A cultura da doação e o fundador da Nubank

Por on 20/08/2021

NO BRASIL  ainda não temos a cultura da doação, como parece já estar instalada nos Estados Unidos e em alguns países da Europa.  Na maior parte das vezes, nós doamos de forma esporádica, movidos pela compaixão, pena e vontade de ajudar em situações de forte comoção. Está aí o exemplo da pandemia da Covid-19, que conseguiu arregimentar, de uma hora para outra, um valor elevado em doações e de trabalho voluntário.

Sim, nós brasileiros somos generosos, mas ainda não temos arraigada a cultura da doação. A cultura da doação pressupõe compromisso e responsabilidade com a(s) causa(s) e/ou a(s) organização(ões) filantrópica(s) que decidirmos abraçar – além, é claro, da generosidade.  É diferente de doar e ajudar (apenas) em determinados momentos quando ficamos sensibilizados pela dor do outro.

O caso:  David Vélez e Mariel Reyes assinaram o Giving Pledge

A história do casal – O  jovem e belo casal da figura acima  são  o colombiano David Vélez, e a sua esposa, a peruana Mariel Reyes Milk.  Depois de trabalhar no Goldman Sachs e no Morgan Stanley, David Vélez veio para o Brasil e, em 2013,  foi um dos fundadores do Nubank, junto com a brasileira Cristina Junqueira e o americano Edward Wible. Já Mariel, que é economista, trabalhou por 10 anos no Banco Mundial, ao vir para o Brasil e inspirada no trabalho dos “avós missionários”, ela criou em 2016, junto com outras duas sócias (Fernanda Faria e Carla de Bona),  a startup sem fins lucrativos Reprograma.

Foi uma dobradinha de iniciativas que (parece) deu muito certo.  O Nubank nasceu do incômodo dos seus fundadores com o atendimento ineficiente e excludente dos bancos tradicionais no Brasil, com pesadas taxas e muita burocracia. Eles perceberam aí uma oportunidade de negócio e souberam aproveitá-la muito bem. Já em 2021 o Nubank, que tem sede em São Paulo, foi eleito pela revista britânica Euromoney como o melhor banco digital da América Latina, com um total de 40 milhões de clientes. Nesses poucos anos, conseguiu se tornar uma “potência financeira, tendo sido recentemente avaliado em US$ 30 bilhões  em uma rodada privada que incluiu a Berkshire Hathaway de Buffett”. Também sob a ótica do impacto social, de 2013 até hoje  o Nubank já conseguiu incluir, só no Brasil, 3,8 milhões de pessoas que antes eram desbancarizadas.

Só a fortuna de Vélez foi avaliada US$ 5,2 bilhões, tendo sido ele considerado a 539ª pessoa mais rica do mundo e a 12ª do Brasil.

Por sua vez o Reprograma surgiu do inconformismo de Mariel e suas sócias com a discriminação e as desigualdades de gênero no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo em relação às mulheres negras e transgêneras. Se naquele momento a tecnologia já despontava como a base das empresas mais modernas e dinâmicas, por que, então, não oferecer capacitação em programação de computador para esse grupo constituído justamente pelas mulheres mais vulneráveis?  Seria como uma maneira de “reprogramar” a vida delas. Nesses quatro anos do programa, 700 mulheres concluíram os cursos, representando 95% das que passaram pelo programa.    

Em agosto agora (2021), o casal  David Vélez e Mariel Reyes anunciou que assinou o Giving Pledge e, com isso, eles assumiram o compromisso de doar em vida boa parte da fortuna deles. Vão usar os recursos para  criar e desenvolver uma “plataforma filantrópica familiar que se concentrará em melhorar as oportunidades para as crianças e jovens latino-americanos que são mais vulneráveis e desfavorecidos”. No Brasil, apenas o casal Elie Horn, fundador da construtora Cyrela, havia aderido até então ao Giving Pledge, doando 60% de sua fortuna.

O que é o Giving Pledge?  Relembrando o que já comentei em outro artigo, The Giving Pledge (em português: o Juramento de Doação) é uma iniciativa, que partiu em 2010 do então casal Bill e Melinda Gates e Warren Buffet, para a  mobilização de recursos junto aos indivíduos muito ricos em âmbito global, para tratar as questões sociais e humanitárias prementes pelo mundo afora. Trata-se de um convite aberto aos bilionários do mundo (com riqueza de mais de US$ 1 bilhão) de que se comprometam publicamente a doarem mais de 50%  de sua riqueza para a filantropia (em causas e com estratégias de sua escolha), em vida ou em testamento.

Por que o casal fez tamanha doação? Muito bonita, e me pareceu sincera, a Carta do casal  em que eles explicam porque tomaram a decisão de se comprometerem em doar em vida uma boa parte da fortuna (não está dito qual é o percentual) que já fizeram em tão pouco tempo, e que ainda continuarão por fazer ao longo de suas vidas.

Vale a leitura na íntegra da Carta do casal ao The Giving Pledge. Em linhas gerais, são quatro as razões apontadas por eles para assumirem esse Compromisso da doação:

  1. A vida é finita e a mortalidade é incontestável. “Não vamos poder levar nossas posses para onde quer que formos”
  2. Há um limite de dinheiro que se pode gastar. “Não podemos usar dois pares de sapato ao mesmo tempo”
  3. Criar um ambiente familiar favorável ao desenvolvimento dos filhos. “Queremos que nossos filhos construam o próprio caminho deles”
  4. Existe uma extrema urgência em investir para melhorar a vida de milhões de pessoas. “Nesta era de abundância para alguns, milhões de pessoas vão dormir de estômago vazio”

A crítica – Há uma linha de pensamento que critica veementemente essa atitude do casal sob o argumento central de que se trata tão somente de “uma estratégia de marketing para ampliar o mercado para a atuação da empresa (no caso, o Nubank); de publicidade pura; de uma jogada para a plateia”.

Discordo dessa crítica. A meu ver, não está errado assumir o compromisso da doação beneficente (crianças e jovens em situação de vulnerabilidade) e, em paralelo, gerar também benefícios indiretos para o negócio. Desde que, é claro (e aqui eu grifaria!), o casal cumpra rigorosamente com o prometido de fazer uma ação estruturada, sustentável e transformadora em favor do público-alvo em situação de vulnerabilidade que eles selecionaram.   

Aliás, em 2005 propus uma metodologia de avaliação (EP2ASE – Eficácia Pública e Eficácia Privada da Ação Social da Empresa) que era baseada na verificação de se os objetivos planejados para o programa social corporativo estavam sendo alcançados tanto em nível do seu público-alvo (a comunidade beneficiada) como da própria empresa.  É bem verdade que no caso em questão não se trata de um programa corporativo, mas sim de filantropia familiar de um casal empresário /empreendedor, e que pretende, cada um dos dois, seguir em frente com os seus respectivos empreendimentos.

Há mais tempo, ao analisar o papel da filantropia na vida de Andrew Carnegie, empresário super bem sucedido do início do século XX do setor siderúrgico, eu comentava que o ideal do empresário é, para além de comandar uma empresa sustentável, ser também um filantropo comprometido com a transformação social. (Empresário filantropo ou Empresa sustentável – qual importa mais?)

A cultura da doação no Brasil precisa ser fortalecida

Que essa atitude de doação comprometida do casal David Vélez e Mariel Reyes para o resto da vida deles (que eles esperam dure mais meio século) possa servir de exemplo para estimular a cultura da doação no Brasil.

Com isso, não quero dizer que o campo da doação, ou da filantropia familiar comprometida, esteja restrita aos bilionários. Longe disso. Cada família ou cada indivíduo deve fazer uma auto-avaliação para identificar a sua capacidade de doação comprometida e passar, de fato, a assumir essa responsabilidade daqui para frente. Há várias possibilidades. Que vão depender da capacidade financeira e/ou de trabalho voluntário de cada um(a). Que pode ser  constituindo ou fazendo parte de um fundo patrimonial, ou de algum tipo de fundo financeiro atrelado a determinada causa social ou organização filantrópica. Que pode ser entrando como padrinho, ou madrinha, na condição de contribuinte mensal para uma determinada instituição beneficente.

Enfim, há várias alternativas a serem estudadas, e que precisam ser construídas, aprimoradas e colocadas em prática. Nós brasileiros somos um povo generoso, mas precisamos sair da nossa “zona de conforto”, e cada um encontrar a sua maneira de dar uma contribuição comprometida para reduzir as situações de exclusão e pobreza no país.   

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.