Sem dúvida, a estratégia do blended finance é muito oportuna no Brasil para fomentar negócios que podem vir a ter elevado impacto social e ambiental. Por outro lado, é preciso certa cautela para que o entusiasmo contagiante com o blended finance, que vem tomando conta da área social no Brasil recentemente, não atropele e desestimule a expansão da nossa filantropia e dos fundos patrimoniais, ainda não devidamente amadurecidos.
A ideia do blended finance é relativamente nova. Surgiu durante o Fórum Econômico Mundial de Davos de 2015, como uma maneira para financiar e viabilizar o alcance dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) dentro da Agenda 2030 da ONU. Por sua vez, só agora é que os fundos patrimoniais filantrópicos estão florescendo no Brasil, pois com a Lei 13.800, de 2019, eles passaram a dispor de um ambiente regulatório seguro. Diferente, portanto, do que ocorreu nos EUA e em vários países da Europa, onde a filantropia já está consolidada há várias décadas.
Recomendo muito os vídeos com os debates organizados pelo IDIS e o GIFE sobre esses dois temas – fundos patrimoniais filantrópicos e blended finance.
- Blended Finance: uma nova fórmula para gerar impacto social (IDIS, 21.09.2020)
- Fundos Filantrópicos: da emergência à perenidade (IDIS, 25.09.2020)
- Endowments e Fundos Patrimoniais: Tendências e Desafios (GIFE, 28.10.2020)
- Blended Finance: Experiências e Potenciais no Contexto Brasileiro (GIFE, 04.11.2020)
O que é blended finance?
Por blended finance ou ´finanças mistas` entenda-se a utilização de recursos de diferentes fontes para gerar impacto social e ambiental, que são: privada filantrópica; privada lucrativa, seja por meio de participação acionária (equity) ou título de crédito (debênture); pública (via incentivos fiscais ou recursos); ou de organizações multilaterais. Esses recursos são, então, aplicados em setores ligados à preservação do meio ambiente, redução da pobreza e melhoria da qualidade de vida de populações em situação de vulnerabilidade, tais como: habitação, saneamento básico, saúde, educação, microcrédito, gestão de resíduos, agricultura familiar, mobilidade, agroflorestas e água.
A ideia do ‘blended finance` é a de que a combinação dessas diferentes fontes de recursos tem sinergia e um potencial de transformação muito maior do que quando esses capitais atuam de forma isolada. É quando “1+1 pode ser muito maior do que 2”.
Considerados os dois extremos, pode-se dizer que o capital filantrópico [constituído basicamente por ‘grants` (doações) e fundos patrimoniais] mira totalmente no impacto social e/ou ambiental, e nada no lucro. Na outra ponta, o capital (do mercado) financeiro tradicional mira totalmente no retorno econômico (ou lucro), e nada no impacto social/ambiental. Assim, supondo que essa seja a lógica prevalecente em uma estrutura de blended finance, o capital filantrópico, por suas características de ‘capital paciente’ e associado a causas, teria o papel estratégico de possibilitar a experimentação das iniciativas e a assistência técnica para a organização. São etapas imprescindíveis em negócios inovadores de impacto, porém pouco atraentes ao capital financeiro. Já com o terreno preparado, o capital financeiro entraria com a função de alavancar os impactos sociais e ambientais positivos – que serão tímidos, se ficarem limitados ao capital filantrópico e/ou público.
Virtudes e desafios
A combinação sinérgica entre os diferentes tipos de capital (filantrópico + público + privado lucrativo) para gerar impacto social e ambiental tem virtudes, mas também apresenta desafios para poder conseguir funcionar bem. Senão vejamos.
Dentre as virtudes, que foram citadas nos referidos vídeos, destaco:
- Iniciativas de financiamento misto conseguem ter muito mais impacto do que iniciativas de financiamento isolado.
- O capital filantrópico prepara o terreno para atrair o capital financeiro, isto é, para acender o apetite do investidor financeiro a correr riscos. “Imagina que cada R$ 1,00 de capital filantrópico investido consegue destravar 5 a 7 vezes de capital financeiro” (Marco Gorini, co-fundador da consultoria Din4mo)
- O capital público traz consigo a capacidade do “ente público de fazer articulação entre o mercado privado, o setor financeiro e o Estado brasileiro. Com a pandemia as elites acordaram para o fato de que o governo sozinho não consegue resolver todos os problemas sociais e ambientais” (Gustavo Montezano, presidente do BNDES)
- O capital financeiro amplifica sobremaneira o raio de ação do empreendimento social, isto é, possibilita escalar o negócio de impacto devidamente amadurecido, vencidas as etapas da ideação e dos testes.
Quanto aos desafios a serem enfrentados para chegarmos a operações bem sucedidas de blended finance, alguns deles são:
- Necessidade de conhecimento adequado (sobre a ferramenta do blended finance) para conseguir destravar tanto o capital filantrópico como o capital financeiro ;
- Boa governança dentro do empreendimento, isto é, diálogo entre filantropos (familiares e/ou corporativos), setores lucrativos (também famílias e/ou empresas), empreendedores e governos. Vale notar que é um diálogo ainda pouco usual no Brasil. E que um mesmo ator pode entrar nessa aliança usando diferentes ‘ bonés` e com interesses diferentes.
- É preciso saber levantar evidências confiáveis dos impactos produzidos. E também saber relatar essas evidências de modo objetivo e compreensível a cada público relevante.
E por que a cautela?
Sobretudo em se tratando de Brasil, a meu ver é preciso reflexão e muita cautela para começarmos a estimular as operações de blended finance, e por três razões principais.
A primeira razão diz respeito ao não atendimento das expectativas dos filantropos. Se o foco da filantropia é fazer o bem, por que o filantropo iria querer arriscar os seus recursos em experimentações de negócios de impacto, em que as chances de fracasso são muito maiores do que as de sucesso? São os casos em que a filantropia gera zero (ou quase nenhum) retorno social e ambiental, e representa destruição de legado. Fica apenas o consolo de que foi por uma boa causa.
A segunda razão está relacionada ao sentimento provocado pela existência de remunerações desiguais em uma mesma operação financeira lucrativa (blended finance). Será que essa desigualdade de tratamento é sustentável no longo prazo? É o caso, por exemplo, de uma empresa de impacto social que se torna altamente lucrativa no médio e longo prazo, porém só parte do capital investido no empreendimento (a do investidor financeiro) obtém retorno econômico compatível e se multiplica exponencialmente, enquanto a outra parte (a do investidor filantrópico) permanece do mesmo tamanho.
A terceira razão está relacionada à possibilidade de enfraquecimento da filantropia no Brasil. Diferente de outros países, aqui a filantropia está longe de ser uma prática consolidada, tanto entre as famílias como entre as empresas. Ainda não desenvolvemos a cultura da doação como uma atitude individual de compromisso. Os fundos patrimoniais filantrópicos ainda engatinham, e só no ano passado foram regulamentados (Lei 13.800 / 2019). Daí que o estímulo nesse momento ao blended finance, ao invés de significar abertura de novas possibilidades para a filantropia no Brasil, corre o risco de enfraquecer e subtrair recursos das nossas instituições filantrópicas, podendo desestruturar e confundir o campo da filantropia, aqui ainda em fase de formação.