No mundo da avaliação social, muita coisa mudou nesses últimos cinco anos. O impacto social deixou de estar restrito aos programas do setor público ou das instituições filantrópicas, e passou a constituir o propósito de algumas empresas privadas lucrativas, as chamadas ´empresas com impacto`. Tanto que, hoje em dia, é comum ver ´impacto social` associado aos negócios, e não mais limitado aos projetos sociais. Em se tratando da avaliação do impacto social, será que muita coisa também mudou em termos de metodologia?
Avaliação Social em 3 momentos: o uso do Marco Lógico
De 1950 a 1995 – Uso restrito ao setor público
Mesmo nos países desenvolvidos e limitada ao setor público, a avaliação social é uma prática relativamente recente, dos anos 1950. Ela surge frente à necessidade de prestação de contas em razão dos vultosos recursos que eram destinados às políticas governamentais do Welfare State (sobretudo nos países europeus) e do apoio dos EUA à reconstrução do pós 2ª Guerra Mundial.
No final dos anos 60, a USAID criaria o conhecido método do Marco Lógico, tendo em vista a necessidade de orientar o planejamento e o acompanhamento dos programas sociais de assistência dos EUA aos países em risco social. No Brasil, foi só a partir da segunda metade da década 1990 que o método do Marco Lógico começou a conquistar espaço para orientar o desenho e a implementação dos programas sociais do setor público.
O método do marco lógico está baseado em uma estrutura matricial hierárquica de objetivos (fig. acima), definidos segundo relação de causa-e-efeito, e para os quais são explicitados indicadores, metas, fontes de verificação e pressupostos. Desenhado inicialmente como ferramenta de planejamento para os programas sociais, passou a ser também muito utilizado como referencial para guiar a avaliação de processo (ou monitoramento) e a avaliação de resultados – seja os resultados imediatos (objetivos específicos) e os resultados de longo prazo (impacto). Ou seja, o marco lógico como instrumento para subsidiar a verificação se o que foi planejado foi efetivamente alcançado.
Essa época coincidiu com o auge (nos EUA) da avaliação de impacto baseada em métodos estatísticos complexos de pesquisa experimental, conduzida por especialistas do meio acadêmico. O uso desse tipo de avaliação [que é dispendioso, demorado e acessível apenas a iniciados] se justificava em função de ser aplicado a programas de ampla abrangência, seja geográfica ou em número de pessoas.
De 1995 a 2015 – Uso adaptado à Ação social das empresas e ao Terceiro Setor
Até por volta de 1995, predominava o entendimento de que a ação social das empresas e/ou a atuação das instituições filantrópicas não precisavam ser avaliadas. Isso porque, diferente dos programas sociais públicos, elas eram iniciativas pequenas, pontuais, voluntárias e de benemerência.
A partir da minha própria trajetória, ilustro como esse entendimento foi se alterando aos poucos no Brasil.
Em 2004, o foco da minha tese de doutorado foi a avaliação de projetos sociais conduzidos por empresas privadas. Naquela época as empresas estavam começando a desenvolver “ação social” voltada para as suas comunidades do entorno, tendo por base o conceito da RSC – Responsabilidade Social Corporativa.
O método de avaliação que propus – EP2ASE (Eficácia Pública e Eficácia Privada da Ação Social da Empresa), procurou definir os passos (em especial, ver cap. 8 do livro) para verificar como a iniciativa social estava beneficiando a comunidade (Eficácia Pública) e os negócios da empresa (Eficácia Privada) – isto é, o relacionamento da empresa com os seus demais stakeholders (acionistas, clientes, funcionários, fornecedores e governo).
Dez anos depois, de 2011 a 2015, como professora-convidada na monitoria de avaliação de projetos sociais em um programa da Fundação Dom Cabral (FDC) de parceria com organizações sociais, adaptei a metodologia EP2ASE para trabalhar o planejamento e a avaliação nessas organizações do terceiro setor (Manual FDC/POS). Dentre essas adaptações, destaco:
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- eliminei a dimensão ´eficácia privada`;
- tratei a entrada e saída de participantes ao longo da vida do projeto;
- tratei a questão da medição aproximada da causalidade no âmbito da avaliação dos resultados de impacto;
- (re)defini o sentido de ´objetivo de impacto`;
- dei ênfase à estruturação do plano de trabalho (planilhas para cronograma, atribuição de responsabilidades, custos, parcerias).
Assim, o marco lógico foi utilizado como uma ferramenta interna para o planejamento, a avaliação e a gestão dos projetos sociais pela própria organização social – em contraposição à ênfase nas avaliações externas, normalmente encomendadas pelo setor público.
Em ambos os casos, veja que tanto para a avaliação da ação social corporativa como para a avaliação dos projetos sociais das organizações do terceiro setor, tomei como base o referencial do marco lógico. É claro, sempre procurando evoluir e adaptar a ferramenta, em função do aprendizado que íamos adquirindo, e das necessidades que iam surgindo.
De 2015 até o presente – Nova readaptação para as Empresas com Impacto
Hoje em dia, atuar na solução de um problema social e/ou ambiental não está mais restrito aos governos e às iniciativas filantrópicas. Nesses últimos cinco anos, começou a surgir no Brasil, e a ganhar força, a figura da “empresa com impacto” (socioambiental), que é aquela que, ao mesmo tempo em que é lucrativa e autossustentável, tem como sua razão de ser a solução de um problema social e/ou ambiental.
Daí porque tornou-se necessário novas adaptações. No Brasil, essas adaptações vêm sendo trabalhadas por um pool de organizações [ICE, Fundação Grupo Boticário, Move Social e Sense-Lab ] que desenvolveram o Modelo C ( ´C` de Completo), como explicou Daniel Brandão (diretor da Move-Social) em seu podcast do InovaSocial sobre métricas de impacto social.
O ´Modelo C` é, pois, apresentado como sendo uma “ferramenta estratégica”, que traz uma “nova abordagem” de planejamento e avaliação para os negócios com impacto, buscando integrar a dimensão do impacto social ( usando a metodologia da Teoria da Mudança) com a dimensão do retorno econômico ( usando a metodologia do Business Model Canvas). O Modelo C se subdivide em 3 dimensões (fig. acima): (i) Teoria da Mudança, (ii) Capacidade organizacional, e (iii) fluxo do negócio.
Avaliação nas Empresas Com Impacto – o Modelo C é uma nova abordagem?
O Modelo C representa um referencial didático e (de fato) completo para orientar o planejamento, avaliação e a gestão das empresas com impacto. Porém, a meu ver não representa uma nova abordagem, para além do Marco lógico.
Assim, tomando por base a ferramenta que desenvolvi no Manual FDC / POS para o planejamento e avaliação de projetos sociais em organizações do terceiro setor (em especial o capítulo 3), considero que o Modelo C representa mais uma evolução e adaptação do Marco Lógico, de modo a atender às necessidades de gestão dos negócios com impacto. Não se constitui, em si, em um novo instrumento. E por quê?
Primeiro, e diferente do que está no Guia do Modelo C, o Marco Lógico e a Teoria da Mudança são partes de um mesmo modelo, e não métodos separados. Tal como Frechtling (2007), entendo o marco lógico como sendo uma ferramenta didática para descrever (tangibilizar) a Teoria da Mudança, associada a uma intervenção, produto ou política.
Segundo, como procurei mostrar acima, ao longo dos anos a ferramenta do Marco Lógico foi evoluindo, de modo a atender às necessidades de gestão das organizações com iniciativas de impacto.
Assim, o instrumento foi inicialmente desenhado para atender as organizações do setor público; depois adaptado para a área filantrópica das empresas e para as organizações filantrópicas em geral; e agora, está sendo adaptado para as empresas com impacto. Tanto que, considerando as 3 dimensões contempladas no mapa do Modelo C (Teoria da Mudança, Capacidade Organizacional e Fluxo do Negócio), as duas primeiras já vinham sendo trabalhadas no planejamento e avaliação do terceiro setor (Manual FDC/POS).
Concluindo….
O ponto importante a ressaltar é que a ferramenta do marco lógico é simples, porém abrangente e poderosa para apoiar as organizações com impacto – sejam elas públicas, filantrópicas ou lucrativas. O desafio está em saber utilizá-lo de forma adequada e participativa. Cabe, pois, às empresas com impacto fazerem o seu uso correto e as adaptações / inclusões necessárias. A ferramenta segue sendo a mesma.