – Depois de examinar com cuidado, Anton deu o diagnóstico, de modo transparente, para o dono do pet e disse que aquele tipo de problema só seria efetivamente resolvido com cirurgia. Porém, no caso particular daquele cão, que já era bem idoso (12 anos), ele não recomendaria a cirurgia, pois ela implicaria em alto risco para o cachorro e um longo pós-operatório com muita dor. Então, não haveria nada a ser feito naquela situação: o melhor, em termos de garantir qualidade de vida para o pet, seria (mesmo) deixá-lo conviver com aquela fragilidade trazida pela idade.

3 – O dono do cachorro ficou muito triste, porque aquele pet era muito querido por sua namorada – o pet ocupava papel central no relacionamento entre ele e a namorada, quase como um filho. Assim, se o pet continuasse mancando e sem poder caminhar direito, o namoro dele é que iria correr risco. Então, o seu desejo era, sim, que o cão fosse operado.

4 – Naquele momento, para Anton, ficou claro que o problema central a ser resolvido não estava no cão, mas nos donos dele.  Anton considerou que a melhor maneira de ajudar seria sair da loja, e ir tomar um chopp por perto em companhia do rapaz, ouvi-lo com paciência e, se possível, orientá-lo. E, foi o que Anton fez, depois de comunicar aos demais clientes da sala de espera, que teria que sair (por conta de uma urgência surgida) e que voltaria em no máximo 2 horas.

5 – Anton só não percebeu que, ao sair do pet shop com o rapaz, este pontuou “carinha zangada” no quadro de avaliação, que ficava logo antes da saída da loja. Do tal quadro constavam três carinhas: a 1ª feliz/sorrindo (aprovação, em cor verde); a 2ª neutra (cor amarela); e a 3ª triste/zangada (desaprovação, em cor vermelha). De fato, naquele momento era a “carinha vermelha” que melhor conseguia refletir o sentimento do rapaz.  Ao chegar de volta ao consultório, Anton encontrou a sala de espera vazia, pois todas as pessoas tinham cansado de esperá-lo e ido embora.

6 – No fim daquele dia, Uxia chamou Anton para dizer que ele precisava mudar o seu modo de atuar. Pois, só naquele dia, a loja havia sido avaliada com várias carinhas “vermelhas”, a começar daquele rapaz que Anton havia tanto se esmerado em atender, e por todos os demais clientes que ele havia deixado na sala de espera, sem atender.

7 – No dia seguinte, a primeira medida tomada por Anton foi pedir à clínica que chamasse de volta o tal rapaz e o seu cachorro, sob a alegação de que o veterinário havia reconsiderado o caso e decidido pela cirurgia. O moço voltou de imediato à clínica, trazendo o seu cão. Dessa vez, veio também com a namorada, todos em clima de alegria e esperança.

8 – Anton tinha plena consciência de que, para aquele pet, o melhor não seria a cirurgia – pois seria impor ao animal um sacrifício grande, muita dor, e sem nenhum benefício real. Uxia, em sua posição de gerente, também estava muito triste com aquela solução que “teria que ser dada”.

9 – Anton entrou com o animal para a sala de cirurgia, enquanto o casal aguardava na sala de espera. O tempo passava, o ambiente começou a ficar tenso pois não vinha notícias da operação….. Foi quando Uxia decidiu adentrar a sala de cirurgia, e lá (qual não foi a sua surpresa!) encontrou o cão deitado e tranquilo na mesa de cirurgia e, a seu lado, Anton lia o jornal calmamente (foto acima).

10 – Anton, então, explicou à Uxia que não havia feito a cirurgia.  Mas iria dizer ao casal de namorados que, sim, havia feito. Iria alertá-los que, na fase de recuperação, o pet ainda iria mancar por um longo período e, em caso de dor, tomar analgésico. E que essa havia sido a melhor solução que ele encontrou para preservar o pet de sofrimentos desnecessários, fazer com que os seus donos continuassem unidos e felizes, e garantir a reputação e a entrada de recursos para a loja.

11 – De fato, o casal saiu da pet shop em clima de felicidade, conduzindo o cão pela coleira, depois evidentemente de pagar a conta da cirurgia. Estavam tão alegres, que esqueceram de olhar para o quadro de avaliação. Uxia observou isso, e achou justo ir até o quadro de avaliação e (ela mesma!) marcou a “carinha verde”.

Quais os 5 erros cometidos? Paralelo com os projetos sociais no Terceiro Setor

Faço aqui um paralelo entre essa situação confusa vivenciada no pet shop e o que seria a gestão ideal no Terceiro Setor, que precisa se organizar da melhor maneira para conseguir trazer solução para os muitos problemas sociais que lhe chegam.

No caso descrito acima, comparo o pet shop a uma ONG (Organização Não-Governamental) ou organização do Terceiro Setor, que visa atender às necessidades de pessoas em situação de vulnerabilidade e se sustenta basicamente por meio de doações e repasses “a fundo perdido”. Os pets representam o público atendido, ou público beneficiário de uma primeira ONG. Já os “donos dos pets” estariam no papel de potencial público a ser atendido por uma outra ONG. Uxia atua como gestora da ONG dos pets, e Anton está no papel do profissional diretamente responsável pelo atendimento do público beneficiário dessa primeira ONG.

Feitas essas atribuições de papéis, vamos à identificação dos 5 erros cometidos no caso acima do pet shop.

Erro 1 – De diagnóstico. No caso, tínhamos 2 problemas ocorrendo em paralelo, e não apenas um único: (1) o cachorro mancando; e (2) a crise de relacionamento do casal, os donos do cachorro. O erro do pet shop (ONG 1) foi não ter essa clareza do seu campo específico de atuação e do público-alvo (pets). Pois se eram dois problemas distintos, haveria que se buscar 2 organizações de natureza distinta para tratar deles – ou então 2 áreas distintas dentro do próprio pet shop.

Para uma atuação social efetiva no Terceiro Setor, é fundamental ter clareza do problema social a ser tratado, e sobre como as instituições precisam se organizar. O diagnóstico inicial, conhecido também como “avaliação de marco zero” precisa contemplar questões do tipo: o que é o problema social? Quais as suas causas? É possível identificar uma árvore de problemas? É possível uma organização enfrentá-lo de modo isolado ou será necessário criar parcerias? Em qual(is) causa(s) uma determinada ONG tem expertise / competência?  Ela conhece bem as especificidades e necessidades do seu público-alvo?

Erro 2 – De planejamento. No caso, tínhamos 2 objetivos distintos em paralelo, e não apenas um único: (1) proporcionar tratamento veterinário adequado para o cachorro; e (2) proporcionar atendimento psicológico para o casal. O erro foi o pet shop ter dado uma abordagem confusa para tratar o caso como se houvesse um objetivo único. O veterinário até percebeu esse erro, e quis dar um atendimento específico para o cão (recomendou a não-cirurgia) e outro atendimento para o rapaz (por meio da “escuta ativa”), mas foi demovido desse seu procedimento pela Uxia, gerente responsável da ONG 1.

Para uma atuação social efetiva no Terceiro Setor, para cada objetivo de resultado pretendido deve haver um plano operacional distinto. Dependendo da situação, esse plano pode ser elaborado e executado por áreas distintas de uma mesma ONG; ou ser atribuído a organizações distintas. O caso acima ilustra como o planejamento deveria ter sido contemplado por duas ONGs distintas, uma com competência em pets e a outra em atendimento psicológico a indivíduos e famílias.

Erro 3 – De mobilização de recursos. No caso, como se tratava de 2 objetivos bem distintos, deveria ter havido 2 estratégias diferentes de mobilização de recursos – uma voltada para levantar recursos para o tratamento de pessoas com problemas psicológicos, e outra para o tratamento dos pets. O erro aqui foi o pet shop ter assumido apenas uma estratégia de captação de recursos, que era baseada no dono do pet, que (como vimos) acabou agindo e fazendo os seus julgamentos em função dos seus próprios interesses – e não os do pet.  

Para uma atuação social efetiva no Terceiro Setor, cada ONG deve ter clareza sobre quais são as necessidades do seu público-alvo e, só a partir de então, começar a desenhar a sua estratégia de mobilização de recursos, procurando atender aos critérios e possíveis exigências dos seus doadores. O sucesso de uma estratégia de mobilização de recursos é julgado principalmente por sua capacidade em transformar o problema social em questão (no caso da ONG dos pets, propiciar bem-estar àquele cachorro).

Porém, vale lembrar que cada doador / investidor social, ao aportar recursos em uma dada organização filantrópica, pode ter também os seus interesses próprios (em termos de causas, localidades, prazos e desempenho), e é legítimo que assim seja. Sobretudo em se tratando de doações feitas por empresas. A esse respeito, há alguns anos desenvolvi o conceito da “eficácia pública e eficácia privada da ação social das empresas”.

Erro 4 – De avaliação. No caso, o erro foi no sistema de avaliação do pet-shop (o quadro com as 3 “carinhas”), que se mostrou dúbio e impreciso. Na saída da loja, quando o dono do pet fez a sua assinalação, o que na realidade ele estava avaliando: seria (1) a solução em si dada pela organização em prol do bem-estar do pet, ou (2) o sentimento do dono do pet em relação àquela solução dada?

Para uma atuação social efetiva no Terceiro Setor, é fundamental podermos contar com um sistema de monitoramento (do processo) e avaliação (dos resultados) que tenha indicadores precisos, bem construídos (confiáveis), que meçam realmente o que se pretende medir (válidos), e que funcionem como uma bússola a guiar a condução dos projetos sociais. Esse continua sendo até hoje o grande desafio para as organizações do Terceiro Setor. Mas, é preciso começar pequeno na construção desse sistema, com poucos e relevantes indicadores, e ir aos poucos ampliando esse sistema para poder dar conta das necessidades de avaliação que forem surgindo.

Erro 5 – De capacitação da equipe. No caso, Anton parecia ser um veterinário competente (também) para pets e, ao mesmo tempo, uma pessoa generosa e empática.  Porém, Anton cometeu erros crassos em termos do seu comportamento no pet shop, tais como: (1) deixar as pessoas o aguardando na sala de espera, e sair da loja para resolver problema pessoal do dono do 1º pet atendido; (2) uma vez repreendido, na 2ª consulta que teve com o pet, informar aos seus donos que havia feito a cirurgia, sem tê-la feito de fato, e cobrar por isto; (3) ter um comportamento individualizado, compatível com o seu jeito de ser, porém resistindo a absorver os valores e métodos de trabalho da equipe do pet shop.

Para a atuação social efetiva de uma ONG, a capacitação de toda a equipe é etapa fundamental. Todos os colaboradores precisam estar imbuídos da relevância do trabalho que realizam, conhecer a fundo as características e necessidades do público a ser atendido, ter os mesmos valores, falar a mesma linguagem, serem devidamente treinados para exercerem as suas funções.  Ou seja, em cada ONG deve haver uma diretriz norteadora do trabalho social, capaz de guiar cada decisão operacional que precisar ser tomada pelas pessoas que compõem a equipe. Assim, a capacitação da  equipe é pré-requisito importante em prol da efetividade dos projetos sociais implementados.

Por último, fica aqui a sugestão de usar esse artigo como estudo de caso para embasar uma reflexão sobre como deve ser a atuação social no Terceiro Setor. Poderiam ser identificados outros erros cometidos pelo pet shop, além desses 5 apontados?

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.