Filantropia sob fogo cruzado

Por on 26/02/2019

Sou forte defensora da filantropia. Ela pode ser um aliado importante do Estado na solução dos problemas sociais e das questões de interesse público. Sem falar que, comparativamente à ação do setor público, a filantropia tende a ter muitas vantagens, como horizontes longos de atuação (não subordinados aos ciclos de governo), mais dinamismo e menos burocracia, mais proximidade com as comunidades atendidas, mais efetividade e maior eficiência.  Todavia, no último Fórum anual de Davos na Suiça (jan. 2019), a filantropia foi alvo de pesadas críticas, sobretudo dos grupos ditos “de esquerda”.

Apresento, a seguir, algumas dessas críticas que foram trazidas, por ocasião desse último encontro de Davos, por NicK Cohen, do jornal The Guardian, e em entrevista do escritor americano de origem indiana, Anand Giridharadas, ao jornal Financial Times.

  1. Ao invés de financiarem um Estado melhor, os filantropos se escondem atrás de suas doações caritativas – como fizeram Adão e Eva atrás das “folhas de figo”.

2.   É comum ouvir as pessoas falarem a linguagem da participação, justiça, igualdade e transparência, mas quase ninguém levanta as questões que realmente importam, que são a da evasão fiscal e o fato de os ricos não contribuírem com uma participação justa.

3.   O Estado não tem o direito de forçar os ricos a ajudarem os outros. Com a tributação, o Estado tira deles essa liberdade de escolherem se querem ou não serem virtuosos. Pois virtude forçada não é virtude.

4.  Michael Dell, tido como o “magnata da computação”, riu muito quando perguntado em Davos se, sendo ele o 39º homem mais rico do mundo, ele não deveria pagar mais impostos. Ele respondeu que ele e a esposa criaram e mantêm uma fundação, e que é ridícula a sugestão de taxar em 70% a renda dos muito ricos nos EUA. E ainda acrescentou: mencione um país onde a taxação elevada funcionou bem?

De fato, olhando o site da Michael & Susan Dell Foundation, a instituição parece fazer um bom trabalho, “dedicado a transformar vidas de crianças morando em situação de pobreza nas áreas urbanas, buscando melhorar as condições de educação, saúde e a estabilidade econômica de suas famílias”. Suas áreas de atuação são os Estados Unidos, índia e África do Sul.

5. Voltando ao questionamento feito acima por Michael Dell, um dos participantes em Davos respondeu que nos EUA a alíquota máxima sobre as rendas mais elevadas foi de 70% entre 1930 a 1970, e que aqueles foram bons anos para o crescimento econômico do país. Hoje em dia, depois dos cortes nos impostos promovidos pelo governo Trump, as alíquotas máximas estão longe disso, com as empresas e os indivíduos mais ricos daquele país pagando o teto de “apenas” 37%. No Brasil, esse percentual máximo é de 27,5%.

6. O crescimento vertiginoso da riqueza e da filantropia do Vale do Silício nessa última década demonstrou que, lá, riqueza e filantropia se fundiram numa única dinâmica. E por que seria? Por que passou a haver mais dinheiro para as doações? Ou seria por que passou a ser necessário, cada vez mais, driblar o governo para pagar menos impostos?

O argumento dos bilionários do Vale do Silício é o de que os aplicativos (criados por eles) podem fazer muito mais pela população do que os governos eleitos.

7.  Os executivos das grandes corporações seguem “evangelizando” sobre as suas companhias, fazendo uso das teorias do triple bottom line, do investimento social privado, e da empresa com propósito social. No entretanto, o próprio criador do conceito do triple bottom line, John Elkington acabou de propor recentemente a sua revisão  (HBR, jun 2018), tal o desgaste sofrido: de estratégia de transformação do capitalismo acabou transfigurado em mera ferramenta de prestação de contas das empresas.

Particularmente no que se refere ao setor da filantropia no Brasil, penso que todas essas críticas deveriam ser examinadas com cuidado, separar o que procede e o que não procede, e começar a agir sobre aqueles aspectos que possam contribuir para melhorar a nossa realidade social.   São pontos que merecem uma reflexão séria, abrangente e não ideológica. E que não dizem respeito apenas a quem atua no terceiro setor, mas também a quem atua no setor público e no setor privado. O desafio é encontrar os melhores arranjos para potencializar impactos.

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3 Comentários
  1. Responder

    Maria Inês

    01/03/2019

    “Particularmente no que se refere ao setor da filantropia no Brasil, penso que todas essas críticas deveriam ser examinadas com cuidado, separar o que procede e o que não procede, e começar a agir sobre aqueles aspectos que possam contribuir para melhorar a nossa realidade social. São pontos que merecem uma reflexão séria, abrangente e não ideológica.”
    Dra. Maria Cecília, achei que a senhora faria alguma reflexão sobre as críticas feito por Nick Cohen. Fica a sugestão para que a senhora nos traga algumas delas num próximo artigo.

    • Maria Cecilia Prates Rodrigues
      Responder

      Maria Cecilia Prates Rodrigues

      11/03/2019

      Cara Maria Inês, obrigada por seu comentário. Nesse artigo o objetivo foi justamente o de trazer e sistematizar, para o caso do Brasil, as críticas de que a filantropia vem sendo alvo em âmbito mundial, sobretudo as que foram levantadas nesse último Fórum de Davos(jan. 2019).
      Como mencionado no último parágrafo do post, fica lançado o novo desafio: fazer, para o caso da filantropia NO BRASIL, essa reflexão do que procede e o que não procede…. Será certamente objeto de um próximo post a escrever!

      • Responder

        Maria Inês

        11/03/2019

        Certamente, será um artigo de grande interesse! Obrigada pelo seu retorno, Dra. Maria Cecília..

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.