Doar para FUNDO PATRIMONIAL no Brasil?

Por on 24/10/2025

Semana passada li, em uma nota do jornal O Globo, a crítica “no Brasil, falta uma cultura de doações entre o pessoal do andar de cima. Inspirada no modelo das universidades americanas, a PUC-Rio, que formou boa parte da nossa elite, havia criado o seu Fundo Patrimonial em 2019. No entanto, captou até agora apenas R$ 25,7 milhões….. (Agora) a meta é captar R$ 500 milhões nos próximos10 anos.  ….. Com base nesses recursos, cerca de 40% dos alunos da graduação recebem algum tipo de bolsa”.

Será que essa crítica procede? Ou será que essa realidade está mudando em nosso país? O que precisamos para mudar?

A seguir, levanto algumas questões para a reflexão dos filantropos e potenciais filantropos no Brasil.

O que mostra o Monitor IDIS de Fundos Patrimoniais no Brasil?

Inicialmente fui revisitar (21.10.2025) o Monitor de Fundos Patrimoniais no Brasil, iniciativa do IDIS e da Coalizão pelos Fundos Filantrópicos, para o acompanhamento de endowments em atividade no Brasil. Nessa plataforma, os dados são “constantemente” atualizados, de modo voluntário por meio de questionário respondido pelo gestor de cada Fundo.

Questão 1 – Valor global. Por ocasião dessa minha revisita, observei que a grande maioria dos Fundos já está com os seus dados atualizados para 2025.Constam lá 122 fundos patrimoniais ativos, cujo patrimônio total informado é de R$ 137,7 bilhões – sendo que para 21 desses Fundos não há informação sobre o valor do patrimônio.

Valor total satisfatório? À primeira vista, não parece, se considerarmos que no Orçamento do Governo Federal para 2025 estão previstos R$158 bilhões a serem distribuídos só nesse ano a título de Bolsa-Família.

Questão 2Tempo de existência recente. Observando os Fundos Patrimoniais que constavam do Monitor nessa data, pode-se afirmar que boa parte deles foi criada recentemente, após 2019. Isto porque a Lei 13.800/2019 propiciou segurança jurídica à constituição desses instrumentos, ao estabelecer regras de governança, transparência e de relação entre a organização gestora do Fundo e a(s) instituição(ões) apoiada(s).

Questão 3 – Causa mais apoiada. A referida Lei ainda estabelece que para se caracterizar como um Fundo Patrimonial Filantrópico, e diferente de um Fundo Patrimonial genérico, ele deve estar vinculado a uma (ou mais) instituição(ões) apoiada(s) sem fins lucrativos e ligado a causas de interesse público, seja nas áreas de educação, cultura, saúde, ciência, meio ambiente, direitos humanos, etc….

O exame do Monitor IDIS deixa claro que atualmente a causa preferida dos Fundos é de longe a da educação e pesquisa, normalmente vinculada a universidades, instituições de ensino e centros de pesquisa, caso do referido Endowment  PUC-Rio. Assim como nos Estados Unidos, são fundos constituídos por contribuição de ex-alunos em reconhecimento às oportunidades que tiveram junto a essas organizações. São esses fundos vinculados à educação que (numericamente) mais vêm crescendo no Brasil depois da Lei 13.800 / 2019.

Vale destacar que, apesar do termo “filantropia”, não necessariamente as áreas apoiadas pelos Fundos estão relacionadas a questões de combate à pobreza, vulnerabilidade e exclusão social.   Nem mesmo aqueles Fundos voltados para o campo da Educação.

Questão 4 – Distribuição do patrimônio dos Fundos. Fiz um re-arranjo dos dados referentes aos 122 Fundos Patrimoniais que constavam no Monitor IDIS. Agrupei-os segundo o valor do seu patrimônio líquido e, dentro de cada grupo, em ordem crescente pelo ano de sua criação (ver planilha: Anexo). A tabela abaixo sintetiza o perfil dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos no país, segundo o patrimônio  – notar que 17,2% deles não informaram o seu patrimônio.

Verifica-se que apenas um fundo, o da Fundação Bradesco (que é o 3º mais antigo, de 1956), açambarca sozinho 66% do patrimônio global dos fundos apresentados no Monitor. Já 64% dos fundos, com patrimônio de até R$ 100 milhões, detêm apenas 1% do valor total dos patrimônios declarados; enquanto os fundos com patrimônio de R$ 100 milhões até R$5 bilhões, representando 18% do número total dos fundos, são responsáveis por 33% do valor total do patrimônio. O ponto é que a distribuição do patrimônio dos Fundos no país é extremamente concentrada. 

O que me chamou a atenção no grupo dos fundos filantrópicos de menor patrimônio, com até R$ 10 milhões, foi a existência de fundos com patrimônio bem pequeno, como por exemplo o Fundo Endowment Alumni Direito Mackenzie (R$ 2 mil), Fundo Patrimonial da Brasil Startups (R$ 10 mil), Fundo Semear da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (R$ 18 mil), Fundo Patrimonial Amigos do Brasil Central (R$ 60 mil), Associação Fundo Patrimonial Axuxê (Faculdade de Medicina do ABC /SP), Fundo ReCivitas da Renda Básica (R$ 110 mil) e Fundo Patrimonial Amigos .da Univali (R$ 116 mil).

O Endowment PUC-Rio se encontra justamente nesse grupo dos fundos com menor patrimônio. Vale observar que, de acordo com o Monitor IDIS, o seu patrimônio informado é de R$ 7 milhões (em 2025), bem inferior ao que está na referida nota do jornal O Globo (R$ 25,7 milhões).

Dos 122 fundos filantrópicos, metade deles (60 fundos) foi criada de 2019 para cá, sendo que a participação desses fundos “jovens” é bem mais elevada (74%) na faixa dos fundos menores, com patrimônio de até R$ 10 milhões; e segue decaindo nas faixas seguintes, sendo de 41% nos fundos com patrimônio entre R$10 e R$100 milhões, de 14% nos fundos entre R$100 e R$ 500 milhões, e de 0% no grupo daqueles com patrimônio acima de R$ 500 milhões. Ou seja, os fundos com patrimônios maiores tendem a ser os mais antigos.

 

Questões do filantropo: onde ser mais efetivo?

 Questão 5 – Doar para o Fundo Patrimonial Filantrópico. Quando a pessoa decide doar diretamente para um Fundo Patrimonial, ela precisa ter claro que está contribuindo para garantir a sustentabilidade no longo prazo da causa social ou da organização que ela está apoiando. A doação pode ser feita diretamente no site da organização gestora, por meio de doações recorrentes ou única.

|Veja o caso do Fundo Patrimonial da PUC-Rio. No site vem explicando que o Fundo funciona como um “patrimônio permanente”, no qual os valores doados “são preservados e apenas os rendimentos gerados são utilizados para financiar os projetos estratégicos da instituição, como ensino, pesquisa e iniciativas de inclusão educacional”. A Associação dos Antigos Alunos (AAA) da PUC-Rio é a gestora do Fundo e diz assegurar total transparência na gestão dos recursos e no compartilhamento  dos resultados”.

Já no caso do Instituto Sol, voltado para a educação de estudantes de baixa renda (SP), o doador  tem a opção (no próprio site) de doar diretamente para apoiar o público-beneficiário da instituição, isto é, de contribuir diretamente para a realização das  atividades da organização. Ou o doador pode também contribuir para o seu fundo patrimonial.

Como se vê, a ideia de doar para um fundo patrimonial filantrópico é a de deixar um legado para as próximas gerações, considerando o valor social que o doador atribui à uma dada causa social, ou uma organização filantrópica, ou uma organização de interesse público.

Fazendo um parêntesis, vale lembrar que nem sempre uma organização de interesse público é também uma organização filantrópica  (ou beneficente), entendida como aquela que é voltada basicamente para atender às pessoas em situação de vulnerabilidade social e a prestar serviços gratuitos. É o caso, por exemplo, da Fundação OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de SP), que é uma organização sem fins lucrativos e de interesse público, porém sem ser filantrópica.  

Questão 6 – Desafio da sustentabilidade no curto prazo.   Certa vez, conversando com o dirigente de uma grande organização filantrópica, ele me disse que a sua instituição tinha um patrimônio elevado, em termos de bens e terrenos que haviam sido doados ao longo de sua existência (em torno de R$ 600 milhões). Porém, o grande desafio da instituição era ter que arcar com as despesas de custeio do dia-a-dia, que no final do ano chegavam à casa dos R$ 60 milhões, ou seja, 1/10 do patrimônio.

O lema da instituição é o de preservar o patrimônio, e usar apenas os rendimentos para bancar as despesas de custeio. Como se vê, lema semelhante à lógica do fundo patrimonial. Só que no balanço financeiro anual da referida instituição, esses rendimentos representam apenas em torno de 6% das despesas correntes da instituição. Assim, o grosso das receitas correntes para garantir o seu funcionamento é proveniente sobretudo de doações de empresas e pessoas físicas, e de captação de recursos via leis de incentivo fiscal e realização de eventos. Segundo ele, é um trabalho árduo o ano inteiro para conseguir mobilizar recursos e poder manter o trabalho social. Pois, se não conseguir, torna-se imperioso reduzir o atendimento social prestado.

Assim, a considerar o desafio de manter a instituição funcionando no presente e buscando atender cada vez melhor, o doador tenderia a optar pela doação direta para aquelas organizações do Terceiro Setor cujo trabalho ele valoriza.

Questão 7 – Riscos da perda de efetividade. Penso que doar para um fundo patrimonial filantrópico não necessariamente é garantia de potencialização dos impactos sociais dos recursos doados. E por quê? Há que se reconhecer que existem riscos inerentes aos vários níveis das exigências regulatórias ao longo do trajeto a ser percorrido por esses recursos (sobre esse “trajeto”, ler o artigo – Fundos patrimoniais vão mudar a cultura da doação no Brasil?). Esses riscos podem ser do tipo: (i) falhas na gestão e na aplicação financeira dos recursos investidos sob a responsabilidade da ‘Organização Gestora`; (ii) burocracia e custos elevados da ‘Organização Gestora` para poder cumprir o seu papel da seleção e do acompanhamento do trabalho da(s) ‘Organização(ões) Apoiada(s)`; (iii) erros no planejamento e gestão das própria(s) ‘Organização(ões) Apoiada(s)`.

Por sua vez, ao doar diretamente para a manutenção e os projetos finalísticos da instituição executora, seja ela de interesse público ou filantrópico, os riscos de perda de efetividade dos recursos doados estão associados apenas ao nível (iii) acima, ou seja, aos erros de planejamento e gestão das própria(s) organizações executoras. Quer isso dizer que, no caso de uma organização com gestores competentes, esses riscos poder estar minimizados. E, daí, doar diretamente para a organização executora pode ser uma maneira de potencializar o impacto, aproveitar as oportunidades que se apresentam, e expor os recursos doados a menos a riscos de percurso.

Concluindo, podemos dizer que os fundos patrimoniais filantrópicos no Brasil ainda são incipientes. O que o Monitor IDIS mostra é que, salvo algumas exceções, são em sua maioria pequenos e “jovens”. Para que esses Fundos possam se fortalecer, enquanto instrumentos de poupança para garantir a continuidade no futuro do trabalho de organizações do Terceiro Setor de interesse público e filantrópicas, duas condições se fazem necessárias.  

Primeiro, a atuação presente dessas organizações do Terceiro Setor precisa se consolidar e ser percebida como relevante, de modo a ser capaz de atrair apoios para o seu Fundo Patrimonial. E, para isto, essas organizações precisam de doações no presente para financiar e viabilizar o seu desempenho atual.

Segundo, os mecanismos de funcionamento dos fundos patrimoniais precisam ser melhores elucidados e entendidos. Caso contrário, pode começar a pairar certa “cortina de fumaça” sobre esses recursos, como sendo “uma montanha de recursos doados, de diferentes procedências, que vão sendo aprisionados sob a promessa de um uso futuro generoso”.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.