Filantropia no Brasil: entender para crescer

Por on 08/11/2022

Se queremos estimular a cultura da doação no Brasil, de vez em quando pode ser produtivo dar uma “parada” e refletir sobre o que a filantropia significa em nosso país. Assim, precisamos retomar algumas perguntas antigas, fazer novas, e aos poucos trilhar o caminho para fazer a filantropia crescer, unindo potenciais doadores, querendo doar da forma certa (dinheiro, tempo, etc…), às muitas organizações e iniciativas do bem, atuando da forma certa.

Para começar, cabe deixar claro que filantropia é doação ou investimento social privado  (de dinheiro e de tempo) com a expectativa de gerar resultados sociais positivos, buscando aliviar dores e sofrimentos e/ou transformar vidas. Não há aqui a expectativa do retorno desses recursos alocados (principal + rentabilidade)   – o que hoje em dia se convencionou chamar por “investimento de impacto’ ou “investimento com retorno social e econômico”.

Vamos, então, às perguntas para melhor entender a filantropia no Brasil.

1 – Qual a distinção entre Filantropia e Setor Não-Lucrativo?

Muitas pessoas tendem a confundir Filantropia com o setor não-lucrativo, ou com as  Organizações da Sociedade Civil (OSCs), ou as Organizações Sem Fins Lucrativos (OSFLs), ou as Fundações e Associações Privadas Sem Fins Lucrativos (FASFILs) ou mais genericamente com o Terceiro Setor. Importante distinguir que a Filantropia é apenas uma das fontes de renda desse setor não lucrativo, para além do setor público (ou Primeiro Setor) e do setor privado lucrativo (ou Segundo Setor, ou empresarial).

Referência em definir e padronizar esse setor em âmbito internacional foi o estudo da John Hopkins University (EUA) em 1997 sob a coordenação do prof. Lester Salamon. Na época (e válidos ainda hoje) foram definidos os 5 critérios básicos a serem, todos eles atendidos, pelas organizações que compõem esse setor, a saber: (i) ser privada, quer dizer não estar juridicamente vinculada ao Estado; (ii) ser legalmente instituída, isto é, ter cnpj; (iii) ser sem fins lucrativos, ou seja, pode até ter lucros mas não pode haver distribuição entre os  seus gestores ou “fundadores”; (iv) ser auto-administrada; (v) ser voluntária, ou seja, a sua criação não atende a obrigação legal.

Tomando por base esse estudo comparativo feito para 22 países (não conheço outro mais recente), vemos que em 1995, o setor não lucrativo no Brasil (incluindo aí o trabalho voluntário e não incluindo o segmento religião/cultos) gerou despesas em torno de 1,6% do PIB e absorveu 2,5% do total dos empregos (remunerados + voluntários), sendo que 16% da população adulta afirmou realizar algum trabalho para OSFL (ou OSC). Do total da renda movimentada no setor, 69,2% provinham de cobranças por serviços prestados (sobretudo nas áreas de educação, saúde e cultura), 14,5% vinham do setor público, e (apenas) 16,3% provinham da filantropia (de indivíduos, empresas e fundações sobretudo nas áreas de serviço social).

A título de contextualizar o Brasil, veja os números dessa mesma pesquisa obtidos para os Estados Unidos, país tido como o berço do setor não-lucrativo no mundo. Lá o setor movimentou em torno de 8,3% do PIB e ocupou 11,9% do total dos empregos, sendo que 49% da população afirmou fazer algum tipo de trabalho voluntário para OSFL. Do total da renda no setor, 47,4% vieram da cobrança por serviços, 25,6% do setor público e 26,9% da filantropia.

Como se vê, dentro desses dois países, os recursos da filantropia têm o mesmo peso dos repasses públicos para o financiamento do setor não-lucrativo, sendo ambos de aproximadamente 15% no Brasil e de 26% nos EUA. Assim, e diferente do que se tende a supor, a filantropia tem um peso relativamente pequeno no financiamento das organizações sem fins lucrativos no seu conjunto.

Também vale notar que o setor não-lucrativo no Brasil ainda é relativamente acanhado quando comparado ao dos EUA, tanto em termos de sua participação no PIB (1,6% contra 8,3%) como no total dos empregos gerados (2,5% contra 11,9%).

2 – Como está constituído o setor não-lucrativo no Brasil?

No Brasil  existem pelo menos dois grandes levantamentos sobre a estrutura do nosso setor não-lucrativos. Ambos estão baseados na padronização internacional proposta pela John Hopkins University e depois encampada pela ONU. Primeiro, tivemos 4 edições da pesquisa ‘Fundações e Associações Privadas Sem Fins Lucrativos` (FASFIL) conduzida pelo IBGE,  sendo a última publicada em 2019 com dados de 2016. E depois tivemos em 2017 o lançamento do portal do Mapa das Organizações da Sociedade Civil (OSCs), coordenado pelo IPEA.  

Pela Pesquisa da FASFIL, havia (2016) no Brasil 236 mil organizações, e pelo Mapa das OSCs tínhamos registradas 782 mil  segundo atualização de nov.2021.   De imediato, já se pode perceber que os dois levantamentos partem de bases de dados distintas – a do IBGE leva em conta as informações de emprego formal da RAIS / CAGED, e a do IPEA utiliza um universo maior de bases de dados do governo federal a partir da Secretaria da Receita Federal (SRFB), sendo também estimulado o autopreenchimento pelas próprias organizações.

Vale lembrar que o Mapa surgiu em decorrência do ´Marco Regulatório das OSCs` (Lei 13.019 / 2014), que definiu regras de parceria entre as OSCs e o poder público.

Tendo por base o Mapa das OSCs e considerando a finalidade de atuação, o maior número de organizações está concentrado na área de desenvolvimento e defesa de direitos (36%), seguido por religião (30%), cultura, esporte e recreação (11%); vindo bem atrás, educação e pesquisa  e assistência social (ambos com 4%%) e saúde (1%). Porém, quando se trata de número de pessoas remuneradas ocupadas nessas áreas, a situação se inverte com o maior percentual em saúde (37%), educação e pesquisa (24%), desenvolvimento e defesa de direitos (13%), religião e assistência social ( ambos com 7%) e cultura, esporte e recreação (4%). Constata-se, pois, a predominância de organizações de grande porte nas áreas de saúde e educação, como hospitais, escolas e universidades.

Já em se tratando da classificação das OSCs segundo a  sua natureza jurídica, as associações privadas (aí incluídos os institutos) representam a grande maioria delas (81%), vindo depois as fundações privadas (17%), as organizações religiosas (1,5%) e as organizações sociais (0,2%), essas últimas criadas pela Lei 9.637 (1998).  Já por organização religiosa entenda-se (no Mapa) a “organização que se dedica a atividades de cunho social, distinta daquelas com fins exclusivamente religiosos”.

3 – O brasileiro é generoso?

Difícil formar uma posição em relação a esse questionamento, quando se observa a evolução do Brasil no contexto da série histórica do World Giving Index – WGI (ou Índice Global das Doações), estimada anualmente para diversos países pela Charities Aid Foundation (CAF) desde 2010.

A composição do Índice Global das Doações é simples, sendo formada pela média aritmética simples dos percentuais apurados para as respostas dadas a 3 perguntas básicas, que são:  “No último mês (i) você ajudou um estranho, ou alguém que você não conhecesse e que estivesse precisando de ajuda? (ii) você doou dinheiro para alguma organização sem fins lucrativos? (iii) você fez trabalho voluntário para alguma organização SFLs?” Em outras palavras, o Índice representa o percentual médio de pessoas generosas em um país.

Observando-se a evolução recente do Brasil segundo o índice Global das Doações, uma primeira constatação é a de que há um desempenho errático em termos da generosidade no país, com grandes alterações em poucos anos (seja para baixo ou para cima).  Assim  não se pode (ainda) atribuir um padrão de generosidade no Brasil  (ou a explicação alternativa é a de que poderia haver algum problema de estimativa nos dados do WGI).  Senão, vejamos os números:

  • Em 2016 (ano de referência 2015), o índice Global médio das doações no Brasil ficou em 34% (quanto mais perto de 100%, melhor), sendo o Brasil classificado em 68º lugar dentre os 140 países pesquisados (quanto mais próximo do 1º lugar, melhor). O Brasil poderia ser classificado como “média generosidade”.
  • Em 2018 (referência 2017), o índice piorou bastante (sendo de 23%), e a classificação despencou para 122º lugar (total de 144 países). O Brasil seria classificado como “muito baixa generosidade”.
  • Em 2021 (ano de referência 2020), o índice deu uma melhorada (foi de 35%), e ficou classificado em 54º lugar (total de 114 países), podendo ser considerado como “média generosidade”. Vale lembrar que 2020 foi o ano inicial sob efeito da pandemia da Covid-19, tendendo a afetar de forma positiva a generosidade nos países. 
  • Em 2022 (ano de referência 2021), o índice deu um outro salto significativo para 47%, e o ranking do Brasil foi o 18º (total de 119 países), podendo, então, ser considerado como país de “elevada generosidade”.  

Como se vê, no decorrer de apenas seis anos, o Brasil foi de “média generosidade” para “muito baixa generosidade”, e depois para “elevada generosidade”.  Assim, ficamos sem ter ainda uma resposta para o grau de generosidade do brasileiro.

Da série histórica do WGI de 2010 para cá, outra constatação é a de que não há uma correlação direta entre renda dos países e o seu grau de generosidade, no sentido de que países mais ricos tenderiam a doar/ajudar mais e países mais pobres tenderiam a doar /ajudar menos. Assim, por exemplo, com base nas estimativas do WGI 2022, veja que entre os países mais generosos estão os “pobres” Kenya (2º lugar), Serra Leoa (7º lugar) e o Zâmbia (9º lugar) mas estão também os “ricos” Estados Unidos (3º lugar), Australia (4º) e o Reino Unido (17º). Já entre os países menos generosos estão os ricos Japão (118º ) e Portugal (114º), mas também os pobres e sofridos Afeganistão (117º) e Cambodia (119º).   

4 Os Fundos Patrimoniais Filantrópicos estão avançando no Brasil?

Os Fundos Patrimoniais Filantrópicos (também conhecidos como endowments) representam uma modalidade de doação de dinheiro (investimento social sem retorno), de forma planejada e monitorada, para determinadas causas sociais e/ou OSCs selecionadas por seu(s) filantropo(s). É uma modalidade já bastante tradicional em alguns países, como por exemplo nos EUA.

No Brasil, ainda é forte a predominância do segmento empresarial no conjunto do investimento social privado. Assim, segundo os dados do Censo GIFE 2020,  do total dos investidores sociais privados associados ao GIFE (161 organizações), 65% tinham caráter empresarial (empresas + institutos / fundações e fundos filantrópicos empresariais), 20% familiar (institutos, fundações e fundos filantrópicos) e 15% independentes (institutos, fundações e fundos filantrópicos).

Importante entender que no caso dos institutos, fundações e fundos familiares, eles são criados e mantidos por uma família ou indivíduo que se envolve na sua governança e/ou gestão (ex: Fundo Patrimonial do Instituto Ayrton Senna; Fundo Patrimonial da Fundação Tide Setúbal). Já os institutos, fundações ou fundos filantrópicos independentes são criados e mantidos por mais de uma organização e/ou indivíduo, de origens diversas (ex: Endowment PUC-Rio;  Fundação/ Instituto Singularidades).

O setor não-lucrativo é bem recente no Brasil. Basta ver que do total dos investidores sociais privados associados ao GIFE, 62%  deles foram criados a partir de 2000, sendo que dentre os institutos, fundações e fundos filantrópicos familiares esse percentual chegou a 84% (Censo GIFE, 2020).

O Monitor IDIS dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, que é uma plataforma online com atualização permanente pelos gestores dos respectivos fundos, aponta também nessa mesma direção. Do total dos 57 Fundos que compõem atualmente a Plataforma, 10 deles (ou 17%) foram criados só  nesses últimos dois anos, 2021 e 2022 (posição 05 nov.), sendo a maior parte  de caráter independente e associados a universidades.

Vale destacar ainda que os fundos patrimoniais familiares e os independentes estão começando a deslanchar no Brasil, sobretudo depois da Lei 13.800 /2019 que regulamentou a constituição e o funcionamento dos fundos patrimoniais filantrópicos no país. Com a Lei passou a haver separação entre a organização que gere os recursos e as organizações apoiadas / executoras, garantindo maior segurança jurídica e contábil ao patrimônio doado. Porém, diferente dos EUA, não são concedidos aqui no Brasil incentivos fiscais para estimular a destinação de recursos aos fundos patrimoniais.

5 – Quais os diferentes modos de fazer filantropia?

Filantropia pode também ser entendida como uma maneira de retribuirmos à sociedade (do inglês: “give back”) as muitas oportunidades que tivemos ao longo de nossas vidas, como uma boa família, boas escolas, bons trabalhos, boa saúde, e por aí vai….

No Brasil, identifico atualmente três grandes maneiras de se fazer filantropia, que são:

Fundos Patrimoniais Filantrópicos (em inglês:  endowments) – Como visto acima, há  3 tipos básicos: empresariais; familiares; e independentes. Se houver maior sensibilização e conscientização da população para a relevância  da filantropia, todos esses três tipos podem crescer significativamente.

Os fundos patrimoniais filantrópicos empresariais já contam a seu favor com o movimento ESG (Environmental, Social and Governance) no sentido  de selar o compromisso das grandes empresas com as políticas públicas.

Os fundos patrimoniais filantrópicos familiares estão associados às famílias muito ricas. E, segundo a pesquisa do Credit Suisse, Global Wealth Report 2022, a expectativa para a taxa de crescimento 2021-2026 do número de milionários no Brasil (pessoas adultas com riqueza financeira e não financeira superior a US$ 1 milhão) é das mais elevadas, de 115%, dentre os países pesquisados, enquanto nos EUA essa taxa é de apenas 13%.

Já em se tratando dos fundos patrimoniais filantrópicos independentes,  o que se percebe é que esses fundos  estão começando a ganhar tração entre os mais jovens da classe média alta – as chamadas geração Y (nascidos entre 1980-1994) e Z (de 1995 a 2015). Basta ver a velocidade com que eles vêm surgindo só de 2021 para cá, quase sempre associados a universidades, como por exemplo: Chronos/USP São Carlos, Conecta /UFBA, Fundo Amanhã /UFRGS. Fundo Patrimonial da USP, Prospera/UNESP, Redictus / UFRJ-alunos e Sempre Sanfran /Direito USP.

Apoiar diretamente uma OSC – Seja por meio da doação de recursos financeiros ou do trabalho voluntário. Aqui são os indivíduos, as famílias, os jovens e os aposentados que decidem “ajudar” e “retribuir” o muito que receberam em vida.

Todavia, o grande desafio continua sendo conseguir a conexão entre as OSCs e os potenciais filantropos. Como atrair e gerar comprometimento voluntário, porém firme, dos indivíduos e das famílias para com as OSCs?

A meu ver, de nada ou muito adianta a solução de ampliar o telemarketing das OSCs. Precisamos criar e estimular um ambiente de seriedade e confiança de ambos os lados: (i) a organização precisa mostrar o seu trabalho, abrir as suas informações, expor fragilidades e fortalezas para conquistar potenciais apoiadores; (ii) cada indivíduo e família precisa identificar a(s) causa(s) social(is) do coração, fazer um levantamento sobre como pode e quer contribuir, e assumir um compromisso de responsabilidade para com aquela(s) organização(ões) que decidir apoiar.

Atitudes de generosidade do dia a dia  –  Dentro do espírito de cidadão consciente e sensibilizado para as dificuldades do “próximo”, podem ser incluídas aqui atitudes do tipo doações esporádicas, campanhas emergenciais, e também ajudas pontuais por meio de gestos e palavras.

CONCLUINDO, importante entender que a renda movimentada no setor não-lucrativo como um todo vai muito além da filantropia. A filantropia é um campo novo no Brasil, com muito espaço para crescer. Quando comparado aos EUA, corresponde a um percentual muito pequeno do PIB e  com baixo nível de trabalho voluntário. Vimos que a legislação do setor não-lucrativo no Brasil  é recente, tanto no que se refere à regulamentação das OSCs (2014) como dos fundos patrimoniais (2019), tendo havido resposta rápida aos estímulos gerados por esses últimos.

Parece não existir relação entre riqueza e generosidade. Mesmo assim, sob a ótica da filantropia, acredito que a expectativa de a taxa de crescimento dos “milionários” no Brasil ser das mais altas do mundo nesses próximos anos possa ter efeito positivo para o fortalecimento dos fundos filantrópicos e do apoio direto às OSCs. Porém, o mais fundamental para fazermos a filantropia crescer em nosso país é identificar e construir mecanismos de doação, capazes de atrair e fidelizar doadores com determinadas causas e organizações. É uma questão que precisa ser aprofundada.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.