Pobreza e Terceiro Setor: por onde começar?

Por on 27/10/2022

Estamos vivendo um período conturbado no Brasil, às vésperas de uma eleição polarizada e desgastante. Nessas circunstâncias é sempre bom lembrar que, independentemente da estratégia de governo ou do partido político no poder, combater e erradicar a pobreza no país é obrigação e dever do Estado, previsto explicitamente na Constituição Federal  de 1988, em seus artigos 3 e 6.   Por outro lado, há que se reconhecer também o agravamento da pobreza nesses últimos três anos, em grande medida decorrente da pandemia da Covid 19, do desaquecimento das economias em geral  e da aceleração no uso das tecnologias digitais. Ou seja, três fatores “fora do controle” e desencadeadores imediatos  de desemprego, precarização nas relações de trabalho, deterioração nas desigualdades sociais e na qualidade de vida.

E então, por onde começar para estancar esse empobrecimento das famílias? Como engendrar um processo de desenvolvimento que, diferente do passado, seja agora inclusivo, no sentido de inserir a todos (e não apenas alguns!) nessa retomada econômica? Qual o espaço de atuação do Terceiro Setor?

Movimento Brasil sem Pobreza

O Movimento Brasil Sem Pobreza surgiu em 2020 com esse propósito, no auge da pandemia. Surgiu a partir da iniciativa de “um pequeno grupo de pessoas com longa trajetória em comunicação e desenvolvimento social”, “ movidas pelo objetivo de construir um Brasil sem pobreza”, “que  se identificavam como estimuladoras de um amplo Pacto nacional, sem vínculo partidário ou religioso, voltado a  agregar forças da sociedade civil e do Estado”.

 O Movimento foi crescendo e ganhando apoiadores – e aqui me atenho a citar dois deles com os quais tive a honra de conviver em minha época de FGV, Sonia Fleury e Ricardo Paes de Barros.

Só recentemente, por ocasião do lançamento do “Painel de Indicadores da Pobreza Multidimensional” (set. 2022) é que conheci esse Movimento, e assinei o ‘Manifesto Brasil Sem Pobreza`. Recomendo fortemente a todos que estão, de alguma forma, disponíveis para contribuir para o combate da pobreza no Brasil, que assistam ao vídeo explicativo  sobre o  Painel de Indicadores e assinem o Manifesto.

Painel de Indicadores da Pobreza Multidimensional – o que é?

A construção do Painel está baseada no entendimento de que o conceito de POBREZA vai muito além da insuficiência de renda, que é o indicador amplamente utilizado em âmbito internacional (% pessoas abaixo de um determinado nível de renda para caracterizar a pobreza extrema, ou miséria, e a pobreza). No Brasil, normalmente se utiliza o nível de renda mensal de ½ salário-mínimo para caracterizar a pobreza extrema, e de 1 salário-mínimo para definir pobreza.

No Painel, o conceito adotado para pobreza é amplo, tem várias dimensões (multidimensional) que, em separado ou juntas, vão caracterizar a precariedade das condições de vida de uma pessoa / família. O foco aqui é na pobreza per si, ou pobreza absoluta; não é na comparação com outro(s) para se concluir acerca da pobreza (pobreza relativa).

A intenção do Painel é medir a pobreza no Brasil a partir da identificação dos territórios onde, e em qual intensidade, ocorre a violação dos direitos sociais do cidadão, que estão assegurados na Constituição Federal Brasileira. Em seu artigo 6, estão listados quais são esses direitos sociais garantidos ao cidadão, um total de 11, a saber “educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados” (entenda melhor os direitos sociais)

Se o objetivo é criar/fortalecer iniciativas para eliminar a pobreza, temos que começar por  medir a pobreza e identificar com clareza (mapear) onde ela está e qual a sua intensidade. Pois, e aqui citando o conhecido físico Lord Kelvin (séc. XIX), “aquilo que não se mede, não se pode melhorar”.

O  Painel de Indicadores resulta, pois, dessa etapa inicial e básica do Movimento Brasil Sem Pobreza, tendo sido estruturado e conduzido pela Oppen Social  sob a coordenação de Ricardo Paes de Barros. Em sua primeira versão, o Painel está constituído por 7 dimensões, que se abrem em um total de 30 indicadores (quadro 1). Foram levantados/estimados os dados anuais a nível de cada município brasileiro (total de 5.570 municípios), para o período 2010 a 2021.

 Quadro 1: Dimensões e Indicadores que compõem o PAINEL DA POBREZA MULTIDIMENSIONAL

DimensõesIndicadores
Trabalho e RendaEmprego formal entre a população residente de 15 a 64 anos de idade (%)
PIB per capita a preços constantes de 2010 (mil R$)
População com renda mensal de até ½ salário-mínimo inscritas no CadUnico e a População residente (%)
SegurançaTaxa de homicídios por 100 mil habitantes
Taxa de homicídios por 100 mil hab. – 15 a 29 anos de idade
Taxa de óbitos por acidentes de transporte por 100 mil habitantes – 15 a 29 anos de idade
HabitaçãoDomicílios com acesso adequado ao saneamento – CadÚnico (%)
Domicílios c/ acesso adequado à coleta de lixo – CadÚnico (%)
Domicílios c/ acesso adequado à água – CadÚnico (%)
População com acesso adequado à água na residência – MDRSNIS (%)
População com acesso adequado à coleta de lixo na residência – SNIS (%)
População com acesso adequado ao saneamento na residência – SNIS (%)
4. NutriçãoPercentual de recém-nascidos com baixo peso (inf.2,5 Kg) entre mães c/baixa escolaridade (com até 7 anos de estudo) – %
Percentual de recém-nascidos com baixo peso (inf.2,5 Kg) ao nascer (%)
5. SaúdeEsperança de vida ao nascer (anos)  – AtlasBR / FJP
Taxa de doenças metabólicas com internações para jovens e adultos (15 a 64 anos) por mil habitantes  – MS/SUS
Taxa de doenças respiratórias com internações para  jovens e adultos (15 a 64 anos) por mil habitantes  – MS/SUS
Taxa de mortalidade infantil (menos de 1 ano) por mil habitantes (MS/SUS)
Taxa de mortalidade por mil hab (MS / SUS)
Taxa de cobertura vacinal (%) – MS
 Taxa de cobertura pré-natal adequada  (MS)
6. EducaçãoPercentual de alunos com Distorção idade-série nos anos finais do Ensino Fundamental  (%)  (INEP/ME)
Percentual  de crianças e adolescentes fora da escola, 5 a 17 anos (%)  INEP
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) p/ os anos finais do Ensino Fundamental  (índice), INEP /ME
Percentual de alunos  do 9º ano que obtiveram desempenho adequado no SAEB em Matemática e Português (%)   INEP
7. AssistênciaPercentual de idosos (+ 65 anos) e pessoas com deficiência (PCDs) que recebem o BPC (Benefício de Prestação Continuada) %   CadÚnico e MDS
  Percentual de mulheres que tiveram gravidez precoce (menos de 19 anos) %
Percentual de institucionalização de idosos (acolhidos em abrigos institucionais)   MS
Pessoas em situação de rua em relação à população residente (%)  SUAS
Percentual de pessoas em famílias beneficiadas pelo Bolsa-Família (até out.2021) e Auxílio-Brasil e a População residente  (%)  – CadÚnico/MDS

 Fonte: Movimento Brasil Sem Pobreza / Painel de Indicadores, a partir de diferentes estimativas junto a órgãos públicos ligados aos diferentes Ministérios do Governo Federal.

Importante reforçar que o  Painel dos Indicadores da Pobreza Multidimensional acabou de ser lançado (28.09.2022), e está disponível para acesso gratuito (link) a todos que tenham interesse em acessá-lo,  de modo a poderem contribuir para reduzir e erradicar a pobreza – sejam eles gestores / representantes do setor público, do terceiro setor, das empresas privadas, das startups, da academia, da famílias. Daqui para frente, o Painel pretende ser uma “ferramenta de análise qualificada” para viabilizar o planejamento e a avaliação de medidas focadas no território para o combate à pobreza.

Painel de Indicadores da Pobreza Multidimensional – é mesmo necessário?

Observando os indicadores que compõem o Painel, poder-se-ia questionar as vantagens dessa ferramenta vis-à-vis às pesquisas já existentes do IBGE de cunho social, tais como o Censo Demográfico, as PNADs e outras pesquisas específicas.

A primeira vantagem diz respeito ao grau de atualidade da informação. O Censo Demográfico dispõe, sim, de várias dessas informações a nível de município. Porém, os últimos dados disponíveis são de 2010. Já os dados do Painel pretendem ser atualizados regularmente todo ano, a partir dos registros administrativos das unidades executoras dos diferentes Ministérios (como da Saúde, Educação, Desenvolvimento Social, Desenvolvimento Regional,…) ou estimativas de instituições de pesquisa, como o próprio IBGE e a FJP.

A segunda vantagem do Painel está relacionada ao alcance de representatividade da estimativa social gerada.  Embora a PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) tenha periodicidade trimestral, a representatividade das amostras geradas pela Pesquisa só chega a nível de região metropolitana das capitais – além, é claro, de Brasil, Unidades da Federação e Grandes Regiões do país. No caso da PNAD, vale lembrar que se fala em termos de estimativa e amostra, porque não se está lidando aqui com o universo da população, como é o caso do Censo.

A terceira vantagem do Painel é o seu mérito de conseguir consolidar e sistematizar de maneira consistente e dinâmica, em um único espaço (que é o portal), as informações sociais relevantes para acompanhar a evolução da pobreza no Brasil. Fruto, é claro, do esforço do Movimento Brasil Sem Pobreza e da Oppen Social nesses últimos dois anos.

Como o Terceiro Setor pode usar o Painel de Indicadores da Pobreza Multidimensional?

O objetivo do Painel de Indicadores está  explicitado como sendo o de “contribuir para o desenho e a implementação de políticas públicas mais eficientes no combate à pobreza extrema no País. Pois programas de distribuição de renda (como por ex., o atual Auxílio-Brasil) são importantes e necessários, porque contribuem para reduzir o sofrimento das famílias e evitar convulsões sociais, mas não são suficientes para alavancar a inclusão econômica efetiva de seus beneficiários”.

No entanto, um analista minucioso poderia indagar: Se o Painel pretende ser relevante para a implementação de políticas públicas, logo se pode concluir que ele é relevante basicamente  para os gestores públicos. E o Terceiro Setor e a sociedade como um todo, como eles entram nessa frente contra a pobreza? Como vão se relacionar com o Painel?

Primeiro, é preciso ter clareza sobre o conceito de políticas públicas, ou políticas de interesse público, relacionadas à pobreza. Podemos afirmar que elas representam um conjunto de iniciativas criadas pelos governos, em suas diferentes esferas, para garantir os direitos previstos na Constituição Federal (arts. 3 e 6) às populações em situação de vulnerabilidade social. Assim a criação e execução das políticas públicas de combate à pobreza são de responsabilidade dos governos no Brasil (o chamado Primeiro Setor) em suas esferas federal / estadual e municipal, que foram especialmente eleitos para tal.

Porém, toda a população pode assumir participação coadjuvante importante para a implementação dessas políticas públicas, seja por meio do seu acompanhamento e fiscalização, execução e também realização de parcerias para ampliar / potencializar as ações. Esse envolvimento pode se dar por meio do Terceiro Setor (ou da sociedade civil organizada) ou das empresas privadas – sejam elas lucrativas (Segundo Setor) ou lucrativas com impacto social (o chamado Setor 2,5). E, se queremos de fato um Brasil Sem Pobreza, quanto mais presente e forte for a atuação dos diferentes atores da população nas políticas públicas, maiores serão as chances de conseguirmos.   

Segundo, o Painel será, sim, importante para que os gestores públicos, em suas diferentes esferas, possam conduzir as políticas públicas de modo mais efetivo e eficiente. E por quê? Pela simples razão de que a disponibilidade de informação atualizada, consistente e relevante serve para iluminar a escolha e o acompanhamento de estratégias focadas no problema social de cada território (por enquanto município ou grupos de municípios)

Porém (e aqui há um erro de lógica no pressuposto usado para a pergunta acima) o Painel de Indicadores será importante não apenas para os gestores públicos, mas também para iluminar as estratégias de todos os atores da população envolvidos e comprometidos no combate à pobreza – seja terceiro setor, empresas e indivíduos.

Terceiro, e finalmente respondendo sobre como deve ser a atuação do Terceiro Setor no combate à pobreza e como deve se dar a sua relação com o Painel de Indicadores, o ‘Manifesto na Íntegra` traz explicitada a resposta em seu último parágrafo. Senão vejamos:

“Juntos, podemos fazer acontecer. Vamos tirar do esquecimento as comunidades mais pobres do país. Vamos ampliar a voz de cada uma delas. Vamos descrever a pobreza absoluta, mostrar onde ela está e quanta gente sofre com ela. Vamos propor políticas públicas de redução das desigualdades e de superação da miséria e pressionar para que sejam implementadas. Vamos dar força a quem já está trabalhando e mobilizar novos atores. Grupos, pessoas, associações, instituições. É assim que chegaremos lá”.

Fica claro que a função do Painel de Indicadores é fornecer as bases para um diagnóstico preciso e multidimensional da pobreza absoluta. A partir desse diagnóstico, o papel do Terceiro Setor / Empresas / Indivíduos é o de contribuir, cada um a seu modo, para combater a pobreza. O Manifesto traz alguns exemplos sobre como atuar: buscar dar protagonismo às comunidades pobres, fazer “advocacy”, e fortalecer as organizações que já trabalham, ou que têm potencial para trabalhar, junto a essas comunidades. Assim, o Painel pretende viabilizar o início consistente dessa trajetória rumo ao fim da pobreza.

Veja que o Painel está sendo inaugurado tendo o município como unidade mínima de análise; o ideal, evidentemente, é poder chegar a nível de comunidade/favela. Ele está começando com 7 dimensões e 30 indicadores; o ideal é poder ter a capacidade de retratar o “quadro completo” da pobreza, segundo um sistema padronizado de base de dados. Ou seja, o ideal é poder focar o máximo possível nos bolsões de pobreza.  

Assim, é do uso do Painel de Indicadores que a ferramenta poderá ir se aperfeiçoando. Quer isso dizer que à medida em que o Painel for sendo usado, novas necessidades de informações vão surgir; daí, ele irá ganhando reforços e musculatura e se tornando ainda mais útil. Mas por outro lado, fica o alerta de que se começar a ser pouco usado, o Painel vai acabar deixando de ser atualizado, vai definhar, perder credibilidade e, com isso, perder a sua razão de ser.  

ENFIM, o que o Painel de Indicadores da Pobreza Multidimensional  pretende ser é o farol que  ilumina os territórios onde existem situações de pobreza  no país, de modo a elucidar os problemas mais relevantes, entender as suas causas e equacionar as soluções, a partir de esforços conjuntos dos governos, terceiro setor, empresas e indivíduos relacionados e engajados com esses territórios.  Dito em outras palavras, o Painel pode se tornar em importante aliado de todas essas organizações, e não apenas das organizações do terceiro setor, em suas iniciativas de combate à pobreza, seja no campo da educação, saúde, trabalho e renda, moradia, saneamento,  dentre outros. Mas sobretudo no caso das organizações do terceiro setor,  pois são elas que têm no combate à pobreza e às desigualdades sociais a sua razão de ser.

NOTA – Para quem quiser aprofundar o tema, sugiro conhecer o trabalho da Fundação Tide Setúbal: A Lupa na Cidade – Painel de Indicadores de Desenvolvimento de Áreas Urbanas Vulneráveis. Foi um estudo desenvolvido pelo Insper Metrics (2020) para propor um painel de monitoramento socioambiental para áreas urbanas vulneráveis, a partir da interação entre várias “teorias de mudança” com seus respectivos e muitos indicadores, sendo depois feita a sua aplicação para região pobre da cidade de São Paulo (bairro Jardim Lapenna), apoiada desde 2005 pela Fundação Tide Setúbal.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.