Mudanças climáticas: como avançar em meio a tantas divergências e desconfianças?

Por on 09/10/2024

Por um lado, vai se formando consenso quanto à premência do objetivo climático. A temperatura média do Planeta não pode exceder a 1,5º C da temperatura média vigente no período pré-industrial (média 1850-1900), sob pena de serem desastrosas as consequências para a vida no Planeta (IPCC, 2018). Daí porque torna-se mandatório reduzir fortemente as emissões dos gases de efeito estufa – GEE (em inglês: greenhouse gas – GHG), de modo a atingir o “zero líquido” (do inglês: net-zero) já em 2050, entendido como zerar a diferença entre o total dos gases de efeito estufa gerados pelas atividades humanas (+) e dos gases removidos da atmosfera (-).

Por outro lado, há divergências enormes sobre como alcançar esse objetivo. Diferentes estratégias vêm sendo defendidas seja por convicção científica; seja para preservar o poder econômico / político de determinados grupos, empurrando o ônus para outros grupos; seja por visão realista ou irrealista; ou seja meramente por demagogia. O fato é que o tabuleiro das estratégias para evitar o aquecimento global ficou por demais confuso e tortuoso. Senão, vejamos dois casos ilustrativos bem recentes.

Os dois casos: Glencore e Bezos Earth Fund

Glencore – O Goldman Sachs é um banco de investimento dos mais conhecidos do mundo. A instituição adota um filtro ESG (do inglês: Environmental, Social and Governance) baseado em critérios de circularidade, de modo a recomendar ações de empresas por suas iniciativas em reciclagem, gestão de resíduos e reutilização de materiais e produtos. Foi com base nesse filtro da circularidade que o Goldman Sachs tem recomendado a compra de ações da gigante do carvão, Glencore, e sugerido evitar as ações das big techsApple, Amazon, Microsoft, Alphabet (Google) e Facebook. (Valor, 17.09.2024).

Assim, usando as lentes da gestão dos resíduos, vemos que o Goldman Sachs valoriza fortemente a atuação da Glencore no campo da “reciclagem de eletrônicos, baterias e outros produtos que contêm cobre, lítio, cobalto e metais preciosos em suas instalações dedicadas na Europa, América do Norte e América do Sul”.

Também o próprio site da Glencore deixa claro esse compromisso da empresa com as mudanças climáticas, com chamadas do tipo “nós temos um papel chave na transição global para a economia de baixo carbono” ao anunciar o seu Plano de transição da Ação Climática 2024-2026.  A missão da empresa está definida como sendo a de “prover de modo responsável as commodities necessárias para melhorar a vida cotidiana”.

Porém, quando se julga a Glencore com as lentes do seu core business fortemente relacionado aos combustíveis fósseis, o mais usual atualmente é ver as ações da Glencore integrando a chamada “lista negra” das empresas não ESG.

Tanto que o relatório da Australian Centre for Corporate Responsibility (de abril 2024), depois de examinar o Plano de transição da companhia, concluiu que a “Glencore na verdade está se afastando do alinhamento a um caminho de emissões líquidas zero”. Também a Legal & General Investment Management afirmou (jun.2024) que os seus fundos ESG irão se desfazer das ações da Glencore, citando a produção de carvão da companhia. E mais: as novas diretrizes de nomenclatura de fundos ESG da União Européia (de maio/ 2024), estabeleceram que os fundos que pretendem ser sustentáveis ou ESG não poderão mais investir em empresas de combustíveis fósseis, como a Glencore (Valor, 17.09.2024)

Afinal, Glencore está tendo (ou não) um comportamento responsável para prevenir o aquecimento global? Qual lente de análise deveria prevalecer?

Bezos Earth Fund – Jeff Bezos foi o fundador e ex-CEO da Amazon, maior empresa de comércio online do mundo. Hoje segue sendo um dos homens mais ricos do mundo, detendo em torno de 9% das ações da Amazon (sócio majoritário) e com vários outros negócios / investimentos como a Blue Origin (empresa aeroespacial) e o jornal The Washington Post.

Em 2020, logo após o seu divórcio de Mackenzie Scott (que se tornou uma filantropa conhecida desde então), Jeff Bezos criou o Bezos Earth Fund, organização filantrópica para a qual ele destinou vultosos U$ 10 bilhões, a serem desembolsados ao longo da década 2020-30, com a missão de combater as mudanças climáticas e proteger a natureza – e assim contribuir para a Agenda 2030 dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da ONU). Para isto, o Fundo tem atuado em 7 áreas-chave (ou programas), que são: (i) conservação e restauração da natureza; (ii) futuro da alimentação sem degradação; (iii) justiça ambiental; (iv) descarbonização da indústria; (v) desenvolvimento do mercado financeiro nesse campo; (vi) novas tecnologias; (vii) desenvolvimento de sistema de monitoramento e prestação de contas (em inglês: accountability).

É justamente essa 7ª área-chave de atuação da Bezos Earth Fund, voltada para a medição e central para a evolução do combate às mudanças climáticas, que tem sido objeto de muitas polêmicas ultimamente.

O site do Bezos Earth Fund reforça a importância do fortalecimento do sistema de informação no campo das mudanças climáticas. Diz lá que “o que é medido, é gerenciado. A ciência e os dados são fundamentais para resolver a crise climática, mas muitas vezes falta a informação. Ou ela é inacessível ou carece de transparência. Por isto, o Bezos Earth Fund investe na criação de dados e na ciência de qualidade em âmbito mundial, de modo a informar prioridades, acompanhar o progresso e responsabilizar os intervenientes por suas promessas”.

E como consequência desse propósito, o Fundo filantrópico de Bezos passou a ser o principal apoiador da Science Based Targets initiative SBTi (em português: Iniciativa de definição de metas baseadas na ciência). O objetivo da SBTi é possibilitar com que empresas e instituições financeiras em nível global possam cumprir a sua parte no combate à crise climática.

Com essa finalidade, a SBTi está atuando em 3 frentes básicas, que são: (i) definir e promover melhores práticas para redução de emissões e o alcance do ‘net zero` em linha com a ciência do clima; (ii) desenvolver padrões, ferramentas e guias para possibilitar que empresas e instituições financeiras possam estabelecer metas baseadas no rigor da ciência e em linha com o que há de mais moderno; (iii) avaliar e validar se as empresas e instituições financeiras alcançaram as metas que elas estabeleceram.  Desde 2015 (quando a SBTi foi fundada) até o final de 2023, mais de 4.000 companhias e instituições financeiras foram / estão sendo lideradas pela SBTi em sua transição econômica para o net-zero, por meio do estabelecimento de metas de redução de emissões e a validação dos seus processos.

E aqui é que começaram a surgir as divergências, fruto de desconfiança nas boas intenções e de possíveis conflitos de interesses da Amazon (no passado) e da Bezos Earth Fund (no presente), ao se constituírem nos principais financiadores (chamados por “core funders”) da Science Based Target initiative. Na realidade, estaria Jeff Bezos interessado em obter vantagens da política de compensação dos créditos de carbono em seus diferentes empreendimentos nos setores da Tecnologia da Informação (TI) e da Inteligência Artificial (IA)? Ou, ao instituir a Bezos Earth Fund, ele estaria realmente comprometido com o combate ao aquecimento global?

Pode parecer um contrassenso, mas justamente nesses últimos anos em que mais se tem alertado sobre os riscos das mudanças climáticas é que, sobretudo na área das “big techs, o desenvolvimento da inteligência artificial está levando a um salto gigantesco no consumo de energia elétrica e, portanto, nas emissões de gases de efeito estufa (GEE), causado pelo uso intensivo dos centros de dados (as chamadas ´nuvens`).  Daí, porque especialistas e ativistas em clima estão preocupados com esse poder crescente de Jeff Bezzos para influenciar as definições dos padrões sobre o clima como também dos limites do “net zero” para as empresas, em termos de corte de emissões versus compra de compensações (ou créditos de carbono). O que se alega é que a compra de créditos de carbono sai muito mais barato do que cortar o total das emissões de uma empresa, considerando as suas emissões diretas, emissões indiretas advindas da compra de eletricidade, e as emissões indiretas provenientes de sua cadeia de valor – fornecedores e clientes – os escopos 1, 2 e 3.  (Valor, 03.09.2024)

Enfim, é possível avançar frente a tantas divergências e desconfianças?

Sim, é mandatório avançar. Porque se formos continuar produzindo, em ritmo acelerado, energia proveniente de combustíveis fósseis (como o carvão da Glencore)  para atender às demandas cada vez maiores do mundo moderno, que é todo interligado e informatizado (graças, por exemplo, à Amazon), as condições de vida no planeta Terra se tornarão inviáveis. Há muitos estudos científicos que comprovam esse futuro sombrio, se não forem tomadas medidas consistentes para limitar o crescimento dos gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. E as consequências já começam a ficar visíveis para todos, haja vista os crescentes níveis de destruição provocados por furacões, secas, queimadas e enchentes.

A Glencore informa que está tomando medidas plausíveis para compensar as suas emissões de GEE provenientes da produção de energia com base no carvão. Sejamos realistas, muitos países ainda não podem prescindir do carvão. A questão é saber se a Glencore faz o que diz, ou seja, está conseguindo realmente compensar o CO2 emitido, por meio de suas ações de gestão de resíduos.

O fundador da Amazon instituiu o seu fundo filantrópico, o Bezos Earth Fund, com a finalidade exclusiva de combater as mudanças climáticas e proteger a natureza e as populações mais vulneráveis. Será que as iniciativas financiadas pelo Fundo, e aqui sob a ótica de curto e médio prazo, vão conseguir de fato impactar significativamente na redução das emissões de GEE produzidos por seus muitos empreendimentos de TI e IA?

Ou, assumindo um julgamento mais abrangente da atuação das big techs, vale o questionamento: a intensificação do uso de TI e IA não poderia gerar um balanço superpositivo na emissão de GEE, considerando as atividades que estão sendo suprimidas graças ao uso delas (pois se tornaram obsoletas e desnecessárias) e eram antes também fortes emissoras e, com isto, mais do que conseguindo compensar as novas emissões advindas dos centros de dados em nuvem? Um exemplo simples: ao fazer uma reunião de negócios online, quanto de emissões de GEE não se está economizando, com a eliminação das muitas viagens de avião, de carro, e toda uma complexa infra-estrutura de apoio?

Por último, e para responder às perguntas acima, fica evidente o papel fundamental de se avançar com o sistema de medição dos gases de efeito estufa, de forma objetiva e passível de comprovação. Só assim é que se poderá, em um segundo momento, agir em prol da regulamentação compulsória do mercado de créditos de carbono, de preferência em âmbito internacional, para se poder efetivamente avançar com a agenda climática. Até lá, deveríamos dar um voto de confiança à política de governança e de abordagem de conflitos de interesse adotada pela Science Based Target initiative– SBTi e à atuação do Fundo Bezos, ambos voltados para a medição (explicitada como sendo objetiva e confiável) dos gases de efeito estufa (GEE).

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.