Terceiro setor no Brasil: é hora de enfrentar as mudanças!

Por on 21/03/2017

Recentemente li um trabalho interessante da New Philanthropy Capital (NPC, 2016), uma organização think-tank do Reino Unido. Analisa as várias mudanças por que vem passando o terceiro setor naquele país, os desafios e as oportunidades que estão surgindo. Sintetizo a seguir os principais pontos abordados na referida publicação. Vale muito pelo paralelo com o Brasil.

Quais vêm sendo os fatores provocadores da mudança?

  • Redução no nível das doações e repasses do governo: no Reino Unido caíram para menos da metade nos últimos dez anos.
  • Queda na confiança da opinião pública: agravado com os escândalos recentes registrados no país em algumas organizações sociais conhecidas. Assim, começa a haver um sentimento crescente de que o terceiro setor é constituído por uma “mistura complexa” de organizações, e várias delas desperdiçam os recursos doados.
  • O modelo de parceria ´setor público e terceiro setor` para a operacionalização da política social não atendeu às expectativas: uma das razões apontadas foi o fracasso do governo em manter uma parceria forte com o setor voluntário.
  • As alterações na demografia: se por um lado, o envelhecimento da população pressiona por uma demanda mais ampla e diversificada do setor social, por outro lado há que se reconhecer que tende a gerar um reforço na oferta do trabalho voluntário. Também as ondas migratórias recentes de refugiados no país representam outro fator a pressionar a demanda.
  • Tecnologia digital “disruptiva”: o acesso às novas tecnologias digitais está ampliando sobremaneira o espaço de interação das organizações do terceiro setor, permitindo potencializar o compartilhamento de informações, conhecimentos, ferramentas e as redes de contatos. Assim, o modelo de negócios do setor social, baseado no esforço individual de construção de sua infraestrutura, tornou-se obsoleto.
  • As fronteiras do terceiro setor com os setores público e privado estão se tornando cada vez mais imprecisas: sobretudo com o surgimento dos negócios (ou empresas) sociais e as contratações do governo para prestação de serviços públicos.

Quais as estratégias para enfrentar os novos desafios e as oportunidades?

  • Priorizar o modelo baseado nos ativos dos beneficiários atendidos, ao invés do modelo de entrega direta de bens e serviços a eles. A nova dinâmica envolve uma mudança de mentalidade e cultura: não mais agir em relação aos pontos fracos, mas sim atuar a partir dos pontos fortes da comunidade, de modo a empoderá-la para a busca de suas próprias soluções. Traduzido para inglês, ir do “what`s wrong” para “what`s strong”. A vantagem desse novo modelo é que a dependência de apoio externo tende a diminuir e cessar com o tempo. Mas os críticos alegam que essa estratégia vai funcionar como um “véu” para os cortes nos serviços sociais.
  • Fortalecer o relacionamento com os apoiadores. A mudança na abordagem da Cruz Vermelha é ilustrativa: “no passado, a nossa captação de recursos era do tipo transacional, o que era um risco, mas nós tínhamos um relacionamento com centenas de milhares de pessoas….. agora a nossa captação está baseada em relacionamentos, e as pessoas passaram a ter muito mais informações sobre os impactos das doações que elas fazem, e aí elas têm a intenção de continuar nos apoiando por muito mais tempo”.
  • Tende a prevalecer o modelo baseado em contratos públicos, ao invés do modelo das doações. Agora as organizações do terceiro setor estão tendo que competir entre si para conseguir contratos com os governos. Há vantagens e riscos. As vantagens estão relacionadas ao próprio sistema da concorrência, uma vez que os objetivos precisam ser claramente estabelecidos, há prestação de contas, maior transparência e, portanto, acompanhamento do impacto pretendido. Já os riscos estão ligados à capacidade de sobrevivência das organizações pequenas, que por não terem efeito-escala, podem ter custos maiores e mais dificuldades para competirem. No Reino Unido, o terceiro setor é bastante desigual haja vista que, em 2013/2014, 50% dos ativos do setor social pertenciam a apenas 0,6% das organizações.
  • Priorizar o modelo dos “financiadores e mais” (ou “funder plus”), entendido como o conjunto das práticas dos financiadores e filantropos que vai além da doação em dinheiro. Por exemplo, no caso da empresa socialmente responsável (que já valoriza o “shared value”), ela vai querer contribuir de diferentes maneiras para a organização social que apoia (além da doação monetária), oferendo conhecimento específico do seu campo de atuação e a sua disponibilidade em construir relacionamentos com os governos e outros atores. Por sua vez, os jovens da geração Y (nascidos nos anos 80), que trabalham nessas empresas, se mostram muito mais comprometidos com o trabalho voluntário pro-bono do que as gerações anteriores.
  • Priorizar o modelo do networking, ou da atuação em rede, ao invés da atuação isolada. Assim como já vem ocorrendo nos demais setores, a revolução da tecnologia digital possibilitou um salto considerável na disponibilização de infraestrutura para o setor social. Assim, por meio do estímulo à utilização adequada das redes digitais, torna-se possível criar laços entre organizações sociais parceiras, unir os beneficiários e dar voz a eles, difundir conhecimento e compartilhar bases de dados. Ou seja, caminhar na direção do impacto social coletivo.
  •  Priorizar o modelo da empresa social, vis-à-vis ao da organização sem fins lucrativos. A empresa social é a organização que, ao mesmo tempo em que cumpre a sua missão social e/ou ambiental, busca também um retorno econômico. Para tal, vende serviços ou produtos no mercado a grupos de pessoas não relacionadas aos seus beneficiários, reinvestindo o seu lucro na própria empresa ou na comunidade. Essa é a definição adotada no ´Movimento pela Empresa Social no Reino Unido´. Segundo o Relatório de 2015 dessa instituição, 49% dessas organizações tinham menos de 5 anos de existência, metade foi lucrativa, e 31% delas trabalhavam nas 20% comunidades mais pobres, demonstrando ser esse um modelo de negócio dinâmico e sustentável. Porém, o risco é o foco social nos beneficiários passar a ser preterido pelo foco econômico no mercado consumidor.

Feita essa síntese, vemos que, de fato, há muitas semelhanças no cenário das mudanças do terceiro setor no Reino Unido e aqui no Brasil. Será que as estratégias que estão sendo implementadas lá, e que começam a ser aqui, são adequadas para a nossa realidade? Deixo para reflexão.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.