Modo Mackenzie Scott de fazer filantropia: quais os seus 5 elementos norteadores?

Por on 26/01/2024

Ao se divorciar de Jeff Bezzos (fundador e CEO da Amazon) em 2019, Mackenzie Scott se tornou uma das mulheres mais ricas do mundo (em alguns momentos, a mais!). Logo aderiu ao The Giving Pledge, se comprometendo a doar em vida a maior parte de sua riqueza a causas sociais.  Transcorridos quase 5 anos de sua promessa, Mackenzie já conseguiu a proeza de doar mais de US$ 16,5 bilhões para mais de 1.900 organizações sem fins lucrativos dos Estados Unidos e do mundo afora, “para que essas organizações usem de forma que considerarem mais adequado em benefício de outras pessoas”.

O ponto é que a filantropia de Mackenzie Scott tem avançado em ritmo acelerado desde 2019, sem deixar claro quais os critérios que têm sido adotados para a seleção das organizações filantrópicas beneficiadas com os recursos. Até as próprias organizações não sabem o porquê de elas terem sido escolhidas, embora fiquem sempre muito agradecidas…

Porém ela é firme no seu propósito de que é preciso esvaziar em vida o seu “cofre” de uma forma cuidadosa, para poder dar a sua contribuição efetiva para questões sociais urgentes mundo afora, nas áreas de educação, saúde, equidade e justiça, segurança econômica das famílias, fortalecimento das organizações comunitárias, meio ambiente, artes e cultura

Como eu já comentei em outro artigo (Mackenzie Scott: um novo modo de fazer filantropia, jan.2021), o jeito de fazer filantropia de Mackenzie Scott é bastante distinto da lógica que predomina atualmente, muito baseada em prestação de contas e cobrança por resultados.  Hoje em dia filantropia virou sinônimo de Investimento Social Privado e, como qualquer investimento, há a exigência de eficácia (alcance dos resultados prometidos) e eficiência (resultados ao menor custo possível). Em outras palavras, dado o nível elevado atual das demandas sociais, os recursos da filantropia também devem mirar na melhor alocação em termos de redução da pobreza e combate às vulnerabilidades.

Movida por essa vontade de entender melhor o modo Mackenzie de fazer filantropia, fui pesquisar nos textos escritos por ela própria (essays). Esses (poucos e curtos) textos estão disponíveis em seu singelo siteo Yield Giving, nome também dado por ela à sua organização filantrópica, criada em 2022 e constituída por uma equipe de especialistas e conselheiros para assessorá-la em sua prática filantrópica. Pude identificar, entremeados nesses “essays”, os 5 principais elementos básicos que considero têm norteado o modo Mackenzie Scott de fazer filantropia.

1 – Filantropia é generosidade

O que se observa é que o sentido original e belo do termo filantropia [“amor à humanidade”, “desejo de promover o bem-estar dos outros”, “doação generosa de dinheiro para boas causas”] foi aos poucos encolhendo e perdendo essa sua grandiosidade. Hoje parece restrito aos muito ricos, quase aos 1% mais ricos do mundo. Mas, será mesmo que só os muito ricos é que têm capacidade de fazer filantropia?

Para Mackenzie, claro que não. Filantropia é todo tipo de generosidade – e, por isto, ela até prefere usar o termo doação (giving) por ser mais abrangente. Ou seja, é ajudar ao(s) outro(s) por meio da doação do (seu) próprio tempo, atenção, comida, bens, dinheiro, experiências e aprendizados. E a filantropia de Mackenzie Scott quer ser guiada basicamente por esse sentimento de generosidade.

Dentro dessa abordagem abrangente de filantropia, nenhuma forma é mais importante do que outra. Doar dinheiro é apenas uma das maneiras. Naturalmente, quem tem muito dinheiro pode doar um volume muito maior de dinheiro – que é como Mackenzie Scott se posiciona nesse campo da filantropia. (Essay: No Dollar Signs This Time)

Na realidade, grande parte da humanidade continua sendo tão ou mais generosa como antes, fazendo filantropia nessas mais diferentes formas. Só que, no mundo de hoje que preza a mensuração, essas diferentes formas de filantropia e do cuidar do outro deixaram de ser computadas por não sabermos medi-las. Já no caso da doação financeira, essa dificuldade não existe.

2. Filantropia é obrigação e dever

Para Mackenzie, o que filantropos fazem nada mais é do que devolver à sociedade parte da riqueza que a própria sociedade ajudou a criar. Eles estão doando uma fortuna que lhes foi possibilitada por um sistema (de sociedade) que necessita de mudanças para poder ser mais justo. Ela não tem dúvidas de que “qualquer pessoa é o produto de um esforço coletivo e de estruturas sociais que apresentam oportunidades para algumas pessoas e obstáculos para outras”. (Essay: 116 Organizations Driving Change).

E Mackenzie Scott dá como exemplo o seu próprio caso: no período da pandemia da Covid em 2020, a sua participação nas ações da Amazon (recebidas do seu processo de divórcio pouco antes) tiveram tamanha valorização, impulsionada pelas vendas online e entregas por delivery, que fizeram com que ela passasse a ocupar o primeiro lugar como a mulher mais rica do mundo, com uma fortuna estimada em U$ 66 bilhões (set. 2020). Enquanto isso, a grande maioria da população mundial mergulhou numa profunda crise de desemprego, saúde e queda de rendimentos.

Assim, doar dinheiro (para os desfavorecidos) é um dever de quem teve oportunidades para crescer na vida, além de ser uma obrigação de retribuir o muito que recebeu. Não é favor.

3. O pré-requisito para a filantropia de impacto é o empoderamento coletivo

Para Mackenzie, pretender colocar os grandes doadores (de dinheiro) no centro das histórias do progresso social é uma distorção grave. Os ricos tendem a acreditar que eles estão mais bem posicionados e preparados para resolverem os problemas das comunidades pobres. Muito ao contrário, eles devem doar e sair de cena; e o papel central deve ser ocupado pelas lideranças comunitárias. Não por outra razão que a organização que assessora Mackenzie em sua filantropia recebeu o nome de Yield Giving, pois ela acredita que “se adiciona valor  (Yield) quando se abre mão do controle (Giving up)”.

Daí, um pressuposto básico para a equipe do Yield Giving está baseado na humildade para reconhecer que as soluções para os problemas sociais são mais bem concebidas e implementadas por quem convive de perto com esses problemas. (Essay: Seeding by Ceding)

Scott é forte defensora da causa da equidade, que significa dar às pessoas o que elas precisam – em função de suas necessidades, para que todos possam ter acesso às mesmas oportunidades de realização (ver figura). O problema, porém, é que “a causa da equidade não tem uma única solução, mas várias. Haja vista que mesmo as pessoas que passaram anos estudando um mesmo problema discordaram sobre a melhor abordagem”. Por isto, a equidade só pode ser concretizada quando todas as pessoas envolvidas (no problema) puderem ser ouvidas para ajudarem a moldar a(s) solução (ões).  (Essay: Helping Any of Us Can Help Us All)

Necessidades diferentes para oportunidades iguais.

Daí, o vínculo estreito entre equidade e empoderamento. As comunidades devem ser preparadas para que elas próprias tracem as suas estratégias e soluções (empoderamento) em prol do seu desenvolvimento e progresso social.

4. O papel central das ‘Organizações de Infraestrutura do Setor Social` para promover empoderamento

O foco das doações de Mackenzie Scott têm sido as ‘Organizações de Infraestrutura do Setor Social` que trabalham para construir o poder dentro das comunidades, atuando como agentes de mudança. São elas que “empoderam as lideranças nas comunidades; que apoiam os movimentos de base e a inovação; que medem e avaliam o que funciona e o que não funciona; que disseminam as informações para que as lideranças comunitárias, autoridades eleitas, voluntários, doadores possam tomar decisões embasadas sobre como estabelecer parcerias e investir”. (Essay: Seeding by Ceding).

Dentro desse perfil, a opção (para as doações) de Mackenzie tem sido “por organizações (sem fins lucrativos) maiores e mais robustas; com uma área administrativa forte, caracterizada por finanças estáveis, histórico de vários anos de funcionamento, fazendo uso de medição e evidências de resultados, além de uma liderança experiente e representativa” (Brazil Journal, 05.01.2024).  Pois são justamente esses requisitos que vão garantir que a estratégia das doações de Mackenzie, com a utilização dos recursos em aberto a ser definida pela própria organização receptora, possa de fato alcançar efetividade.

São essas organizações que Mackenzie espera que, se fortalecidas, vão poder ampliar o seu papel estruturante no setor social, por meio de uma cadeia virtuosa de preparação das lideranças comunitárias atuando junto às suas bases (via coletivos, pequenas ONGs ou políticas públicas), para que elas próprias consigam desenhar e implementar as suas próprias soluções de desenvolvimento sustentável.

Só para entender melhor essas características das ‘organizações de infraestrutura do setor social` e a atuação que se espera delas na promoção do campo social, veja que NO BRASIL foram contempladas, até agora, 13 ONGs por essas doações de Mackenzie Scott, e dentre essas exemplificamos algumas:

  • Instituto Sou da Paz – Atua com base nos pilares de análise de dados, informações e produção de pesquisa sobre violência, com a elaboração de respostas ao poder público na implementação de medidas preventivas e repressivas e, com isso, pauta, em muitos casos, o debate sobre segurança pública. Foi  contemplado com doações de R$ 5,6 milhões, o equivalente a um orçamento anual da instituição.
  • Vetor Brasil – Organização que desenvolve profissionais para o setor público, recebeu um investimento de R$ 4,2 milhões de Mackenzie.
  • Conectas – Organização não governamental, que foi fundada em São Paulo há 20 anos, tem como trabalho ampliar os direitos humanos no Brasil e no mundo. Sua atuação é mantida com recursos doados por fundações privadas nacionais e internacionais, além de agências de desenvolvimento e indivíduos….
  • Instituto Rodrigo Mendes – Organização que atua em prol da educação inclusiva voltada para a pessoa com deficiência, por meio de formações de educadores, produção de pesquisas e “ações de estímulo à sociedade civil no processo de cobrança por melhorias na educação brasileira”….
  • Gerando Falcões – Rede de desenvolvimento social que atua para interromper o ciclo de pobreza nas favelas com inovação e tecnologia. Já são cerca de 6 mil favelas e mais de 700 mil pessoas impactadas por todo o Brasil, e mais de mil líderes de ONGs capacitados para transformar territórios por todo o Brasil.  O sonho é erradicar a pobreza nas favelas e transformá-las em ambientes 3 D – Dignos, Digitais e Desenvolvidos. Recebeu a doação de R$ 27 milhões de Mackenzie.
  • Fundo Baobá – O Fundo Baobá para Equidade Racial é o primeiro e único fundo dedicado, exclusivamente, para a promoção da equidade racial para a população negra no Brasil. Criado em 2011, o Fundo Baobá é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo mobilizar pessoas e recursos, no Brasil e no exterior, para o apoio a projetos e ações pró-equidade racial para a população negra. Para alcançar sua missão, o Fundo Baobá trabalha fortalecendo e investindo, prioritariamente por meio de editais, em organizações e lideranças negras comprometidas com o enfrentamento ao racismo, a promoção da equidade racial e da justiça social.
  • Fundo Casa Socioambiental: O Fundo Casa Socioambiental é uma organização que busca promover a conservação e a sustentabilidade ambiental, a democracia, o respeito aos direitos socioambientais e a justiça social por meio do apoio financeiro e fortalecimento de capacidades de iniciativas da sociedade civil na América do Sul. Criada no Brasil em 2005,  tem como missão gerar impacto positivo nos mais diversos territórios, ao investir nas vidas ao seu redor, criando conexões entre pessoas e organizações.

Interessante que há uma página específica no site do Fundo Casa detalhando como pretendia aplicar os R$ 25 milhões doados por Mackenzie Scott: Fundo Casa amplia apoios estratégicos com recursos doados por Mackenzie Scott (14.06.2023). Vale esse comentário porque, de modo geral, o uso dos recursos recebidos por Mackenzie não é facilmente encontrado nos sites das organizações beneficiadas no Brasil.

5.  Filantropia não requer divulgação.

Se filantropia é generosidade e dever, ela não precisa ser divulgada. A meu ver, foi por essa razão que ela pareceu hesitar bastante e teve dificuldades em criar o site para “divulgar” o seu trabalho de filantropia.

Por que Mackenzie deveria criar um site?Se fosse para “direcionar a ação dos usuários, maximizar cliques, manter os usuários no site, ela não queria nem precisava fazer nada disso. Pois ela não tinha nada para vender. Agora, se as informações sobre as doações (que ela vem fazendo) fossem ser úteis para as pessoas, aí sim ela iria querer compartilhar essas informações no site. Porém, era preciso muito cuidado, porque se ela fosse ficar elaborando as palavras ao modo dela para narrar fatos, correria facilmente o risco de gerar incompreensões”.

E, realmente, narrativas são sempre interpretações do fato. Assim, dependendo do modo como o site fosse criado, tanto poderia favorecer a criação de pontes entre as pessoas atuando no campo social, como criar barreiras à comunicação entre elas (Essay: Bridges and Barriers)

Coerente com essa sua abordagem, Mackenzie coordenou a criação do seu site, o Yield Giving, que resultou em uma formatação bastante singela, direta e objetiva. Aliás, um formato de site raro de se ver hoje em dia, tal a sua simplicidade. O site está dividido 3 partes: (i) uma planilha estruturada com as doações e os parceiros doadores – Gifts; (ii) uma breve descrição sobre como é feita a escolha das organizações receptoras das doações – Process; e (iii) os artigos (curtos) escritos por Scott, com uma periodicidade máxima de 2 vezes ao ano – Essays.

Pois, para Mackenzie, o que é relevante não é a narrativa entusiasmada e superlativa do Doador. Mas, sim, é deixar as próprias organizações beneficiadas apresentarem os serviços sociais prestados, as suas dificuldades e experiências.

ENFIM, procurei aqui entender um pouco mais sobre o modo Mackenzie Scott de fazer filantropia em grande escala, que destoa em grande medida da abordagem atual predominante, baseada em fundações, institutos, fiscalização (do Poder Público) e um processo contínuo de prestação de contas e resultados. Não quero aqui afirmar que o modo Mackenzie Scott seja mais célere e efetivo do que o modo de filantropia hoje dominante, das famílias ou das empresas. Cada um dos dois métodos tem as suas especificidades, vantagens e desvantagens. Resta aprofundar como e quando cada um deles pode funcionar melhor.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.