Relatórios ESG – precisamos avançar para além do compliance

Por on 16/02/2023

Sou há muitos anos defensora da (na época conhecida como) responsabilidade social corporativa. Por isto, venho remoendo o incidente recente das Lojas Americanas..- que vinham firmes participando do seleto rating de empresas sustentáveis, dentre eles o ISE da B3 no Brasil e o Índice Dow Jones nos Estados Unidos (Relatório Anual – 2021 ). Então, por que fomos todos surpreendidos em 11 janeiro 2023 com o anúncio de ”inconsistências contábeis” da companhia de cerca de R$ 43 bilhões ( equivalente a quase 3 vezes o patrimônio da empresa), acarretando sérios efeitos em cascata junto a seus fornecedores, credores, clientes, colaboradores, acionistas, famílias em geral, etc…?

Levanto três possíveis hipóteses explicativas.

  1. Será que os ratings e relatórios podem ter perdido a sua utilidade / razão de ser, que é a de demonstrar a saúde financeira e o comportamento sustentável e ético das empresas?  
  2. Ou  será que os ratings e relatórios estão se se mostrando insuficientes para demonstrar o real desempenho ESG (do inglês – Environmental, Social and Governance)? Com os ventos da tecnologia da informação soprando forte a nosso favor, a produção de indicadores e relatos se tornou tão grande que acabamos ficando perdidos no emaranhado dos dados e sem sensibilidade para distinguir as informações realmente relevantes.
  3. Ou será que foi uma bem camuflada fraude, em que (como toda fraude) algumas  poucas pessoas espertas e mal-intencionadas querem ganhar muito às expensas das muitas outras rudemente assaltadas?

Sem entrar no mérito dessa terceira, considero que as duas primeiras estão muito interligadas. Aliás, tenho saudades do final da década 1990 quando começaram a surgir os primeiros balanços e indicadores do desempenho em sustentabilidade das organizações. No Brasil, esse percurso foi iniciado com o balanço social do IBASE (1998), capaz de sintetizar em uma única página os indicadores mais relevantes e que poderiam ser comparáveis entre empresas. Logo após (2000) surgiu a primeira versão dos Indicadores Ethos, com uma finalidade didática clara no sentido de estimular a trajetória sustentável das empresas nas diferentes dimensões Ambos os instrumentos tinham em comum uma abordagem simples e objetiva de tratar a sustentabilidade, de fácil compreensão a todos e clareza do desafio colocado para cada empresa.

Atualmente ficou diferente. Para serem consideradas ESG, as empresas são compelidas a atenderem a uma série cada vez maior de condições (ou pré-requisitos), reportados depois em seus relatórios anuais, de forma livre e voluntária.

O caso Americanas

Veja, por exemplo, o caso das Americanas. Ao entrar no site (acesso em 13.02.2023), tanto pela chamada  ‘Companhia / Sustentabilidade` como em ´Informações aos Investidores`, fui direcionada (em ambos) ao Relatório Anual – 2021, que é o último disponível até o momento. É um relatório bonito e colorido, que apresenta várias estatísticas sobre “a governança das Americanas, o seu desempenho financeiro, a excelência do modelo de negócio e o seu caráter inovador, as medidas tomadas para o desenvolvimento dos colaboradores, dos fornecedores e clientes, e também as medidas tomadas em termos de ecoeficiência, mudanças climáticas e desenvolvimento das comunidades”.

E ao longo do Relatório  se busca  (o tempo todo) vincular a conformidade (ou compliance, que é o termo em inglês) das medidas /estatísticas  que estão sendo apresentadas com as diretrizes do GRI (Global Reporting Initiative), da SASB (Sustainability Accounting Standards Board) e do TFCD (Task Force on Climate-Related Financial Disclosure).

Examinando o Relatório, a impressão é de ser uma realidade “pintada de cor de rosa”, onde não há problemas e apenas fatos positivos, quase como uma publicação de marketing da companhia. Fica a sensação de que está faltando conhecer a situação real da empresa, com as suas dificuldades, aspectos negativos, metas não alcançadas, e desafios.

Daí  porque decidi aprofundar a minha pesquisa no site para esse mesmo período contemplado no Relatório (ano 2021).  Queria descobrir, pelo menos, como vinha se dando a distribuição do Valor Adicionado da empresa, uma estatística tradicional dos balanços sociais antigos…..  Por isto, acabei chegando em  Informações aos Investidores / Central de Resultados / Ano 2021 / DFP (Demonstrações Financeiras Padronizadas, 4º trimestre). Foi quando me vi frente a uma enorme quantidade e complexidade de dados financeiros da empresa, cujo entendimento demandaria a expertise de um especialista além de bastante disponibilidade de tempo para interagir e tirar dúvidas com a empresa.  

Qual é o ponto ótimo das informações?

O fato de termos uma quantidade grande de informações não é ruim em si; pode, inclusive, ser muito bom se elas se fazem necessárias para gerir a organização. O que é ruim é termos muitas informações, sendo que o dado relevante se perde no meio da profusão de dados de minúcias sem importância, que só fazem confundir e embaçar a análise.

A esse respeito, acabo de ler (09.02.2023) matéria interessante na Wired  intitulada “O fim dos ratings – Como a matemática irracional das medições, classificações e ratings distorce o valor das coisas, do trabalho, das pessoas, de tudo” de KC Cole, conhecida escritora dos EUA no campo da Ciência e correspondente sênior da Wired. Diz ela,

Não estou sozinha em meu desconforto com o negócio irracional das classificações, ratings e medições. Os reitores das faculdades de direito de Yale e Harvard recentemente se retiraram do ranking do US News & World Report, seguido pela Harvard Medical School e dezenas de outros. “As classificações não podem refletir significativamente … a excelência educacional”, explicou o reitor de Harvard, George O. Daley. Os rankings levam as escolas a falsificar dados e fazer políticas destinadas a aumentar os rankings em vez de “objetivos mais nobres”.

……

Ocasionalmente, uma corporação percebe que as medidas não estão revelando o que ela precisa saber, pode até tê-la desencaminhado. O CEO da Mattel (companhia de brinquedos) culpou a crise financeira como consequência da crise criativa, atribuída por ele a “uma obsessão pelos números”. A empresa estava sendo guiada por planilhas e listas de verificação. Não estávamos realmente nos perguntando: ‘Estamos fazendo bons brinquedos?

Claro, a maioria das coisas que medimos são proxies – substitutos concretos para as coisas intangíveis que queremos saber. O software de análise pode dizer quantas pessoas compartilharam sua postagem. Mas ele não pode dizer se você causou impacto, ganhou confiança, se mudou a opinião de alguém.

Uma colega explicou os perigos de se avaliar o sucesso no alcance da saúde pública, especialmente nas aldeias muitas vezes atrasadas onde ela trabalha. Você pode contar o número de folhetos que distribui, mas será que eles são lidos? Ou são usados para papel higiênico (também útil)? Os mosquiteiros contra a malária que você distribuiu realmente controlam a doença? Em um caso do qual o meu colega teve conhecimento, as redes (dos mosquiteiros) foram usadas como véus de noiva. Eles eram bonitos, ela disse; fazia sentido. Eles tinham que medir alguma coisa porque os doadores queriam números. Ainda que todos soubessem que ninguém sabia o que os números significavam realmente…..

ENTÃO,  qual deveria ser o ponto ótimo de informações em  um Relatório ESG ou que contemple a dimensão ESG?

Primeiro, como bem demonstra KC Cole (e eu concordo com ela!), precisamos ter poucos e bons indicadores, consistentes e bem construídos. É quando ‘menos` (indicadores) pode ser ‘mais` (melhor diagnóstico).  Nesse momento em que a dimensão ESG se tornou um valor organizacional, precisamos ter cautela em não sair multiplicando a quantidade de requisitos ESG a serem atendidos e medidos pelas empresas.

Segundo, precisamos investir na conceituação e padronização dos indicadores ESG.  Cabe  reconhecer que já existe em âmbito global  um esforço que vem sendo feito nesse sentido por organismos internacionais como o GRI, SASB, TFCD. A padronização é importante para garantir que as empresas relatem consistentemente suas práticas e desempenho ESG, se comparem entre si, e possam evoluir.

Veja que em seu  Relatório – 2021, as Americanas se basearam em todos esses referenciais internacionais para a apresentação de suas muitas estatísticas ESG. Porém, vimos que não foi suficiente.  E por quê? Mesmo a partir de todos aqueles números, afirmativas e intenções de compromisso (em inglês: commitment) reportados, não foi possível  enxergar que a situação de relacionamento da companhia com os seus vários públicos vinha se tornando insustentável e fragilizada.

A meu ver, uma possível explicação para essa aparente incoerência (caso Americanas)  é a de que, em um relatório, os indicadores apresentados e as afirmativas feitas representam a face visível da realidade corporativa. O que não fica visível , porém, é como se chegou àqueles números, ou seja, como eles foram categorizados, coletados e os pressupostos adotados.   O que acaba acontecendo é que cada empresa usa a sua própria lógica para levantar e mostrar os seus dados, e dentro da rationale que mais lhe convém. Daí, precisamos não só padronizar os indicadores em si, mas também o modo para estimar cada indicador.

Terceiro, para além dos indicadores ESG relacionados ao que a empresa faz e/ou pretende fazer, precisamos trazer para os relatórios a voz dos públicos atendidos pelas empresas. Quais foram os resultados das ações da empresa junto aos seus públicos – sejam eles acionistas, colaboradores, fornecedores, clientes, governos e comunidades? Assim, por meio de indicadores padronizados, deveríamos ouvir uma amostra representativa dos seus públicos relevantes, sobre o impacto da empresa para eles. Com isso, a intenção é ir além das demonstrações e afirmativas de compliance e de commitment da empresa, e buscar verificar quais as consequências que a atuação ESG da empresa vem tendo para as pessoas envolvidas com ela.

CONCLUINDO, o caso Americanas é ilustrativo sobre porque precisamos, dentre outras medidas, adequar os Relatórios ESG das empresas. Não basta atender, ou passar a imagem de estar atendendo aos muitos requisitos ESG preconizados. Precisamos ir além, ou seja, saber dar foco nas informações realmente relevantes e desafiantes para o negócio, dar transparência à forma de construção dos indicadores, explicitar as fragilidades das informações obtidas, e saber também apontar os resultados desejados pela empresa porém ainda não alcançados – e o porquê. No Brasil, a atuação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) pode vir a ter papel relevante nessa direção.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.