NO BRASIL ainda não temos a cultura da doação, como parece já estar instalada nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Na maior parte das vezes, nós doamos de forma esporádica, movidos pela compaixão, pena e vontade de ajudar em situações de forte comoção. Está aí o exemplo da pandemia da Covid-19, que conseguiu arregimentar, de uma hora para outra, um valor elevado em doações e de trabalho voluntário.
Sim, nós brasileiros somos generosos, mas ainda não temos arraigada a cultura da doação. A cultura da doação pressupõe compromisso e responsabilidade com a(s) causa(s) e/ou a(s) organização(ões) filantrópica(s) que decidirmos abraçar – além, é claro, da generosidade. É diferente de doar e ajudar (apenas) em determinados momentos quando ficamos sensibilizados pela dor do outro.
O caso: David Vélez e Mariel Reyes assinaram o Giving Pledge
A história do casal – O jovem e belo casal da figura acima são o colombiano David Vélez, e a sua esposa, a peruana Mariel Reyes Milk. Depois de trabalhar no Goldman Sachs e no Morgan Stanley, David Vélez veio para o Brasil e, em 2013, foi um dos fundadores do Nubank, junto com a brasileira Cristina Junqueira e o americano Edward Wible. Já Mariel, que é economista, trabalhou por 10 anos no Banco Mundial, ao vir para o Brasil e inspirada no trabalho dos “avós missionários”, ela criou em 2016, junto com outras duas sócias (Fernanda Faria e Carla de Bona), a startup sem fins lucrativos Reprograma.
Foi uma dobradinha de iniciativas que (parece) deu muito certo. O Nubank nasceu do incômodo dos seus fundadores com o atendimento ineficiente e excludente dos bancos tradicionais no Brasil, com pesadas taxas e muita burocracia. Eles perceberam aí uma oportunidade de negócio e souberam aproveitá-la muito bem. Já em 2021 o Nubank, que tem sede em São Paulo, foi eleito pela revista britânica Euromoney como o melhor banco digital da América Latina, com um total de 40 milhões de clientes. Nesses poucos anos, conseguiu se tornar uma “potência financeira, tendo sido recentemente avaliado em US$ 30 bilhões em uma rodada privada que incluiu a Berkshire Hathaway de Buffett”. Também sob a ótica do impacto social, de 2013 até hoje o Nubank já conseguiu incluir, só no Brasil, 3,8 milhões de pessoas que antes eram desbancarizadas.
Só a fortuna de Vélez foi avaliada US$ 5,2 bilhões, tendo sido ele considerado a 539ª pessoa mais rica do mundo e a 12ª do Brasil.
Por sua vez o Reprograma surgiu do inconformismo de Mariel e suas sócias com a discriminação e as desigualdades de gênero no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo em relação às mulheres negras e transgêneras. Se naquele momento a tecnologia já despontava como a base das empresas mais modernas e dinâmicas, por que, então, não oferecer capacitação em programação de computador para esse grupo constituído justamente pelas mulheres mais vulneráveis? Seria como uma maneira de “reprogramar” a vida delas. Nesses quatro anos do programa, 700 mulheres concluíram os cursos, representando 95% das que passaram pelo programa.
Em agosto agora (2021), o casal David Vélez e Mariel Reyes anunciou que assinou o Giving Pledge e, com isso, eles assumiram o compromisso de doar em vida boa parte da fortuna deles. Vão usar os recursos para criar e desenvolver uma “plataforma filantrópica familiar que se concentrará em melhorar as oportunidades para as crianças e jovens latino-americanos que são mais vulneráveis e desfavorecidos”. No Brasil, apenas o casal Elie Horn, fundador da construtora Cyrela, havia aderido até então ao Giving Pledge, doando 60% de sua fortuna.
O que é o Giving Pledge? Relembrando o que já comentei em outro artigo, The Giving Pledge (em português: o Juramento de Doação) é uma iniciativa, que partiu em 2010 do então casal Bill e Melinda Gates e Warren Buffet, para a mobilização de recursos junto aos indivíduos muito ricos em âmbito global, para tratar as questões sociais e humanitárias prementes pelo mundo afora. Trata-se de um convite aberto aos bilionários do mundo (com riqueza de mais de US$ 1 bilhão) de que se comprometam publicamente a doarem mais de 50% de sua riqueza para a filantropia (em causas e com estratégias de sua escolha), em vida ou em testamento.
Por que o casal fez tamanha doação? Muito bonita, e me pareceu sincera, a Carta do casal em que eles explicam porque tomaram a decisão de se comprometerem em doar em vida uma boa parte da fortuna (não está dito qual é o percentual) que já fizeram em tão pouco tempo, e que ainda continuarão por fazer ao longo de suas vidas.
Vale a leitura na íntegra da Carta do casal ao The Giving Pledge. Em linhas gerais, são quatro as razões apontadas por eles para assumirem esse Compromisso da doação:
- A vida é finita e a mortalidade é incontestável. “Não vamos poder levar nossas posses para onde quer que formos”
- Há um limite de dinheiro que se pode gastar. “Não podemos usar dois pares de sapato ao mesmo tempo”
- Criar um ambiente familiar favorável ao desenvolvimento dos filhos. “Queremos que nossos filhos construam o próprio caminho deles”
- Existe uma extrema urgência em investir para melhorar a vida de milhões de pessoas. “Nesta era de abundância para alguns, milhões de pessoas vão dormir de estômago vazio”
A crítica – Há uma linha de pensamento que critica veementemente essa atitude do casal sob o argumento central de que se trata tão somente de “uma estratégia de marketing para ampliar o mercado para a atuação da empresa (no caso, o Nubank); de publicidade pura; de uma jogada para a plateia”.
Discordo dessa crítica. A meu ver, não está errado assumir o compromisso da doação beneficente (crianças e jovens em situação de vulnerabilidade) e, em paralelo, gerar também benefícios indiretos para o negócio. Desde que, é claro (e aqui eu grifaria!), o casal cumpra rigorosamente com o prometido de fazer uma ação estruturada, sustentável e transformadora em favor do público-alvo em situação de vulnerabilidade que eles selecionaram.
Aliás, em 2005 propus uma metodologia de avaliação (EP2ASE – Eficácia Pública e Eficácia Privada da Ação Social da Empresa) que era baseada na verificação de se os objetivos planejados para o programa social corporativo estavam sendo alcançados tanto em nível do seu público-alvo (a comunidade beneficiada) como da própria empresa. É bem verdade que no caso em questão não se trata de um programa corporativo, mas sim de filantropia familiar de um casal empresário /empreendedor, e que pretende, cada um dos dois, seguir em frente com os seus respectivos empreendimentos.
Há mais tempo, ao analisar o papel da filantropia na vida de Andrew Carnegie, empresário super bem sucedido do início do século XX do setor siderúrgico, eu comentava que o ideal do empresário é, para além de comandar uma empresa sustentável, ser também um filantropo comprometido com a transformação social. (Empresário filantropo ou Empresa sustentável – qual importa mais?)
A cultura da doação no Brasil precisa ser fortalecida
Que essa atitude de doação comprometida do casal David Vélez e Mariel Reyes para o resto da vida deles (que eles esperam dure mais meio século) possa servir de exemplo para estimular a cultura da doação no Brasil.
Com isso, não quero dizer que o campo da doação, ou da filantropia familiar comprometida, esteja restrita aos bilionários. Longe disso. Cada família ou cada indivíduo deve fazer uma auto-avaliação para identificar a sua capacidade de doação comprometida e passar, de fato, a assumir essa responsabilidade daqui para frente. Há várias possibilidades. Que vão depender da capacidade financeira e/ou de trabalho voluntário de cada um(a). Que pode ser constituindo ou fazendo parte de um fundo patrimonial, ou de algum tipo de fundo financeiro atrelado a determinada causa social ou organização filantrópica. Que pode ser entrando como padrinho, ou madrinha, na condição de contribuinte mensal para uma determinada instituição beneficente.
Enfim, há várias alternativas a serem estudadas, e que precisam ser construídas, aprimoradas e colocadas em prática. Nós brasileiros somos um povo generoso, mas precisamos sair da nossa “zona de conforto”, e cada um encontrar a sua maneira de dar uma contribuição comprometida para reduzir as situações de exclusão e pobreza no país.