JBS e Sustentabilidade: pode haver coerência?

Por on 29/05/2020

Com a crise da Covid-19, a JBS, multinacional de origem brasileira e maior processadora de carnes do mundo, está se mostrando como uma empresa cidadã, que “alimenta o mundo com solidariedade” e defende que “fazer o bem faz bem” (site JBS). Entretanto, há apenas 3 anos foi revelada uma das maiores histórias de corrupção no Brasil, protagonizada pela JBS.  Pode haver coerência nesses dois papéis extremos da companhia, em tão curto espaço de tempo? 

 

2020:  Frente à pandemia, exemplo de empresa sustentável e cidadã

A doação – Em 13 de maio último, a JBS anunciou a doação de R$ 700 milhões para ajudar no combate à Covid-19, sendo R$ 400 milhões para o Brasil e R$ 300 milhões para os Estados Unidos e outros países em que a empresa atua.

No caso do Brasil, a intenção explicitada com a doação é a de deixar um “legado”, no campo da saúde pública e da tecnologia e pesquisa.  A aplicação dos recursos será feita “unindo a capilaridade da empresa e a sua agilidade na execução de projetos e negócios”, sob a supervisão de uma equipe da própria empresa, com o apoio de um comitê consultivo formado por médicos e executivos de hospitais renomados. Desses R$ 400 milhões previstos, R$ 330 milhões serão para a saúde pública (construção de 17 hospitais modulares “permanentes” e implementação de UTIs), R$ 50 milhões para pesquisa e tecnologia, e R$ 20 milhões para ONGs em projetos de combate à fome e cursos de qualificação profissional. Ao todo, serão beneficiados 162 municípios em 17 estados do país.

Mantendo empregos e investimentos – No fim de março, já em plena crise do coronavírus mundo afora, a JBS divulgou o seu balanço 2019, reportando “o melhor resultado da história com lucro líquido de R$ 6,1 bilhões”.  O atual CEO global da JBS, Gilberto Tomazoni, reconhece que “a empresa está em posição  privilegiada, ….. e que nunca esteve tão bem para atravessar a turbulência”.

Daí, segundo Tomazoni, a empresa se compromete a manter os empregos, mesmo com a crise – são 240 mil no mundo, e 120 mil só no Brasil.  E vai tomar todas as medidas necessárias para proteger os seus funcionários, como (no Brasil) dobrar a frota dos ônibus que fazem o transporte coletivo deles, de modo a viabilizar o distanciamento físico.  E, na condição de empresa atuando em “setor essencial” da economia, segue produzindo alimentos seguros e de boa qualidade. Apesar da pandemia, a JBS também não irá fazer alteração no ritmo dos seus investimentos previstos para os próximos 5 anos, de R$ 8 bilhões para o Brasil, com a  geração de 25 mil empregos diretos.

 

2017-2019:  Exemplo de empresa corrupta

Ao longo de 2017 e 2018, os irmãos Joesley Batista e Wesley Batista chegaram a ser presos e soltos por diversas vezes. Eles são os filhos de José Batista Sobrinho, fundador da JBS,  e ocupavam os cargos máximos na direção da companhia –  Joesley era o presidente do Conselho de Administração, e Wesley o diretor-presidente da JBS S.A.

Parece que foi a partir de 2007 que os irmãos Batista começaram a construir um dos maiores esquemas de corrupção no Brasil, mediante o pagamento de propinas e doações indevidas,  com o envolvimento de 3 presidentes da República, ministros de Estado, diversos políticos e outras autoridades públicas. O objetivo era conseguir vantagens e benefícios para a companhia, como: informações privilegiadas, acesso a crédito e empréstimos bilionários junto ao BNDES (com o argumento de “empresa campeã nacional”) e órgãos públicos.

O esquema de corrupção dos negócios culminou, em setembro de 2017, com a prisão dos dois irmãos que, para serem soltos, viraram “delatores” e assinaram Acordo de Leniência com o Ministério Público Federal, em que se comprometeram a pagar multa de R$ 10,3 bilhões em 25 anos.  Daí, foram soltos, e estão atualmente em liberdade vigiada, mediante o uso de tornozeleiras eletrônicas. Seguem reclusos em suas casas em São Paulo, e evitam ir a locais públicos porque são xingados de “ladrões”, “safados” e “pilantras”.

Assim que  os irmãos foram presos, o Conselho de Administração da JBS S.A. elegeu por unanimidade  José Batista Sobrinho, fundador da JBS, como presidente da companhia (para  completar o mandato de Wesley). Ele estava com 84 anos de idade e, embora afastado do dia-a-dia da empresa, afirmou que se sentia “orgulhoso de reassumir a empresa que fundou, e que tinha muita confiança no desempenho de suas lideranças”.

Todavia, a sua nomeação contrariou a vontade do BNDES, maior acionista individual da JBS, que detinha 21% do frigorífico e “lutava” para afastar a família do negócio  (atualmente a holding J&F Investimentos participa com 36,6% na JBS).

 

Por que a corrupção? Breve história da JBS

José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro como era conhecido, nasceu em Alfenas (MG) e, ainda criança, a família dele mudou-se para Anápolis (Goiás).  Ele conta que a história da JBS começou na pequena Anápolis, em 1953, quando iniciou uma pequena fábrica com capacidade de processamento de apenas cinco cabeças de gado por dia. Começava o dia às 3h da manhã e só voltava para casa depois das 18h. Na época, fazia de tudo. Comprava o boi, abatia, pagava e recebia. Depois ele abriu um pequeno açougue, a Casa de Carne Mineira.

A construção de Brasília foi uma excelente oportunidade que se abriu logo em seguida, em 1957. Começou a surgir “um consumo grande de carne, além dos 4 anos livres de impostos que o Presidente Juscelino Kubitschek  deu para atrair fornecedores para lá”. Então seu Zé Mineiro foi para lá, comprou um pequeno açougue em um supermercado, passou a fazer abate, desossar e fornecer carne bovina para 12 empresas. Desde cedo, os filhos começaram a trabalhar com o pai.

Ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, os negócios com frigoríficos (que passaram a se chamar Friboi em 1971) se expandiram por todo o estado de Goiás, Mato Grosso e São Paulo.  Em 1996 a Friboi começou a exportar; em 2004, instalou a sua sede em São Paulo; em 2005, deu início ao processo de internacionalização ao adquirir as operações da Swift na Argentina. Em 2007, a companhia abriu capital na bolsa de valores do Brasil, e passou a se chamar JBS – que incluia a Friboi. Foi a partir de então que o ritmo das aquisições começou a se acelerar fortemente, com a compra da Swift nos EUA e na Austrália.

É o que admite o próprio fundador da JBS,  “o  negócio cresceu mais depois que a meninada pegou. Adquirindo empresas em países completamente diferentes, com outros costumes e idiomas. Mas dando certo“.   Assim, sob o comando de dois dos seus 6 filhos, Joesley e Wesley, a expansão veio “agressiva”. E tal não se verificou apenas com a JBS, mas trouxe a reboque a J&F Investimentos, que é a holding controladora dos investimentos da Família Batista, seja na JBS como nas empresas de diferentes setores que foram sendo adquiridas.

Atualmente, a J&F se define como o “maior grupo empresarial do Brasil”, que está presente em 190 países, e suas empresas atuam nas áreas de alimentos, celulose, energia, serviços financeiros, comunicação, cosméticos e higiene e limpeza, sendo elas, conforme estão apresentadas no site:

  • JBS – Uma companhia global de alimentos (Principais marcas: Friboi, Moy Park, Pilgrim’s Pride, Primo, Seara, Swift, Gold’n Plump e Frangosul. Atua também nas áreas de couro, colágeno, embalagens metálicas, biodiesel e transportes)
  • Banco Original – Primeiro banco no Brasil 100% digital ( 3 milhões de clientes)
  • Eldorado Brasil – Celulose sustentável do Brasil para o mundo
  • PicPay – Uma nova experiencia entre você e o seu dinheiro (primeiro “super app financeiro do Brasil”, sendo a maior carteira digital do país)
  • Canal Rural – Principal plataforma de comunicação para o agronegócio do Brasil
  • Flora – Qualidade que o consumidor reconhece em limpeza e higiene (Flora é o nome da matriarca da família. Detém 18 marcas, entre elas Minuano, Francis, Ox e Neutrox)
  • Âmbar – Contribuindo para diversificar a matriz energética brasileira (Desenvolve, implanta e explora projetos nos segmentos de Geração Térmica e Transmissão / gasodutos)

O conglomerado chegou a ser bem maior em 2017. Mas para bancar o pagamento de multas e ajustes acertados no âmbito do Acordo de Leniência, a família Batista teve que assumir um programa de desinvestimentos na JBS, além de vender a sua participação no grupo Alpargatas (para a Itaúsa), Vigor (para a mexicana Lala), e parte da participação na Eldorado Celulose (para o grupo holandês Paper Excellence BV).

A história da JBS parece ser a história de uma empresa familiar, que começou virtuosa, fruto de muito trabalho e esforço do seu fundador e de sua família. Souberam aproveitar as oportunidades de negócio que foram surgindo. Porém, em certo momento dessa trajetória, possivelmente por volta de 2007, a ambição desmedida conseguiu desvirtuar a lógica de operar dos seus dirigentes, que passaram a adotar padrões permissivos e pouco éticos onde os fins justificam os meios.

Buscando entender a coerência / incoerência…..

Ambição é a vontade firme de alcançar um propósito, de ser bem sucedido. Se o propósito é bom e a estratégia é equilibrada, ambição é uma virtude. Porém, se o propósito não é bom nem a estratégia é equilibrada, a ambição se torna um mal, sendo definida como o “desejo desmedido pelo poder, dinheiro, bens materiais e glórias”.  Por que houve esse desejo desmedido dos irmãos Batista?

  • Ficar rico e ter vida luxuosa foi apenas consequência da “competência superior” da família para os negócios? Ou será que ganhar dinheiro por ganhar dinheiro virou o objetivo em si, uma obsessão?
  • Crescer os negócios era a maneira de contribuírem, onde quer que fosse o local / país, por meio da geração de empregos e bons produtos? Não eram “empresários melhores”? Não deveriam ter mais direitos do que os outros empresários?
  • O uso do recurso público nas mãos da família era “capaz” de dar um retorno social maior para a população do que em mãos dos governos? Não deveriam, pois, manter uma “política de proximidade” com as autoridades, com benesses e isenções?
  • Já que levavam uma boa imagem do Brasil para o exterior, não deveriam ter “reconhecimento” e serem “recompensados” por isto?

O fato é que a ambição relativiza esses questionamentos e os organiza de forma lógica e coerente para justificar e acalmar a consciência quanto à adoção de comportamentos pouco éticos e ilegais. Foi o que pode ter acontecido com os irmãos Batista: ficaram “anestesiados” e foram cometendo uma sequência de atos ilícitos até que, de repente (2016), se viram na mira da Justiça brasileira no âmbito da Operação Lava Jato.

  • Será que o solavanco tomado (a prisão, a perda de reputação da empresa, elevados prejuízos financeiros) conseguiu produzir uma transformação real no modo de pensar e agir dos irmãos Batista e da JBS como um todo?
  • Ou será que esse solavanco resultou apenas em uma mudança superficial, uma maquiagem de conduta, e os negócios da JBS vão seguir com a mesma lógica de atuação, desenfreada e selvagem?

CONCLUINDO, vai depender da resposta a essas duas perguntas acima (mutuamente excludentes), para indicar se há coerência (ou não) no papel de empresa cidadã assumido pela JBS frente à pandemia. Se a resposta for sim à primeira pergunta, então a empresa está sendo coerente. Se a resposta for sim à segunda pergunta , então o que ela está fazendo é propaganda enganosa.

Cabe, pois, à JBS um exame de consciência de verdade! Erros cometidos podem ter segunda chance, desde que haja a intenção sincera de mudança. Ainda mais quando os erros cometidos, com a subtração de recursos públicos (como foi o caso), implicaram em prejuízos e sacrifícios a muitas pessoas.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.