Ana Moser, Flávio Canto e Torben Grael: lições para o terceiro setor

Por on 11/07/2017

Muitas organizações do terceiro setor começam a funcionar, e seguem funcionando ao sabor das demandas sociais e dos patrocínios que vão surgindo, sem um planejamento claro e consistente sobre aonde querem chegar e como. É por essa razão que, apesar da vontade grande em contribuir para as mudanças sociais, elas acabam fracassando nos primeiros anos de suas vidas.

O debate promovido no Rio de Janeiro, pelo Globo e a Fecomércio em 30 de junho último, sobre o tema “Educação pelo Esporte” reuniu três conhecidos  atletas olímpicos brasileiros para falarem de suas experiências à frente das organizações do terceiro setor que conduzem (veja o vídeo). Torben Grael criou o Projeto Grael (vela) em 1998; Flávio Canto fundou o Instituto Reação (judô) em 2000; e Ana Moser, o Instituto Esporte e Educação (IEE) em 2001.

Desse debate, o que mais me chamou a atenção foi a maneira objetiva e clara como todos três descrevem quem é o público-alvo de suas organizações, as respectivas áreas de atuação, quais os objetivos de resultado, e qual tem sido atualmente a principal dificuldade de gestão. A meu ver, essa clareza no planejamento das iniciativas, que todos três atletas demonstraram ter, é condição essencial para alcançar o tão desejado impacto social. A seguir, ilustro com alguns exemplos mencionados durante o debate.

Quem é o público-alvo?

As três organizações têm o mesmo público-alvo: crianças e adolescentes de baixa renda. Visam contribuir para a inclusão social e o combate à desigualdade – “o que mais machuca é ver uma criança que nasce com oportunidades muito menores do que outras. Isso cria um ciclo de permanência de desigualdades” (Flávio Canto). Mais de 60% dos estudantes brasileiros são tidos como sedentários, ou seja praticam menos exercícios físicos do que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Sofrem de inatividade física e carecem de oportunidades da prática esportiva. (Ana Moser)

Os espaços de atuação das referidas instituições são claramente delimitados. O Projeto Grael / Instituto Rumo Náutico está voltado para crianças e adolescentes (9-24 anos de idade) de Niterói (sede da instituição) que estejam matriculados ou tenham completado o ensino médio na rede pública de ensino desse município; e mais recentemente, provenientes também de Maricá e Nova Iguaçu.

O Instituto Reação (judô) atua em seis “polos” de áreas carentes da cidade do Rio de Janeiro: começou na Rocinha (onde fica a sua sede), e já está também em Jacarepaguá, Cidade de Deus, Tubiacanga, Deodoro e Pequena Cruzada, sempre em parceria com instituições locais.

Já o IEE, da Ana Moser, está estruturado para funcionar por meio dos “núcleos esportivos sócio-educativos (NESEs)” em regiões e comunidades com baixo nível socioeconômico e alto grau de vulnerabilidade, também em parceria com entidades locais – escolas, associações comunitárias, prefeituras, Sesi e Sesc. Atualmente são 22 núcleos distribuídos em cidades como São Paulo (onde está a sede), Rio de Janeiro, Porto Alegre, Nilópolis (RJ), Ponta Grossa (PR) e São Sebastião (SP).

Delimitação das áreas de atuação

Os três institutos trabalham com esporte pois, como não poderia deixar de ser, estão baseados nas expertises dos seus fundadores. Mas não se trata de esporte em geral, eles delimitam muito bem o foco de suas atuações.

Como explica Ana Moser, “o esporte tem três dimensões: o de rendimento, que é aquele que busca a alta performance; o do lazer e bem-estar, que serve para passar o tempo livre, cuidar da saúde e ocupar os espaços livres; e o educacional, que busca a formação dos indivíduos. Cada um deles tem objetivos diferentes e, portanto, é necessário usar estratégias diferentes para se atingir os objetivos. A grande confusão é quando você usa estratégias de uma dimensão para alcançar os objetivos de outra. Acontece muito de levarem para a escola estratégias de alto rendimento, que vão atender só aos que têm mais aptidão física, e não a todos”.

Do que diz Ana Moser, o esporte em si não é necessariamente virtuoso. É preciso adotá-lo com as estratégias corretas, senão os efeitos podem até ser prejudiciais. É o caso, por exemplo, do estimulo à competição esportiva entre adolescentes, que corre o sério risco de provocar baixa autoestima e sentimento de inferioridade em alguns deles, justamente o oposto do que se pretende.

Pode-se afirmar que as três organizações têm o foco central na dimensão educacional do esporte, porém com variantes.

O Instituto Esporte e Educação (Ana Moser) atua em duas frentes: uma, fornecendo atividades físicas regulares e contínuas às crianças e adolescentes; e a segunda, na formação de professores e estagiários e no desenvolvimento da metodologia de ensino do esporte educacional.

O Projeto Grael tem três frentes: oferece aulas regulares de vela adaptadas à faixa etária (esportes náuticos) no contraturno escolar; oferece cursos profissionalizantes para jovens (16-29 anos) para formação de tripulantes e para a capacitação no trabalho em empresas náuticas, que é um mercado carente de mão de obra especializada; e ainda iniciativas de preservação do meio ambiente com o foco no mar.

Por sua vez, o Instituto Reação (Flávio Canto) atua em dois campos da dimensão educacional: oferece aulas de judô a crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos (Reação Escola de Judô); e, para esse mesmo grupo de crianças e adolescentes, oferece oficinas educacionais nas áreas de “cidadania, meio ambiente, arte e cultura, corpo e movimento. Também busca viabilizar o ingresso dos seus melhores alunos em escolas e universidades particulares, com o apoio dos padrinhos e instituições parceiras” (Reação Educação).

Além da dimensão educacional, o Instituto Reação desenvolve a dimensão do rendimento (Reação Olímpico). Rafaela Silva, que era aluna do Instituto, conquistou a medalha de ouro do judô nas Olimpíadas do ano passado, a Rio 2016.

Quais são os objetivos de resultado?

Em todas as três organizações, os resultados pretendidos estão centrados no desenvolvimento integral das crianças e adolescentes atendidos.  Ou seja, usando o esporte como instrumento, a intenção é estimular valores e qualidades nessas crianças e adolescentes, tais como disciplina, respeito (ao outro e a si próprio, como a aceitação das próprias limitações), autoestima, determinação, coragem, humildade, solidariedade, protagonismo e fortalecimento dos vínculos familiares. São resultados diretos que vão impactar, como consequência, no aprendizado escolar, na inserção deles no mercado de trabalho, e na inclusão social.

Como uma evidência de resultado positivo, pode ser citada a resposta de um participante do Instituto Reação, ao ser perguntado se ele era bom no judô: “Olha, de judô eu não sou. Sou ruim. Mas, graças ao judô, descobri que sou muito bom em matemática”.

Principal dificuldade de gestão

Todos os três atletas enfatizaram a dificuldade para fazerem uso dos incentivos fiscais. As organizações que eles lideram são sem fins lucrativos, não são empresas sociais. Isso significa que, para se manterem e cumprirem a sua missão, contam basicamente com doações dos governos, das pessoas e das empresas.

Só lembrando, a Lei de Incentivo ao Esporte no Brasil (Lei 11.438/2006) permite que empresas e pessoas físicas invistam parte do que pagariam de Imposto de Renda em projetos esportivos,  aprovados previamente pelo Ministério do Esporte. As empresas podem investir até 1% desse valor e as pessoas físicas, até 6% do imposto devido.

Como explicou Torben Grael, a burocracia para uso das leis de incentivo é muito grande. “Para cada projeto, para cada ação, é (necessário) uma pilha de documentos a ser incluída na prestação de contas. ….. Você acaba tendo que ter um staff enorme para poder lidar com toda essa burocracia. …. No Brasil, não se pune quem desviou recursos. Pune-se quem trabalha corretamente, aumentando o controle.” Outra falha, segundo ele, é a limitação do uso dos recursos: “as verbas de patrocínio não podem ser utilizadas para pagar as despesas de custeio dos projetos”.

Ana Moser ressaltou a dificuldade das organizações que trabalham com esporte educacional. O que ocorre é que “as ongs que trabalham com esporte de rendimento, ou seja com os projetos de formação de atletas, acabam tendo muito maior visibilidade, e a iniciativa privada, por questões de marketing, opta por eles. …. A lei fala que a prioridade (do patrocínio) é educacional e, em caso de exceção, o rendimento. Mas, na prática, não é o que acontece”.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.