Dilemas de um Filantropo no Brasil

Por on 22/05/2024

Doar com eficácia e comprometimento com a transformação social não é trivial. Ao contrário, é muito difícil. Exige a análise cuidadosa de vários fatores para orientar essa tomada de decisão – pois o que o filantropo comprometido quer é poder ajudar de modo efetivo na solução dos inúmeros problemas sociais que o rodeiam.  Pressupõe dizer “não” a uma série de possíveis alternativas sobre o uso dos recursos doados, para poder dizer “sim” a algumas poucas iniciativas filantrópicas que selecionar. Além de ser uma decisão que muitas vezes tende a ser sofrida e demorada para o doador porque, por um lado, ele é pressionado pela urgência de querer ajudar frente a tantas carências sociais que o comovem e, por outro, é puxado para trás pelo excesso de cautela e imobilismo nessa busca por maximizar acertos.

Antes de explicitar alguns desses dilemas enfrentados pelo filantropo brasileiro, vou procurar delimitar alguns elementos que, a meu ver, compõem o campo atual da filantropia no Brasil e os seus desafios.  Essa reflexão tem a intenção de procurar sistematizar conceitos e subjetividades que permeiam esse campo.

Delimitando alguns elementos do campo da Filantropia no Brasil

1 – Por filantropo entenda-se a pessoa que, movida por sentimento de generosidade, tem a intenção de doar tempo, dinheiro e bens, de acordo com as suas possibilidades, de modo contribuir para a solução de problemas sociais e/ou de promoção de qualidade de vida.   O filantropo comprometido com a eficácia é aquele que busca conseguir gerar o máximo possível de resultados “do bem” (valor social), a partir dos seus recursos doados.  Pois também há filantropos que doam pelo impulso de querer ajudar, sem a preocupação da eficácia.

2 – A cultura da doação é um aprendizado que se vai desenvolvendo ao longo da vida, independentemente de ter nascido em família rica ou pobre. Quando se é criança, os exemplos de empatia e generosidade (dos pais e da escola) são decisivos para moldar valores e atitudes na pessoa. Quando se é adulto, os vários compromissos e obrigações da vida adulta (profissão e filhos) podem representar um limitante para o potencial de doação. E quando se entra na chamada “fase da maturidade”, desponta a vontade de retribuir o muito que se recebeu em vida, há maior disponibilidade de recursos para doação, mais experiência de vida, porém aguça o olhar crítico e seletivo sobre para onde doar. O fato é que para cada uma dessas fases e circunstâncias de vida das pessoas há formatos mais adequados para se poder estimular a filantropia.

Quais poderiam ser os padrões de filantropia mais adequados para cada fase e circunstâncias da vida dos indivíduos e suas famílias no Brasil? Por exemplo, um padrão mais individualizado, por projeto ou organização filantrópica.  Ou uma atuação mais coletiva e/ou estruturada.  Ou modelos de filantropia baseados na vizinhança e/ ou por semelhanças de interesses e/ou exame dos sites. Fica a provocação.

3 – Ainda tratando de cultura de doação, é preciso primeiro desenvolver a capacidade de doar para, depois, colocá-la em prática.  Assim, quando se é adolescente ou jovem, é importante adquirir sensibilidade aos sofrimentos e necessidades alheias e também adquirir exposição às mais diferentes experiências e possibilidades de ajuda. Faz parte da formação integral de um jovem o aprender a não se fechar em seu próprio “mundo” e necessidades. Um exemplo desse tipo de formação é o adolescente que é levado a dispor parte do seu tempo a visitar comunidades carentes e a acompanhar outros adolescentes que nem ele, porém que já nasceram cegos.

Da fase adulta em diante, em função de competências adquiridas e de disponibilidades (de tempo e recursos), o que se espera é que cada pessoa passe a assumir atitudes de ajuda ao próximo, a ser co-participante no combate às mazelas sociais, e a fazer escolhas quanto a estratégias de filantropia.

Será que nós no Brasil já estamos conseguindo ter atualmente um planejamento de vida pró-filantropia? Na prática, o que isso significa de concreto – em termos de formação dos filhos, estruturação dos investimentos da família e ocupação do “tempo livre”? Fica aqui uma questão a ser aprofundada.

4 – Da relação entre DOAR e EXECUTAR, vejo três tipos básicos de se fazer filantropia. No primeiro, o indivíduo doa recursos financeiros e atua também diretamente na execução / orientação da iniciativa social. No segundo, o indivíduo doa recursos financeiros, mas não entra na execução. E no terceiro, participa da execução (doação de competências /trabalho voluntário), mas não entra na doação financeira. Em qual(is) desse(s) tipo(s), o filantropo deseja atuar? Dependendo de como o filantropo se estrutura, ele pode atuar das 3 maneiras, sem que isso queira significar que ele esteja sendo mais ou menos eficaz na sua contribuição social.

5 – Para maximizar a eficácia das doações, uma condição básica diz respeito à escolha da(s) organização(ões) parceira(s) do filantropo. Pois, dependendo do modo de atuar dessas organizações, há grandes chances de o filantropo ser eficaz – ou não.

Entendo como ‘organizações parceiras do filantropo` as organizações do terceiro setor que executam diretamente o trabalho social com os beneficiários (executoras), ou aquelas que atuam indiretamente na coordenação, apoio e aceleração das organizações executoras (intermediárias). Por sua vez, as ‘organizações parceiras executoras` tanto podem ser formais (registradas com cnpj, normalmente conhecidas como OSCs – Organizações da Sociedade Civil) ou informais (não têm cnpj, comumente chamados por coletivos, organizações comunitárias, ou simplesmente ONG – Organização Não Governamental). Qual a estratégia o filantropo deve adotar em sua escolha da organização parceira?

A título de ilustração, o Abraço Campeão, no Complexo da Maré no RJ, é um exemplo de organização executora “madura” certificada pelo ´Selo Doar” (de Padrões de Gestão e Transparência – PGT) da Certificadora Social. Outro exemplo é a Gerando Falcões, uma ONG “super madura” (que se define como “ecossistema de desenvolvimento social”) que serve como guarda-chuva para impulsionar o trabalho de várias outras ONGs pelas favelas do Brasil afora. Já o Mudando o Placar (MOP), na favela da Rocinha (RJ), é também uma organização social executora, porém em fase inicial, ainda informal e frágil, que luta por se manter de pé.

Por outro lado, são exemplos de organizações intermediárias no Brasil o Instituto Phi (de assessoria aos filantropos), o Phomenta ( de aceleração de ONGs ), o Movimento Bem Maior (fortalecimento de organizações socias estratégicas e iniciativas comunitárias em áreas vulneráveis), o Confluentes (união de doadores individuais para o fortalecimento ds ONGs qualificadas), o Atados (conexão entre ONGs e voluntários), a Sitawi Finanças do Bem (de gestão de recursos para filantropos, empresas e iniciativas coletivas) e a Brazil Foundation (com alternativas de filantropia no Brasil para indivíduos e famílias).

6 – Tem crescido rapidamente no Brasil o papel dos ‘fundos patrimoniais filantrópicos’, também conhecidos como “endowments”, que são constituídos a partir de doações em dinheiro de famílias extremamente ricas (fundos filantrópicos familiares) ou de pessoas que se cotizam para compor um fundo em prol de uma causa comum (fundos filantrópicos independentes). Basta ver que, pelo Monitor do IDIS, em abril / 2022, eram  apenas 54 fundos cadastrados; e apenas 2 anos depois (abril/2024), esse número mais que dobrou, para 110 fundos, representando um patrimônio total informado de R$ 119 bilhões. O valor do patrimônio desses fundos é bastante diverso, com valores que vão desde R$ 30 mil (caso do Endowment Alumni Direito Mackenzie).

A primeira vista, um possível fator dificultador na criação e manutenção de fundos patrimoniais filantrópicos seria o elevado custo de gestão desses recursos, com a obrigatoriedade da figura da ‘organização gestora` (que deve ser sem fins lucrativos)  trazida pela Lei 13.800 (2019), de regulamentação dos fundos patrimoniais no país. Porém, já estão sendo envidados esforços para contornar essa questão, haja vista a iniciativa da Sitawi Finanças do Bem que criou (2022) a Endowments do Brasil com a finalidade de ser uma organização gestora para administrar, de modo coletivo, os fundos patrimoniais que forem trazidos por ONGs e filantropos – valendo-se de uma infra-estrutura comum e, portanto, diluindo custos.

Dilemas do filantropo

A partir desse pano de fundo traçado, percebo que o filantropo (ou potencial filantropo) no Brasil se vê um pouco angustiado frente a tantos dilemas, tais como:

1A – Os problemas sociais no país são imensos, aí incluídos os ambientais.  Cabe ao filantropo decidir se vai se deixar comover e ajudar a todas as demandas que chegarem até ele, ou se vai usar um filtro rígido para poder ser mais relevante e eficaz em suas doações. Ter foco sim ou não? E se sim, isso significaria dizer ‘não` às inúmeras chamadas de telemarketing?

1B –  Ou em relação às causas emergenciais, como foi a das enchentes recentes no RS ou a da Covid-19, a questão do foco não se aplica e se deve apoiar sempre? Ou manter também a cautela para identificar as melhores estratégias de ajuda?

2A – Eleger uma organização social executora e doar diretamente para ela? E, nesse caso, adotar critérios próprios para essa escolha da organização (de proximidade, referências, conhecimentos, etc…)? E quanto à periodicidade, fazer doações regulares, tipo apadrinhamento? Ou doações pontuais maiores?

2B– Ou doar indiretamente para organizações executoras valendo-se da assessoria e dos critérios estabelecidos pelas organizações intermediárias para identificar “ONGs confiáveis para receber doações”? Nesses casos, o que se observa é que as doações tendem a beneficiar organizações tidas como “maduras”.

3  – Maturidade em gestão X Maturidade em resultados (ou desempenho)? Será que doar para uma organização classificada como “madura” em termos de gestão é critério suficiente?  Uma organização do terceiro setor, seja executora e/ou intermediária, pode ser classificada como “madura” em termos de gestão (processos) e não ser igualmente “madura” em termos de resultados (está bem aquém do valor social que poderia gerar). No setor social, não é raro ocorrer o foco exagerado em comunicação e marketing (requisito de gestão), porém pouca atenção no diagnóstico das reais necessidades do público atendido.

4 – Doar com o foco nos resultados finais a serem alcançados junto ao público beneficiário? Ou doar com o foco no fortalecimento institucional? Ou ambos, isto é, doação na base da confiança, delegando sempre para a equipe gestora da organização a decisão quanto à destinação dos recursos doados?

5 – O doador tem o direito de exigir a prestação de contas específica sobre o uso previsto do recurso doado? Ou esse tipo de exigência pode acabar representando um fardo burocrático para a organização receptora (do recurso)? Ou será que a prestação de contas e a AVALIAÇÃO de resultados deveriam ser elaboradas de modo abrangente, englobando todas as iniciativas e projetos sociais conduzidos na organização, com “saídas” para todos os doadores? E, de modo geral, as doações devem sempre incorporar os custos de prestação de contas e/ou de avaliação?

6A – Doar para OSCs “maduras” já amplamente estabelecidas e reconhecidas por seu trabalho social, como a Gerando Falcões ou a ONG do Sistema Divina Providência? Não haveria aí o sentimento do doador quanto à utilidade marginal decrescente do seu recurso doado, uma vez que elas são instituições que já contam com o apoio fiel de muitos e/ou grandes doadores?

6B – Ou doar para organizações sociais executoras pequenas e com baixo ´grau de maturidade em gestão`? Diferente da situação anterior, haveria aqui a possibilidade do recurso doado fazer uma diferença muito maior para o trabalho social da organização (utilidade marginal crescente)? Porém há de se convir que são também maiores os riscos dessa organização pequena gerir mal os recursos doados e/ou incorrer em experimentos que podem fracassar – e, nesse haver eficácia social reduzida e/ ou nenhuma.

7  – Muitas vezes a preferência da maioria dos filantropos é por organizações classificadas como “maduras”, pois aumentam as chances da eficácia positiva do recurso doado. Daí, não se correria o risco de o filantropo está contribuindo para reforçar a desigualdade das oportunidades e do acesso a recursos entre as organizações do terceiro setor?  Pois as organizações maiores tendem a continuar atraindo apoio cada vez maior dos filantropos, e se fortalecendo. Por outro lado, as organizações menores com um trabalho “de formiguinha” que geralmente realizam em comunidades vulneráveis, na maior parte das vezes sem estrutura e preparo técnico para atender aos critérios usuais da captação de recursos, vão acabar ainda mais fragilizadas ou definhando à mingua.

8 – Doar para OSCs executoras finalísticas, ou OSCs intermediárias que são voltadas para  o fortalecimento do campo da filantropia e da cultura da doação no país? Só para ilustrar, veja que Mackenzie Scott, uma das maiores filantropas no mundo, optou por essa segunda estratégia em suas doações para o Brasil: em 2022 ela doou,  por exemplo, para a Gerando Falcões (US$ 5,2 milhões, estimado a partir da taxa média de câmbio daquele ano); e em 2024 para o GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (US$ 1 milhão), dentre as outras organizações sociais contempladas no Brasil por ela dentro dessa mesma linha.

9– Doar de modo individual ou coletivo? Muitas vezes as doações coletivas, conhecidas como crowdfunding ou vaquinhas, podem representar boas estratégias para arrecadar com celeridade um volume significativo de recursos para dinamizar causas sociais, organizações e/ou projetos sociais, ou ainda viabilizar campanhas em prol de causas emergenciais, públicas ou pessoais. A Benfeitoria representa um bom exemplo de plataforma digital no Brasil que funciona com esse intuito.

10 – Querer deixar um legado? Qual seria a melhor estratégia? Muitas vezes, sobretudo quando a idade do indivíduo avança e passa a haver mais clareza quanto às suas necessidades futuras de bem-estar (próprias e da família), vem o desejo do filantropo em fazer uma doação de valor relativo mais relevante. Pois ele passa a ter a vontade de deixar um legado, ou uma marca de sua passagem por essa vida. Entre as várias possibilidades, o filantropo pode doar um imóvel; ou criar um fundo patrimonial filantrópico familiar, se atender à exigência do valor mínimo legal ou justificável; ou contribuir para um fundo patrimonial filantrópico independente no qual veja valor social afetivo e efetivo (de eficácia).

Concluindo, esses foram alguns pontos que procurei levantar com vistas a suscitar as possibilidades de planejamento e das práticas da filantropia no Brasil. A filantropia entendida como coadjuvante do poder público na promoção do desenvolvimento humano e social no país. Evidentemente devemos investigar as estratégias bem sucedidas de outros países que já avançaram nesse campo, como os Estados Unidos e o Reino Unido, mas sem perder de vista as especificidades e dificuldades próprias do contexto brasileiro.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.