No Terceiro Setor, conhecido como Setor Privado Sem Fins Lucrativos, há diferentes maneiras para se atuar, sejam elas informais ou formais. Haveria uma maneira que seria a mais efetiva, isto é, com maior impacto social?
Normalmente o modo informal nasce da vontade de um indivíduo / grupo de transformar ou solucionar problema(s) de uma dada realidade social – são os chamados coletivos, movimentos comunitários, iniciativas sociais, ou ONGs (Organizações Não Governamentais). Já o modo formal é constituído por organizações de direito privado, devidamente registradas junto ao Poder Público, que têm um CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) e que são obrigadas a seguirem as normas estabelecidas pelo Estado em suas diferentes esferas. Em termos jurídicos são (i) as Associações – também conhecidas como OSCs (Organizações da Sociedade Civil), ou Institutos, ou simplesmente Associação – e (ii) as Fundações privadas ligadas a famílias ou empresas, ou independentes.
Quais as diferentes formas para atuar no Terceiro Setor?
1 – Coletivos
Os coletivos normalmente brotam de modo espontâneo, constituídos por grupos de pessoas em um mesmo território (ou não) que são movidos pelo afã de solucionar problemas emergenciais e/ou defender questões específicas de interesse comum que os afligem, seja no campo social, ambiental, cultural ou de direitos. Em geral, são grupos totalmente colaborativos, com uma estrutura horizontal e sem hierarquia fixa, e sem nenhum tipo de formalização. Alguns exemplos de coletivos que tiveram (ou têm) uma atuação considerada potente: Fórum Social de Manguinhos (favela em Manguinhos, RJ); Coletivo Papo Reto (Complexo do Alemão, RJ); Tamo Junto Rocinha – TMJ (Favela da Rocinha, RJ), Grupo de Mulheres Quilombolas Na Raça e Na Cor (Santarém, PA) e Coletivo Trans Sol (Mulheres Trans e Travestis, SP).
Dependendo da trajetória e circunstâncias, alguns coletivos podem permanecer com a sua estrutura informal, como o Fórum Social de Manguinhos; ou então, virem a se formalizar no médio/longo prazo, como o coletivo Papo Reto, que depois de 10 anos se tornou o Instituto Papo Reto. A principal vantagem da formalização para a iniciativa social é conquistar a sua existência legal (ter cnpj e conta bancária) e, assim, passar a ser percebida como mais “confiável” por seus doadores e demais parceiros.
2 – Movimentos comunitários ou sociais
Também os movimentos sociais / comunitários nascem de modo informal e com o foco na melhoria de uma dada realidade social e na defesa de direitos. Porém, o que os distingue dos coletivos é que eles normalmente têm um raio de atuação mais abrangente, tendem a ser mais estruturados / subordinados a uma hierarquia e liderança, além de terem abordagem mais política, reivindicativa e de longo prazo. Alguns exemplos: Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto – MTST (Nacional); Movimento Sem Terra – MST (Nacional), Redes da Maré (15 favelas da Maré, RJ), Associação de Moradores da Rocinha (RJ), Pastoral Carcerária (vinculada à CNBB / Nacional), Pastoral do Menor – RJ (vinculada à Mitra Arquidiocesana do RJ), e Instituto da Providência (RJ, até 2024 foi o ‘Banco da Providência`).
Por sua natureza, os movimentos sociais / comunitários não têm a obrigação legal de serem formalmente registrados (possuir CNPJ), uma vez que eles atuam na defesa de ideias e princípios – como é o caso do MTST e MST. Porém, uma vez que essas ideias começam a ganhar existência própria e precisam ser operacionalizadas por meio de atividades, esses movimentos ou se formalizam, ou então seguem informais porém vão se desdobrando em, por exemplo, (i) associações de moradores (de áreas rurais ou de favelas; formalizadas ou não) e/ou (ii) em cooperativas (nesse caso, ter cnpj é um requisito legal para operar).
Exemplificando com os casos da Pastoral Carcerária e da Pastoral do Menor. Ambas foram criadas nos anos 1970 pela Igreja Católica como um desdobramento do Movimento pela Justiça Social e Direitos Humanos, inspirado na Teologia da Libertação (que pregava a proteção aos pobres e oprimidos), e no momento político da ditadura militar que o Brasil atravessava naquele período. Em âmbito nacional tanto a Pastoral do Menor como a Pastoral Carcerária estão vinculadas à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) da igreja Católica.
Já no âmbito regional, como por exemplo no Rio de Janeiro, tanto a Pastoral do Menor-RJ como a Pastoral Carcerária-RJ recebem apoio e suporte logístico, financeiro e de formação para as suas ações locais da Mitra Arquidiocesana do RJ. Sendo que cada uma dessas unidades, seja a nível nacional e regional, tem o seu próprio registro (cnpj) como associação. Ou seja, funcionam como uma Organização da Sociedade Civil (OSC).
3 – ONGs
É importante ter clareza, primeiro, que o termo ONG (Organização Não Governamental) não consta da literatura jurídica brasileira. Segundo, que o termo geralmente está associado a uma organização informal, isto é, sem registro legal. E, terceiro, que a ONG normalmente já é concebida com a missão de realizar determinadas atividades para gerar serviço(s) /produto(s) social(is) voltado(s) a atender as necessidades de um público em situação de vulnerabilidade. Ou seja, pode-se dizer que ela funciona quase à semelhança de um “empreendimento social”, só que contando basicamente com doações, e trabalho voluntário distribuído por funções e papéis.
Acompanhei de perto o trabalho de duas ONGs, que no ano passado (2024) se formalizaram, adquirindo a estrutura jurídica de ‘associação`, conforme previsto no Código Civil – Lei no. 10.406 / 2002, artigos 53 – 61. São elas o Instituto Mudando o Placar, de esporte e educação na favela da Rocinha (RJ); e o Instituto São Cosme e Damião, de apoio e desenvolvimento comunitário no Complexo de Santa Tereza (RJ). E, como se vê, ambas passaram usar o nome-fantasia de ‘Instituto`.
4 – OSCs
De modo didático, podemos dizer que a OSC (Organização da Sociedade Civil), cujo termo jurídico é associação, seria o outro lado da moeda para ONG. Ou seja, enquanto empreendimento social do Terceiro Setor, a OSC seria a ONG formalizada, em sua busca por conseguir expandir e consolidar os benefícios sociais que ela gera.
Só lembrando que, como observado acima, o formato OSC tem sido também o coletivo ou o movimento comunitário que, em suas trajetórias, decidem por se formalizar, como estratégia para dar maior fôlego e materialização aos seus objetivos e ideais.
A formalização de uma iniciativa / organização do Terceiro Setor pode trazer vantagens, mas também implica em desvantagens.
Dentre as vantagens:
(i) Acesso a recursos financeiros – Pode receber doações dedutíveis no imposto de renda, participar de editais públicos e captar recursos com empresas e organismos internacionais.
(ii) Segurança jurídica – Protege os fundadores e membros contra responsabilidades pessoais por obrigações da entidade.
(iii) Credibilidade e transparência – Transmite confiança para doadores, voluntários e parceiros.
(iv) Parcerias com o poder público – Pode firmar convênios e contratos com governos, especialmente se tiver título de OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) ou OS (Organização Social).
(v) Acesso a benefícios fiscais – Dependendo da qualificação, pode obter isenções de tributos como ISS, IPTU, ICMS e contribuições sociais.
(vi) Possibilidade de profissionalização – Permite contratar funcionários formalmente e expandir suas atividades.
Dentre as desvantagens, aqui entendidas como as novas responsabilidades e custos a serem assumidos:
(i) Burocracia – Exige registro em cartório, Estatuto Social, CNPJ, atas de assembleias e prestação de contas periódica.
(ii) Custos administrativos – Gastos com contabilidade, registros e cumprimento de obrigações legais podem ser altos.
(iii) Fiscalização e controle – Precisa apresentar balanços financeiros e relatórios para órgãos governamentais e doadores.
(iv) Menos flexibilidade – Deve seguir regras internas (Estatuto) e normas legais, o que pode dificultar mudanças rápidas na organização.
(v) Possível dificuldade de captação – Apenas a formalização não garante recursos; é necessário planejamento, avaliação, prestação de contas, transparência e networking para manter a organização sustentável.
Cabe destacar que a tendência de que a “ONG cresça e se transforme em OSC” não é tão linear, como se poderia pensar. Dependendo do contexto social em que a ONG atua (comunidade pequena, sem a necessidade de firmar parcerias externas), ela pode operar a vida toda sob o formato ONG, e ser efetiva dentro dos objetivos a que se propôs. Também é bastante comum constatar que, com o passar do tempo, muitas ONGs se formalizam como OSCs. Porém, ou a realidade do entorno muda ou elas passam a ter dificuldades em arcar com as obrigações da formalização, o fato é que elas acabam retrocedendo para o formato ONG.
O Instituto São Cosme e Damião (citado no item 3) é um exemplo dessa trajetória de idas-e-vindas: em seus 27 anos de existência (desde 1998), veja que ele nasceu como ONG, depois virou OSC por um curto período, voltou a ser ONG, e agora em 2024 assumiu novamente a estrutura formal de OSC.
Vale lembrar também de OSCs que já nascem formalizadas (como associações) e sólidas, com um padrão de doações já pré-definido. Nesses casos, elas podem ter caráter independente, ou estarem vinculadas a famílias filantropas, ou ainda se constituírem no braço social de alguma empresa. Exemplificando: Movimento Bem Maior tem caráter independente, tendo sido constituído em 2019 como uma “associação privada” voltada para estimular a filantropia no Brasil. Na categoria individual / familiar, o Instituto Reação foi criado em 2004 pelo judoca olímpico Flávio Canto; e na categoria empresarial, bons exemplos são o Instituto Localiza , ligado à empresa Localiza de aluguel de carros, e o Instituto Nu, vinculado ao banco digital Nubank, esses dois últimos criados recentemente em 2021.
5 – Fundação Privada
Conforme previsto também no Código Civil Brasileiro (Lei 10.406, de 2002, artigo 62 a 69), a Fundação Privada é criada a partir da destinação de um patrimônio inicial, seja de uma família ou empresa ou um grupo de pessas, para uma determinada finalidade social. A partir da criação da Fundação, o seu controle passa a estar submetido ao Ministério Público do Estado onde ela foi criada; e qualquer alteração (seja no Estatuto, objetivos ou cláusula de extinção) precisa ser aprovada pelo Ministério Público.
Como se vê, as Fundações Privadas estão submetidas a obrigações legais rigorosas, muito maiores do que as associações. Alguns exemplos de fundação privada: (i) de caráter independente – a Fundação FEAC (Fundação de Educação, Assistência e Cultura), criada em 1964 em Campinas / SP; (ii) de caráter familiar – Fundação Tide Setubal, criada em 2006 pela família Setúbal em homenagem à sua matriarca Mathilde de Azevedo Setubal; e (iii) de caráter empresarial – Fundação Vale, associada à mineradora Vale e fundada em 1968.
6 – Atuação em Rede DENTRO do Terceiro Setor
Uma forma de atuação que não existe per si no Terceiro Setor é a chamada atuação em rede entre as próprias organizações que compõem o Terceiro Setor. Resulta da junção das demais formas (acima) em uma atuação sinérgica, onde se costuma dizer que “1+2+3 pode ser igual a 8 ou 9 ou muito mais”. Uma atuação em rede pressupõe parcerias, troca de saberes e competências, aprendizados, e uma força muito maior para enfrentar desafios complexos e gerar impacto social mais sustentável.
Sem falar na possibilidade dessa rede integrada de iniciativas / organizações dentro do Terceiro Setor firmar também parcerias com as entidades do Setor Público e do Setor Privado Lucrativo dentro de uma relação de poder mais equilibrada e dialógica na discussão dos problemas sociais em comum, e não tão submissa como geralmente tem ocorrido.
Pois o que normalmente se observa é que, por exemplo, ONGs pequenas é que conhecem de perto e vivenciam os problemas das comunidades vulneráveis; no entretanto, atuando de forma isolada, elas acabam entrando muito fragilizadas e submissas nas parcerias que fazem com os setores público e corporativo.
Senão, vejamos alguns casos muito bem-sucedidos de atuação em rede. O Sistema Divina Providência (BH/MG) teve início em 1973 com a construção do Lar dos Meninos São Vicente de Paulo e hoje, mais de 50 anos depois, é uma instituição filantrópica (forma jurídica: associação) complexa e sistêmica, constituída por várias outras instituições (ou associações) que foram sendo criadas, todas guiadas pelas mesmas diretrizes, com uma atuação sólida junto aos diferentes públicos-alvo em vulnerabilidade na Grande BH (crianças, adolescentes, jovens, famílias e idosos).
Outro caso é a Gerando Falcões, que nasceu em 2012 e atualmente se define como um “ecossistema de desenvolvimento social que nasceu na favela, que quer transformar a pobreza das favelas em peça de museu (Favela 3D: Digna, Digital e Desenvolvida)”. Já atua em mais de 6 mil favelas espalhadas por todo o Brasil, dentro de uma de estratégia de rede, que engloba a formação de líderes sociais e o acompanhamento de ONGs. Hoje já são mais de 2 mil ONGs no ecossistema da Gerando Falcões que “recebem aporte financeiro, monitoramento contínuo de seus líderes, para alavancar sua capacidade de impacto nas favelas e desenvolver suas habilidades”.
Por sua vez o ChildFund Brasil, uma instituição filantrópica internacional com o foco em crianças, adolescentes, jovens e suas famílias em áreas de vulnerabilidade, entrou no Brasil (sede em BH / MG) em 1966. Tem como principal estratégia de atuação a execução dos seus projetos (com metodologias próprias) por meio de “organizações sociais parceiras” nas localidades apoiadas. A justificativa é a de que “ninguém conhece melhor as necessidades de uma localidade do que as pessoas daquela região, que vivenciam os mesmos desafios e a mesma cultura”.
Por último, vale lembrar que as obras sociais da Igreja Católica no Brasil ocorrem também em rede no âmbito das Paróquias e das Pastorais, sob a coordenação da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) no nível nacional. Exemplificando com o caso da Pastoral do Menor (no município) do Rio de Janeiro. Ela funciona sob o formato de uma associação, sendo vinculada às diretrizes da Pastoral do Menor Nacional, tendo como missão “promover e defender a vida das crianças e dos adolescentes empobrecidos e em situação de risco, desrespeitados em seus direitos fundamentais”. Atua em parceria com várias empresas e instituições públicas.
Ilustrando essa atuação em rede, veja que no ano de 2023 (último Relatório disponível) foram 339 favelas beneficiadas por meio dos 43 polos da Pastoral do Menor – RJ, que contou com o trabalho de 115 agentes (ou líderes) no “desenvolvimento de atividades socioeducativas com crianças e adolescentes desses territórios, por meio de serviços de convivência e fortalecimentos de vínculos e de proteção e atendimento integral à família, apoio pedagógico, cultura digital, esporte e lazer”.
No Terceiro Setor, organizações formais e grandes seriam as mais efetivas?
No setor corporativo, a resposta seria sim, isto é, o tamanho (faturamento) da empresa poderia ser uma boa proxy da lucratividade, eficiência e capacidade de atendimento das necessidades dos seus clientes.
Porém, no Terceiro Setor essa relação não é linear, além de ser cheia de idas-e-vindas. Tudo vai depender do contexto e das circunstâncias em que cada iniciativa / organização social atua. Não há em tese uma solução ótima; há uma solução que seja melhor para cada momento. Como vimos nos exemplos acima, a organização deve ir o tempo todo se adequando e se equilibrando entre dois pilares, que não necessariamente têm sintonia entre as suas dinâmicas: o pilar das demandas sociais (que é o seu público-alvo, e a sua razão de ser), e o pilar da oferta dos recursos (que são os doadores).
Acredito que no Terceiro Setor o tamanho e a forma da organização não são mandatórios para a sua efetividade. Porém, o ponto a destacar é o caráter relevante e potente da colaboração e formação de redes entre as iniciativas e organizações do Terceiro Setor entre si. Como visto no item 6 acima, organizações tidas como referência do Terceiro Setor no Brasil atuam em rede – como o Sistema Divina Providência, Gerando Falcões, ChildFund Brasil e a Pastoral do Menor -RJ. Representa uma maneira de somar a força da capilaridade e vivência do(s) problema(s) social(is) que as instituições pequenas do Terceiro Setor (formais ou não) têm com a experiência e profissionalismo de instituições formais sólidas.
Fica aqui o desafio a ser amadurecido, tanto na teoria como na prática: o poder das redes entre iniciativas e organizações dentro do (próprio) Terceiro Setor para potencializar o impacto social.