Da favela da Rocinha para Georgetown University: a fórmula que precisa ser compartilhada

Por on 19/10/2021

No campo da educação, histórias de vida têm muito a ensinar, tanto aos pais quanto aos educadores. Ainda mais quando contada de uma forma descontraída e espontânea, como foi o caso dessa entrevista da Layana de Souza  à jornalista esportiva Claudia Guedes (em 22.07.2021).

Quando juntamos os pontos dessa valiosa narrativa da Layana, conseguimos compor um manual simples, porém completo, para orientar na educação das crianças e adolescentes do nosso Brasil, sejam eles nascidos em famílias de classe média alta ou (principalmente) em famílias de baixa renda, morando em favelas ou em subúrbios.

Recomendo muito a pais, educadores, crianças, adolescentes e jovens a assistirem a essa entrevista da Layana de Souza (youtube). “É um pouco longa, mas vale muito a pena!”

1 – O papel central da família    

A Layana nasceu na Rocinha, tida como a maior favela do país. Filha de mãe solteira, tendo apenas uma irmã mais nova. Desde o início, foi sempre muito forte o sentimento de cumplicidade e união entre as três. A mãe trabalhava como garçonete de noite em um restaurante: de dia, ficava com as meninas, levava para a escola, almoçavam juntas e, quando saia para trabalhar, pagava sempre uma pessoa para ficar com elas.

Layana lembra que, no geral, teve uma infância feliz. Brincava muito na rua, adorava correr e jogar futebol com os meninos. O exemplo da mãe foi muito marcante na vida dela.  Dificuldades financeiras (do tipo não ter o que comer) elas só tiveram uma vez, quando a mãe foi demitida do restaurante, que só pagou os direitos trabalhistas dela três meses depois: nesse período a mãe ficou sem receber nada, e as três tiveram que se manter por meio de cestas básicas e ajuda dos amigos.

Com o dinheiro recebido, a mãe abriu uma barraca de lanches na favela. Toda noite, ou sempre que tinha evento, a mãe saia para “vender as coisinhas dela”. Muitas vezes, as meninas queriam ir também….. na brincadeira, Layana ficava catando latinhas para vender e, assim, conseguia alguns trocados. Eram felizes. 

Um belo dia, Layana viu um panfleto anunciando projeto esportivo na Rocinha. Ela pediu à mãe para inscrevê-la; a mãe disse que sim, ela poderia ir e escolher qualquer esporte, menos o futebol  “porque não era esporte que menina jogava”.  Hoje, Layana entende que essa condição (ou limite) refletia os valores da época. Meio a contragosto, Layana se inscreveu para o basquete, porém, pouco depois o projeto acabou. Vendo a dedicação dela,  o professor (daquele projeto da Rocinha) a chamou para ir treinar basquete feminino em outro projeto que estava acontecendo em uma quadra alugada em um clube na Gávea. Foi assim que ela encontrou o projeto da ONG VemSer, do técnico Raphael Zaremba, “de onde nunca mais saiu”.  

Naquela época Layana tinha apenas 12 anos de idade, cursando o Ensino Fundamental II. Mas, a sua mãe confiou nela e, mais do que isso, lhe garantiu “espaço” para que a Layana pudesse ir em busca (sempre) do seu próprio crescimento pessoal.  Começou a transpor o morro da Rocinha……. A mãe deu-lhe liberdade, porém vigiada e com limites.  Toda liberdade concedida, é claro, envolve riscos e medos (por parte da família), mas eles são necessários para a criança evoluir e ganhar autoconfiança.

Por conta do basquete, ela conseguiu uma bolsa de estudos em uma escola particular no Méier, a ADN Master, e assim saiu da escola pública que frequentava na Gávea. Aos 14 anos, a sua rotina diária já era apertada: acordava  às 5 da manhã; ia da Rocinha  para o Méier, para assistir as aulas de 7:30 às 12:30 hs; novamente mais duas horas de volta, para estar nos treinos de basquete às 16 hs (na Gávea); só chegando em casa por volta das 21 hs.

Na infância da Layana, a família representou o porto seguro de amor e acolhimento. Com quem ela sempre podia contar, e a quem ela sempre quis proteger (mesmo sendo criança), desenvolvendo nela o senso de responsabilidade, compromisso e compaixão.    

2 – O papel central da organização educadora

Além da família, na história da Layana o “projeto da VemSer” teve também papel central  (ong VemSer – Esporte e Psicologia). Era como se fosse a sua “segunda casa”, onde ela passava grande parte do seu tempo. Além dos próprios treinos, ela participava também dos treinos “das outras” tal o seu entusiasmo.  “A VemSer foi a porta de todas as outras oportunidades que foram se abrindo depois para mim…..”.

Da fala da Layana, pode-se depreender os vários significados da VemSer em sua vida, ou seja, como a organização atuou, sobretudo durante a adolescência, para plantar sólidas raízes na sua formação, de modo estreito e complementar à família.

  • Começar a abrir portas, a dar um empurrãozinho inicial, porém nunca carregar no colo Quando eu estava com 15 anos (começando o ensino médio), já  me destacando na equipe do basquete feminino da VemSer (já havia participado de vários campeonatos inter escolas particulares no Rio e em outros estados), eu pensei em virar profissional do basquete. Foi quando o Raphael (Zaremba) chegou para mim e perguntou: “Que tal uma bolsa de estudos para você cursar uma universidade de educação física nos EUA?  Porque aí você vai ter que aprender inglês, vai pensando …..” Isso estava completamente fora dos meus horizontes, eu nem conseguia imaginar tal coisa….. muito longe de mim, da minha realidade daquele momento.
  • Ensinar os dois lados de tudo: a conviver com as vitórias e as derrotas –  Depois de participar de muitas competições pela VemSer, o meu nome foi indicado para a Seleção Brasileira de Basquete Feminino –  eu fiquei entre as 15 selecionadas (do país inteiro) concorrendo a 12 vagas. Foi uma felicidade imensa!  Mas, aí eu perdi, e não fui selecionada para viajar para a Competição Internacional…… Imagina que, logo no ano seguinte, veio a oportunidade para a bolsa na universidade dos EUA. 
  • Estar junto o tempo todo, com apoio psicológico. Porque dificuldades sempre haverá – No meu período da VemSer, eu atravessei momentos difíceis. Imagina eu da Rocinha viajando e convivendo com outros(as) adolescentes de escolas particulares….. o ponto é que quando as portas se abrem para coisas muito melhores do que você tem, por um lado é muito bom; mas por outro lado você fica se perguntando porque você é diferente, não  teve / tem nada daquilo…. Minha mãe diz que durante certo tempo eu tinha muita vergonha de morar onde eu moro! Nesse momento o suporte psicológico da VemSer (a psicóloga Renata e as outras que passaram pela VemSer) foi fundamental para me fazer ver “que eu deveria ser humilde, corajosa e muito dedicada”.
  • Desenvolver valores. A combinação virtuosa Esporte e Educação –  Quando conduzido de forma profissional (com competência técnica) e ao mesmo tempo carinhosa e firme, o Esporte se torna em um poderoso instrumento para a Educação e o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens. É o Esporte com Propósito, que foi o caso da ong VemSer, que buscou aliar psicologia e esporte (para transformar vidas de meninas em situação de risco social). Assim, o Esporte bem conduzido desenvolve valores fundamentais como capacidade de planejar, disciplina, persistência, atenção, sociabilidade, empatia, trabalho em equipe, resiliência (capacidade adaptativa), saber vencer e saber perder. Torna-se também um forte aliado a estimular para o ensino formal.
  • Aguardar, com paciência, o tempo do amadurecimento e da resposta –  Já com 17 anos de idade e já matriculada no 3º ano do ensino médio, Raphael voltou com a pergunta: “E aí, Layana, o que você decidiu sobre ir fazer universidade nos EUA? Pense e decida”. Foi quando eu criei coragem, e decidi que sim: queria evoluir no basquete, aprender outra cultura, outra língua, ter a oportunidade de cursar uma universidade (a minha mãe só tem o ensino fundamental).  Quando veio a oferta da bolsa de estudos para a universidade americana, aí me dei conta que o  problema era que eu não falava nada de inglês. “Não se preocupe. Isso você resolve lá”, disse-me o Raphael.

Aquele período (relativamente) curto, dos 12 aos 18 anos de idade, que a Layana passou na ONG VemSer foram decisivos para ela enfrentar os desafios que viriam  depois em sua vida. Por isto, até hoje ela faz questão de repetir que, “depois que entrou na VemSer, nunca mais saiu de lá”. A meu ver, foi o contrário: foi a VemSer que nunca mais saiu de dentro dela, tal a força dos valores plantados pela organização durante a sua adolescência.

3 – O papel de fatores aleatórios. A equação Heckman

Por fatores aleatórios entende-se os acontecimentos, ou ocorrências, sobre os quais não temos controle ou, quando temos, trata-se de um controle parcial. Da fala da Layana, pude detectar alguns desses fatores tidos como aleatórios, tais como:

  • É inegável que ela herdou um grau de inteligência acima da média (fator hereditário).
  • É inegável também que, em momentos de dificuldade e decisão, Layana  mostrou ter abertura e disponibilidade em ouvir e confiar em  sua força interior. Que, a meu ver, é um dom que ela tem/desenvolveu para se abrir à “força que Deus nos quer dar”.
  • Ter batido os olhos no panfleto que anunciava o projeto esportivo na Rocinha.
  • Raphael Zaremba estar à frente da VemSer  naquele momento, uma pessoa que reunia duas qualidades fundamentais: ser realmente comprometida com a causa da transformação social, e com o campo da psicologia, onde ele viria a desenvolver depois sólidas competências.  Layana poderia ter se deparado lá com um  outro técnico qualquer, mero cumpridor de horários para o seu ganha-pão.
  • Anos depois, o encontro fortuito com um “fulano” no seu caminho para pegar o ônibus, que lhe deu a dica do nome de uma organização que poderia financiar o seu curso de mestrado nos EUA. Até então, Layana nunca ouvira falar dessa “tal” Fundação Estudar

Fatores aleatórios são características, dons e eventos que dependem  pouco, ou quase nada, da própria pessoa. O que realmente depende da pessoa é como ela vai  direcionar, ou fazer uso, desses fatores aleatórios que acontecem em sua vida: se para o bem, para o mal, ou para nada.  É quando o papel da família e da educação durante a infância e adolescência  se tornam fundamentais no sentido de moldar o direcionamento que a pessoa vai dar a esses fatores aleatórios  que ocorrem suas vidas.

De fato James Heckman, professor da Universidade de Chicago e ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2000,  conseguiu comprovar, através de pesquisas conduzidas com o devido rigor científico, a centralidade da família e educação para a formação do indivíduo.  Por meio da (conhecida) equação Heckman ele conseguiu demonstrar que a prosperidade dos Estados Unidos viria do apoio do governo às famílias carentes (programas sociais), de modo a lhes proporcionar as condições necessárias para proverem os estímulos adequados ao “desenvolvimento bem sucedido” de suas crianças, em termos de desenvolvimento de QI e de habilidades socioemocionais. Dessa forma, o governo do seu país estaria atuando,  simultaneamente e de forma eficiente, no combate à pobreza, formação de capital humano, bem-estar e no crescimento econômico.

Então, segundo a equação Heckman, até mesmo alguns dos fatores aleatórios mencionados acima  não são tão aleatórios como normalmente se costuma pensar. Como, por exemplo, a inteligência, fator que pode ser trabalhado ao longo da infância e da adolescência, por meio de estímulos adequados.

4 –  Um desempenho de sucesso

De modo sucinto, pontuo aspectos da bem-sucedida carreira da Layana dos seus 18 aos (atuais) 29 anos de idade, contados com bastante leveza e humildade por ela ao longo de sua entrevista.  Mas, que foi  também uma trajetória de muito esforço, disciplina, dificuldades, persistência e construção de sólidas amizades.

  • Os 2 primeiros anos da graduação (EUA) – Layana partiu para fazer a graduação em educação física nos EUA, sem falar nada de inglês. Deveria completar os créditos do curso em 4 anos.  “O 1º  ano foi muito complicado: a interação com o time, os professores, e com tudo lá….. Tive que me dedicar às aulas de inglês, quase não tive tempo de quadra. Eu sou muito grata a muitas pessoas que entraram na minha vida, como as minhas colegas de time, elas me ensinavam inglês, e me valorizaram como jogadora…. Já no 2º ano, fiquei entre as que mais jogavam em quadra, e me tornei capitã do time, em grande parte por escolha das meninas. Foi quando eu fui informada que dificilmente eu iria conseguir completar os créditos da graduação em educação física (no 1º ano tinha ficado sem cursar algumas disciplinas básicas e elas não seriam oferecidas naquele 2º ano). Mas eu queria muito me formar, queria voltar para o Brasil com o diploma de graduação. Questão de honra. Foi quando mudei rapidamente os planos: fui fazer o “associate degree”, que é um diploma de graduação em um curso  mais genérico, para depois poder fazer o “bacharelado” na minha área. Só que para conseguir o “associate degree” em tão pouco tempo, tive que fazer várias disciplinas ao mesmo tempo, estudar de dia, de noite e fim de semana; praticamente fiquei sem vida social….”
  • Os 2 últimos anos da graduação (EUA) – Layana decidiu  fazer Ciência do Esporte (nível bacharelado) em uma universidade em lugar montanhoso e frio, de apenas mil habitantes, no estado da Carolina do Norte. Teve “empatia” pela universidade e pelo lugar, como explicou ela. Chegando lá, foi comunicada de que não haveria mais esse curso. Então (novamente) teve que mudar de curso, para o de Administração Esportiva, e se formou nele. Durante o período em que esteve lá, ela acabou se aproximando de uma família ótima e, como diz,  “ganhou uma mãe adotiva americana”.
  • Retorno e trabalho no Brasil –  Concluída a graduação, Layana voltou ao Brasil (2014), para continuar morando na Rocinha. Inicialmente trabalhou em uma empresa de marketing esportivo, o que a ajudou a decidir que queria fazer o mestrado em administração esportiva, isto é, aprofundar os estudos nesse campo. “Foi quando a minha mãe adotiva americana me mandou um link para a Georgetown University, que se encontrava com processo de seleção aberto para o mestrado em gestão esportiva. Fiz a inscrição, e fui selecionada (abril 2016). Foi só aí que me dei conta de que havia sido selecionada para uma Universidade top, que é referência mundial. Mas como financiar os meus estudos lá? Entrei em contato com a Universidade e vi que poderia  deixar para resolver esse problema e fazer a inscrição no ano seguinte. Naquele ano de 2016, eu estava muito envolvida e trabalhando na organização das Olimpíadas, que aconteciam no Brasil. ….. Durante as Olimpíadas, numa bela noite indo pegar o ônibus, em conversa fortuita com um “fulano”, ele me perguntou o que eu iria fazer depois que as Olimpíadas acabassem. Respondi do meu desafio para encontrar forma de financiar o meu mestrado. Foi quando ele falou para mim de uma tal Fundação Estudar, aqui no Brasil, que dava bolsas de estudos para pessoas aceitas em universidades de prestígio…. Fiz a inscrição e comemorei muito quando soube que havia conseguido a bolsa: foram 85 mil inscritos e, ao final de 6 etapas, foram selecionadas 33 pessoas, aí incluídas para a graduação e a pós graduação”.  
  • Mestrado na Georgetown University – Em 2017 Layana já estava em Washington para fazer o mestrado, que concluiu em maio/2019. “O dinheiro da Fundação Estudar só dava para uma parte do curso; aí eu tinha que trabalhar para pagar a Universidade. Fui babá (uma criancinha linda….) e tive outros trabalhos também.  Quando me formei, o programa da Universidade dava a oportunidade (para alunos estrangeiros) de ficarem nos EUA mais um ano trabalhando na área do curso (até maio 2020). Porém, veio a pandemia da Covid e eu acabei voltando antes para o Brasil”. De volta para a Rocinha (março 2020)!
  • A parceria com o COI / Young Leaders e Yunus Sports Hub  –  Já no Brasil,  Layana passou a alimentar o sonho de fazer pelas crianças e adolescentes da favela da Rocinha (onde ela mora até hoje!) o que a VemSer fez por ela. Ou seja, dar oportunidades de desenvolvimento para as crianças e adolescentes nascidos em famílias carentes. Começar pela Rocinha, e ir em frente para outras favelas do Rio…. No final de 2020, de olho no site do COI (Comitê Olímpico Internacional), Layana viu que estava aberta nova seleção para o Programa Jovens Líderes (do COI), criado pós Olimpíadas 2016. Ela se inscreveu, e  o seu nome ficou entre os 25 selecionados  para o período 2021-2024. ……  Esse Programa Young Leaders do COI busca selecionar jovens em âmbito mundial para desenvolverem um projeto social, com o foco em solucionar problemas das comunidades locais de seus países, tendo como base os valores olímpicos e os ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável).  O Programa é gerido pelo Yunus Sports Hub , para trazer a abordagem do esporte com negócio social. 

Enfim, é inegável a trajetória de sucesso da Layana de Souza, nascida e criada na favela da Rocinha. Como traduzido pela equação Heckman, resultado em grande medida dos estímulos e apoio que ela teve  sobretudo de sua família e da organização educadora VemSer durante a infância e adolescência. Nesse momento, com 29 anos de idade, a Layana está frente a um novo desafio, que para ela tem um sentido de “missão”: aplicar a fórmula, que deu muito certo para a vida dela, para poder transformar a vida de outras crianças e adolescentes do Brasil em situação semelhante à dela, ou seja, com poucas oportunidades para se desenvolverem.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.