Cultura é perfumaria no Brasil?

Por on 21/06/2019

A discussão sobre a CULTURA no Brasil anda bastante polarizada e inflamada, como deixou claro interessante matéria na Revista Valor (Cultura em Alerta, 18/19 de abril de 2019).  De um lado, estão os que vêm a cultura como um direito constitucional do cidadão brasileiro e dever do Estado, que ficou relegado à “periferia das prioridades dos gestores públicos” frente à crise do setor público. De outro lado, estão os que enxergam a cultura dentro de uma ótica de mercado e negócio, como um setor que precisa urgentemente se reinventar para demonstrar a sua importância no contexto econômico do país.

 

O que são bens culturais?

Para situar essa discussão, os bens culturais podem ser definidos como aqueles bens capazes de evidenciar aspectos históricos, econômicos, sociais de um espaço/tempo. Eles permitem recuperar ou produzir informações sobre o modo de vida das pessoas e sociedades do passado e do presente.  Há três categorias de bens culturais, que são:

  • Bens culturais imateriais: são as formas de fazer e o saber fazer. São exemplos: a música, a literatura, a dança, o teatro, as tradições, as técnicas, as manifestações folclóricas e religiosas, etc.
  • Bens culturais materiais: são exemplos os achados arqueológicos;  paisagens naturais e/ou com interferência humana em áreas urbanas e rurais; bens móveis, objetos de arte, objetos utilitários, documentos arquivísticos e iconográficos; edificações rurais e urbanas.
  • Bens naturais: são os rios, cachoeiras, matas, florestas, grutas, climas, etc.

Assim, a cultura tem papel fundamental na vida de um país, pois representa a identidade de um povo e/ou de uma época, o modo de transferir saberes e aprendizados, sem os quais não se consegue evoluir. Um povo que perde a sua cultura é como uma pessoa que perde a sua memória e, portanto, a sua autonomia, autoestima e capacidades.

 

Cultura: direito do cidadão brasileiro e dever do Estado. Relegado?

A Constituição brasileira de 1988 (art. 215) estabeleceu que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Em decorrência, a Lei 8.313, de 23.12.1991 (que ficou conhecida como Lei Rouanet) instituiu o PRONAC – Programa Nacional de Apoio à Cultura, com o “objetivo de apoiar o acesso à cultura e à produção cultural em todas as regiões do país; apoiar, valorizar as manifestações artísticas brasileiras, proteger nossas expressões culturais e preservar o patrimônio histórico e cultural do país”. O seu principal mecanismo de financiamento é  o incentivo fiscal (art.18) com a União permitindo a aplicação e dedução integral do imposto de renda devido, de até 6% no caso das Pessoas Físicas e de até 4% no caso das Empresas, a título de doação direta (ou patrocínio) a projetos culturais e/ou contribuição ao Fundo Nacional da Cultura (FNC).

Enquanto política pública, a Cultura foi uma pasta do Ministério da Educação de 1952 a 1985 (MEC – Ministério da Educação e Cultura). Alcançou status de Ministério entre mar.1985 e dez.2018 (MinC – Ministério da Cultura), quando foi extinto, em razão da necessidade de racionalização das despesas públicas. Assim, a partir de jan.2019, as suas atribuições foram incorporadas ao Ministério da Cidadania, que passou a englobar também o então Ministério do Esporte e o Ministério do Desenvolvimento Social.

Para alguns críticos, essa extinção do Ministério da Cultura seria o sinal claro do papel secundário da área da cultura nas políticas públicas do nosso país vis-à-vis às áreas da saúde e educação, cujos ministérios foram mantidos.

Para outros críticos, a lei Rouanet, por meio da renúncia fiscal, acabou delegando, a umas poucas grandes empresas e indivíduos ricos, a decisão sobre qual projeto cultural apoiarem – pois somente aqueles que pagam o imposto de renda com base no lucro real podem fazer doações incentivadas. Assim, são esses “mecenas” que determinam os estímulos ao setor cultural em detrimento do Estado.  Na visão desses críticos, a lei gerou uma “minoria de privilegiados” e de “produtores culturais folgados”, sem falar nos desequilíbrios regionais – em 2018, só a região Sudeste recebeu 77% dos recursos incentivados, embora detendo 42% da população nacional.

 

Cultura: ótica de negócio. Possível?  

Uma nova abordagem para a CULTURA, e que vem ganhando adeptos no Brasil, é a de passar a enxergá-la como um negócio como outro qualquer, que pode ser com ou sem fins lucrativos. Dessa maneira tira do Estado o peso de provedor e responsável único por esse setor social – tal como já ocorre na saúde e na educação, com muitas clínicas, hospitais e escolas funcionando no modo privado

Evidentemente haverá situações de bens culturais que dependerão, quase ou totalmente, do apoio do Estado, como por exemplo os bens naturais, em razão do seu caráter de bem público.  Ou ainda haverá outros tipos de bens culturais que,  por alguma razão, não conseguem atrair o interesse de empreendedores culturais e/ou filantropos para a sua preservação. Nesses casos é que o Estado deve entrar para garantir a preservação e o acesso aos bens culturais.

Estudos evidenciam o poder multiplicador do setor cultura. Entre 1993 e 2018, para cada R$ 1,00 investido via lei Rouanet foram gerados R$ 1,59 nas economias locais, com impacto econômico em 68 diferentes atividades econômicas, ai incluídos os setores de turismo, transporte, vestuário, bebidas e finanças.

O ponto é que se os negócios culturais forem geridos de maneira eficiente, com demonstração de resultados, prestação de contas e transparência, sem dúvida são grandes as suas chances de mobilizarem e atraírem volumes crescentes de capital, como qualquer outro negócio econômico bem estruturado.

Sem falar que o momento atual  se mostra favorável à expansão e às novas possibilidades que estão se abrindo no campo da CULTURA, tendo em vista fatores tais como: o avanço da  tecnologia de informação, a massificação dos meios de comunicação e transportes,  modernização dos métodos educacionais, e o envelhecimento da população.

 

Concluindo….

Precisamos urgentemente fazer convergir os dois lados dessa discussão sobre a situação atual da CULTURA no Brasil.  O acesso à cultura é, sim, um direito de todo cidadão brasileiro, e é um dever do Estado garantir esse direito. Que o Estado brasileiro está deficitário e com dificuldades para cumprir esse seu dever é uma realidade; mas há mecanismos coadjuvantes poderosos, como a filantropia e as doações incentivadas, que podem ser estimuladas a partir do aprendizado com as experiências bem sucedidas em outros países.

Por outro lado, o momento atual é bastante favorável ao florescimento do empreendedorismo cultural, com ou sem fins lucrativos. Para isso, vai ser preciso adaptar o olhar e o agir econômicos para o setor.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.