O paradoxo das doações do Vale do Silício: como evitar no Brasil?

Por on 06/12/2018

Nos últimos 40 anos, o Vale do Silício se transformou em uma das regiões mais ricas do planeta, com muitos milionários. Houve forte expansão da filantropia, mas agora as instituições filantrópicas locais estão enfrentando grandes dificuldades financeiras. Por que esse paradoxo das doações?

Acredito ser importante conhecer essa experiência do Vale do Silício. Longe de pretender ´copiar` o modelo de lá, mas para buscar adaptá-lo ao contexto brasileiro, fazendo uso das suas virtudes e tentando se afastar dos seus defeitos. Nesse momento em que estamos querendo fortalecer a cultura da doação no Brasil, como evitar o paradoxo das doações do Vale do Silício?

 

O paradoxo das doações no Vale do Silício

A reflexão a seguir sobre o que ocorreu no Vale do Silício está baseada na pesquisa publicada (2016) pelas co-fundadoras da Open/Impact, Alexa Cortés e Heather McLeod.

Contextualização: Cresce a riqueza, mas aumenta a pobreza.

Já é mais do que conhecido o vertiginoso crescimento econômico havido no Vale do Silício (que fica no estado da Califórnia, EUA) de 1980 para cá, atribuído ao boom das empresas de tecnologia, capitaneadas pela Microsoft, Apple, Google, Facebook, WhatsApp e muitas outras empresas de referência nessa área. Em consequência, foi exponencial o aumento dos milionários e bilionários vivendo na região.

A forte concentração de super ricos durante esse período acabou por provocar forte elevação no custo de vida local e, em particular, no custo da moradia. Estudos mostram que a classe média foi praticamente extinta, com as pessoas da região indo para os extremos – ou se tornando muito ricas ou muito pobres.

Em 2016, chegava a 29,5% o percentual dos moradores locais, vários deles oriundos da ex-classe média, que tiveram que recorrer a serviços gratuitos de saúde, banco de alimentos e abrigos para poderem conseguir sobreviver.

Surge o paradoxo: Cresce a filantropia, mas aumenta a dificuldade de sobrevivência das ongs comunitárias locais.   

Como consequência direta da expansão econômica sem precedentes, tornou-se visível o fortalecimento da cultura da doação no Vale do Silício nos últimos anos, por meio de suas empresas, fundações e indivíduos. A título de ilustração, em apenas 5 anos (2008 a 2013) o valor das doações individuais aumentou em 150%.  O número de instituições não-lucrativas cresceu 28% em dez anos, de 2005 a 2015. Isso evidencia o lado bom do boom econômico na região: os milionários surgidos são generosos, querem retribuir as oportunidades que tiveram na vida e contribuir para melhorar o mundo. Doam, cada vez mais, volumes consideráveis de recursos financeiros e se empenham diretamente no trabalho social.

No entretanto, houve também o lado ruim: nessa região dinâmica e rica dos EUA, as OSCs (organizações da sociedade civil) locais estão enfrentando situação financeira difícil. Principalmente as OSCs comunitárias, voltadas para atender justamente as necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade, e que representam a grande maioria (84%) do número total das instituições do setor social não lucrativo da região. Já as demais OSCs, mais estruturadas e que atendem ao público endinheirado [como as escolas privadas, as universidades e os hospitais], estas, sim, estão conseguindo se beneficiar desse momentum favorável para a mobilização de recursos.

No caso das OSCs comunitárias locais, esse é um segmento fragmentado, constituído por organizações menores que estão enfrentando situação difícil. Elas reportam um forte aumento das demandas sociais (80% em apenas 5 anos), que é explicado pelo aumento da pobreza na região. Em 2016, por exemplo, metade dessas organizações (51%) não conseguiu atender a essa demanda. Também quase metade dessas instituições (47%) contava com menos de 3 meses de dinheiro operacional disponível, e 74% delas não tinham acesso a uma rede sólida de doadores.

Surge, então, o paradoxo: Como explicar que uma região rica como a do Vale do Silício, com tanta generosidade e filantropia em expansão, as OSCs comunitárias locais estão com dificuldade para sobreviver?

 

O novo modelo de doações do Vale do Silício

Boa parte da resposta à questão acima está no novo modelo de doações, ora em emergência a partir dos empreendedores do setor de tecnologia do Vale do Silício. O ponto é que o modo de operar das tradicionais OSCs locais comunitárias não se mostrou adequado ao novo padrão de filantropia. Por isto, os novos filantropos (ou investidores sociais) do Vale do Silício estão preferindo direcionar o seu investimento social para outras áreas, no âmbito nacional (os EUA como um todo) e/ou global (outros países); ou atuarem de modo direto ou fazerem outras parcerias.

Características do novo modelo de doação

Alto impacto – Não quer atuar em soluções band-aid. Quer atuar nas causas-raízes dos problemas sociais e solucioná-los, ao invés de apenas melhorá-los. Por isto, querem ver resultados reais; e querem ter acesso a dados, e não a apenas estudos de caso.

Inovador – Ser disruptivo, substituir ou reinventar sistemas disfuncionais existentes – como nas áreas de educação e saúde – e promover mudança social, que possa ser escalável e sustentável.

Conectado – Não basta fazer cheques. Os novos doadores querem também atuar como voluntários, fazerem parte dos conselhos, serem mentores e orientadores da direção das organizações sociais, e até gerirem os seus próprios programas. Eles priorizam as causas e organizações que podem beneficiá-los pessoalmente, como as escolas dos seus filhos, onde eles já têm uma rede direta de contatos.

Diversificado – Ao invés de atuar com uma única questão social ou em uma única região geográfica, há a preferência por uma abordagem de portfolio, que abrange diferentes tipos de iniciativas sociais.

 

Barreiras para a conexão entre os novos filantropos (ou investidores sociais) e as OSCs locais comunitárias

De conhecimento e informações – Os novos filantropos não têm acesso à informação confiável sobre as organizações locais comunitárias e as suas necessidades: quem trabalha com o que; quais as questões sociais mais relevantes; e como essas organizações estão conseguindo resolver os problemas locais. Por sua vez, as OSCs locais comunitárias não sabem como acessar os recursos disponíveis junto a esses investidores (que parecem tão distantes para eles), e carecem de capacidade para apresentar as informações requeridas por eles, como a “medição” dos resultados obtidos.

De rede de contatos – O campo de atuação dos novos filantropos é onde as suas empresas têm negócios e as suas famílias (ricas) moram. Em contraposição, as ongs comunitárias do Vale do Silício tendem a ficar limitadas com as questões sociais do espaço físico em que estão localizadas.

De linguagem e mentalidade – As ongs locais comunitárias adotam uma linguagem moral, enfatizando a responsabilidade social, justiça social, equidade e o bem comum. Já os novos investidores adotam uma linguagem de negócios, que enfatiza as finanças, as métricas, o poder, e o capitalismo com ganhadores e perdedores.

De empatia – Com tão pouco em comum, cada um desses grupos se tornou reduzido a um mero estereótipo aos olhos do outro grupo, o que dificulta ainda mais o relacionamento entre eles. Assim, o grupo dos novos filantropos é percebido como “ganancioso” e “desalmado”, enquanto os líderes das ongs são vistos como “corações moles, que não sabem pensar estrategicamente”.

 

No Brasil: introduzir o modelo das doações do Vale do Silício, mas evitar o paradoxo

Como visto, o paradoxo das doações do Vale do Silício deve ser entendido à luz da expansão vertiginosa dos empreendedores do setor de tecnologia havida na região nos últimos 40 anos. Fazendo um balanço da evolução conjuntural, pode-se dizer que essa expansão teve efeitos negativos para as questões sociais e a filantropia local.  Isto porque se, por um lado, fez crescer fortemente as demandas sociais da região (com o aumento da pobreza), por outro lado, desestruturou a capacidade de oferta dos serviços sociais das OSCs comunitárias locais, ao alterar o padrão tradicional das doações na região.

Já o novo modelo de doações, que está se configurando com clareza no Vale do Silício a partir de 2000, reflete a maneira de pensar e de fazer negócios dessas novas elites poderosas da região. Estão fazendo filantropia no modelo startup: pensam grande; querem transformação social com retorno econômico; querem atuar por meio de estruturas leves e ágeis; querem atuação global. Assim, é com essa abordagem que os novos filantropos da região vêm atuando para acabar com a malária na África; generalizar o acesso ao microcrédito nos países muito pobres; financiar pesquisas sobre o tratamento de doenças neurodegenerativas. Fazendo um balanço amplo desse novo modelo de doações, são inegáveis os seus efeitos positivos para os EUA como um todo, e para as questões sociais em âmbito global.

Nesse momento em que se busca fortalecer a cultura das doações no Brasil, é preciso saber incorporar os princípios virtuosos desse novo modelo de doações nascido no Vale do Silício. Porém, sem incorrer nos efeitos negativos observados lá (o paradoxo das doações), que provocou a fragilização do trabalho das OSCs locais comunitárias.

 

No Brasil:  como evitar o paradoxo das doações do Vale do Silício?

Por definição (GIFE), o investimento social privado (ou filantropia) é o repasse voluntário de recursos privados, de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais, ambientais, culturais e científicos de interesse público.

Basta a definição acima para aquilatarmos a complexidade do desafio. Assim, voltando ao caso do Vale do Silício, quando, por exemplo, Mark Zuckerberg e/ou a sua empresa (Facebook) decidem fazer doações, usando ou não incentivos fiscais, eles têm (e sempre tiveram) total liberdade para definirem a(s) causa(s) social(is) a apoiar(em) e as estratégias que vão utilizar. Seja no Vale do Silício, onde fica a sede do Facebook; ou em qualquer outro país. Então, se a história do Vale do Silício se repetisse, haveria como evitar o paradoxo das doações?  Em outras palavras, haveria maneiras de “proteger” as organizações filantrópicas locais, responsáveis pelos mais vulneráveis – como moradores de rua, drogados, doentes mentais e os excluídos em geral?

Há muito essa questão me preocupa. Em 2007, escrevi um artigo, Ação social das empresas: a escolha do público-alvo , em que concluía, ao final, que as empresas não têm a obrigação, ou o compromisso, de apoiarem determinados públicos ou organizações filantrópicas.  Na época, a motivação para o texto foram as críticas, aqui no Brasil, de que com o movimento da RSC (Responsabilidade Social Corporativa), as entidades de assistência social perderam o apoio (que até então tinham!) das empresas; e, por isto, estavam enfrentando sérias dificuldades. Para elas, melhor seria se não tivesse havido o movimento da RSC.

Do que foi visto, pode-se dizer que, sob a ótica regional da promoção do desenvolvimento e da justiça social, o modelo das doações do Vale do Silício tem aspectos positivos e negativos. Do lado negativo, destaco a falta do compromisso cidadão e envolvimento com os problemas sociais da realidade local. Do lado positivo, o empenho em solucionar a questão social que for escolhida, e não apenas ´fazer remendos`; e também a cobrança pelo uso de ferramentas de gestão e avaliação (como nos negócios), não se restringindo à vontade de ajudar. Então, se queremos fortalecer a cultura das doações no Brasil, devemos aplicar e potencializar o lado bom desse modelo de doações surgido no Vale do Silício. E como fazer isto?

Em 2016 escrevi outro artigo sobre Como estimular a filantropia no Brasil? , dessa vez motivada pelas críticas à filantropia nos EUA, país tido como referência em filantropia. A principal crítica era de que se estava fazendo filantropia lá basicamente às custas de incentivos fiscais e, com isto, transferindo poder dos governos para os filantropos. Enquanto o setor público tem a obrigação de atender aos mais necessitados e promover a justiça social, os filantropos têm total autonomia de atuação – fazem os seus investimentos sociais onde querem, com quem querem, e como querem.

Uma das ideias que apresentei no texto foi a necessidade de termos no Brasil uma regulamentação clara quanto ao modo de atuação do terceiro setor, com destaque para:

  • Definição de um marco institucional, com a atribuição das responsabilidades e formas de interação entre as diferentes instituições do terceiro setor, do setor público e do setor privado.
  • Sobretudo em se tratando do uso de incentivos fiscais, definição dos critérios / limitações para a escolha pelos filantropos (sejam empresas ou famílias) das causas sociais que querem apoiar, de modo a coibir interesses individuais em detrimento das políticas públicas.
  • Normas para a condução das ações sociais, sempre baseadas no respeito e na escuta às necessidades das comunidades atendidas;
  • Compromisso com a avaliação dos resultados sociais e a transparência.

Sem dúvida, o Marco Regulatório das OSCs, em vigor no Brasil a partir do início de 2016 (Lei nº 13.019 /2014 alterada pela  Lei nº 13.204 /2015), foi  um passo importante nesse sentido.  Porém, se restringiu a definir o funcionamento das parcerias entre a administração pública e as OSCs. É preciso ir além do que o que está no Marco Regulatório.

Não só aqui no Brasil, como também nos EUA e no resto do mundo, o desafio tem sido justamente desenvolver a capacidade de integrar os diferentes atores do território para atender de forma efetiva as necessidades sociais desse território.

Desde 2011, a partir de artigo seminal de Mark Kramer e John Kenia (publicado pelo Centro de Filantropia da Universidade de Stanford, do Vale do Silício), a abordagem do impacto coletivo (Collective Impact) começou a ganhar força. Ela está baseada no trabalho colaborativo e coordenado entre os diferentes atores (públicos, privados e terceiro setor) em torno de uma agenda comum, de modo a alcançar o maior impacto possível.

Concluindo, o novo modelo de filantropia do Vale do Silício tem vantagens e desvantagens. Porém, se, no Brasil, conseguirmos inseri-lo dentro de uma agenda social local e em sinergia com as organizações filantrópicas e demais atores locais, teremos muito mais chances de potencializar os seus benefícios e reduzir os efeitos colaterais negativos.

 

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.