Falando sobre POBREZA no Brasil….

Por on 17/05/2023

Recentemente tive uma conversa com quatro crianças de 12 anos, todas muito engraçadinhas, que compõem um grupo de estudo sobre POBREZA em uma escola britânica. Cada criança era de um país diferente. Importante inicialmente chamar a atenção para o fato de que o ensino básico em Londres contempla o aprofundamento do tema da pobreza, conhecimento e sensibilização fundamentais para a formação de um cidadão comprometido com a transformação social. Vale como inspiração para a reforma do currículo das escolas brasileiras, ainda tão preso ao ensino das disciplinas tradicionais.

De antemão, as quatro crianças me enviaram as perguntas que eu deveria responder, na condição de especialista da área social no Brasil, em encontro que teríamos pelo google-Meet. A seguir, compartilho as interessantes perguntas feitas pelas crianças, e o material que organizei para orientar as minhas respostas.

1. Na sua opinião, o que é POBREZA?

Dito de forma intuitiva, POBREZA é ter fome, e não ter o que comer, ou melhor, não ter condições para se alimentar de modo a ter saúde. É também não ter condições de ter  uma moradia saudável para si próprio e sua família, com condições básicas de saneamento, água tratada, luz elétrica, segurança e cômodos com um mínimo de conforto e dignidade. É poder ter acesso à educação básica, a remédios e cuidados médicos quando se fica doente, a poder brincar (se criança) e ter lazer.  Em síntese, pobreza é não ter condições de viver com dignidade.

A foto acima fala por si!

Indo um pouco além, há diferentes maneiras para se pensar a pobreza.

PRIMEIRO, há a pobreza baseada na insuficiência de alimentos no domicílio, ou melhor baseada na percepção de fome no domicílio, que é medida por meio da EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar), que foi uma adaptação de um indicador (Indicador Cornell) desenvolvido inicialmente nos EUA com essa finalidade. Assim, por meio de um questionário com 14 perguntas, os domicílios são classificados segundo 4 níveis: segurança alimentar, insegurança alimentar leve, insegurança alimentar moderada e insegurança alimentar severa.

Em 2021, havia no Brasil 15,5% e 15,2% dos domicílios vivendo respectivamente em insegurança alimentar grave e moderada, totalizando 30,7% dos domicílios em situação de insegurança alimentar crítica. Por sua vez, a insegurança alimentar leve atingia 28% dos domicílios, enquanto apenas 41,3% dos domicílios no país gozavam de segurança alimentar.

SEGUNDO, há também o conceito de pobreza que é baseado na insuficiência de renda. No Brasil, durante muito tempo – e ainda hoje, prevalece esse tipo de abordagem, e se estima como sendo pessoas em situação de  pobreza aquelas  que vivem em domicílios com renda mensal per capita inferior a 1/2 salário-mínimo (R$ 660 – ou 101 libras);   e pessoas em situação de extrema pobreza como sendo aquelas que vivem com renda mensal per capita inferior a ¼ salário-mínimo, ou seja R$ 330 / 50,7 libras (no Brasil, agora em maio/2023, o salário-mínimo passou a ser de R$ 1.320,00; e se utilizou aqui a cotação de R$ 6,5 por libra).

Considerando a população brasileira em 2021, 14,6% dos brasileiros podiam ser considerados como extremamente pobres, e  34,4% como pobres.  No Nordeste do país, esse  percentual de pobres chegava a 54,3%, ou seja, mais da metade da população.

O Brasil não tem uma linha oficial de pobreza. Assim, dependendo do critério adotado para a linha de pobreza, a  proporção de pobres no país e nas diferentes localidades pode variar bastante.

 Em 2021, ao se adotar a linha de pobreza do Banco Mundial de US$ 1,90 PPC / dia (PPC é a Paridade do Poder de Compra em diferentes países/moedas para adquirir a mesma cesta mínima de bens e serviços nos EUA), que é a utilizada  para países de baixa renda, chegou-se a um valor nominal mensal per capita de R$ 168 como linha de pobreza e de 8,4% o percentual médio de pobres no Brasil. Porém, quando se adota a linha de pobreza do Banco Mundial para países de renda média alta (US$ 5,50 PPC), o percentual de pobres no Brasil pula para 29,4%.

TERCEIRO, há o conceito da pobreza relativa, que leva em consideração a forma pela qual a renda é distribuída. Assim, um indivíduo considerado pobre em um determinado  país /local pode não ser visto desta forma em outro país /local que possua um padrão de vida mais baixo.  Vale lembrar que o Brasil está entre os países com distribuição de renda mais desigual do mundo, o que aumenta essa percepção de pobreza relativa.

Em 2021, considerando o rendimento domiciliar per capita no Brasil, os 10% dos domicílios com rendimento inferior detinham 0,7% da renda total; enquanto os 10% com renda superior detinham 42,7% do rendimento domiciliar total, ou seja um rendimento médio 61 vezes mais elevado.

Em geral, em países com maior desigualdade de renda, tende a ser mais complicado promover políticas estruturantes de governo de combate à pobreza, tais como aumentar as alíquotas do imposto sobre os ganhos de renda ou redistribuir a propriedade da terra. E por uma razão principal: quem detém poder e privilégios não quer mudanças radicais.

EM QUARTO LUGAR, é cada vez maior o consenso de que a pobreza deve ter uma abordagem  multidimensional e abrangente, considerando não apenas o fator da insuficiência alimentar ou de renda das famílias (para proverem o seu bem-estar), mas também outros fatores como o acesso à educação, saúde, saneamento, moradia, tecnologia, lazer, etc….

No Brasil, a Constituição Federal de 1988  define em seu artigo 6º quais são os direitos sociais de todo cidadão brasileiro.

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.

Basta ver que as Nações Unidas já calculam desde 2018  o Índice da Pobreza Multidimensional para os países em desenvolvimento, baseado nas seguintes dimensões: Saúde (nutrição e mortalidade infantil); Educação (adultos analfabetos; crianças na escola); Padrão de moradia (eletricidade, saneamento, água potável, qualidade da moradia, tipo do fogão, bens e ativos da moradia). Notar que a variável renda nem está aí incluída.  (ver o Relatório do Desenvolvimento Humano (2021/2022), PNUD)

2. Quais os principais motivos que tornam as pessoas pobres?

O processo histórico do país. No caso da colonização do Brasil, de um lado tivemos os portugueses, em sua maioria cheios de privilégios; e de outro lado, os escravos vindos da África e os índios nativos, ambos usados para o trabalho pesado.  

A história das famílias. De um lado, filhos que nascem em famílias ricas e com muitas oportunidades. De outro,  filhos que nascem em famílias moradoras de favelas, periferias urbanas ou em áreas rurais distantes das cidades, quase sem oportunidades

Conjuntura econômica do país ou da região. Os ciclos econômicos de progresso ou recessão têm poder muito forte de influenciar a situação econômica e psicológica das famílias.

Política pública, seja no âmbito federal, estadual ou municipal. Governos sérios e competentes têm poder para melhorar ou piorar o atendimento nas áreas de  educação, saúde, assistência social, geração de trabalho e renda, questões urbanas, segurança e transporte público.

3. Por que você se interessa pela pobreza?

Porque a pobreza é injusta socialmente. Sempre me incomodou muito, desde criança. Por que umas pessoas têm tantos bens e dinheiro, e outras têm tão pouco?

Porque quero poder contribuir para reduzir e combater a pobreza por meio do meu trabalho, ou seja, dentro da minha área de atuação, dentro do que eu sei fazer melhor  – ou seja, através de pesquisas, estudos e mentorias.

Contribuir para reduzir a pobreza não é ser “boazinha” ou fazer favor. É uma obrigação das pessoas que nasceram com tantas oportunidades na vida.

4. Como alguns países enfrentam a pobreza melhor do que outros?  Por quê?

A Coréia do Sul é um bom exemplo no enfrentamento da pobreza.

País com população pobre e solos pobres no início dos anos 1990, atravessou um período colonial difícil sob o jugo do Japão (1905-1945), a divisão sangrenta entre as duas Coreias no pós II Guerra Mundial, e depois governos militares autoritários (1945-1987) até a democratização e a liberalização da economia (1988). Porém, entre 1947-1964, a reforma agrária e a reforma educacional foram decisivas para o “milagre” coreano que se seguiu, isto é, para que a  industrialização se desse no país de forma gradual e valendo-se da crescente qualificação da mão de obra que ocorreu em paralelo.  

A reforma agrária redistribuiu a propriedade das terras, com isso reduzindo as tensões sociais no campo e o êxodo rural. A reforma educacional proporcionou educação de qualidade para todos, a começar da educação básica. Diferente do que ocorreu no Brasil, onde a industrialização foi viabilizada tendo por base as desigualdades na distribuição da renda.

Atualmente a Coreia do Sul tem uma população de 52 milhões de habitantes e uma indústria pujante, sobretudo a automobilística e a de eletrônicos, ao lado de bons indicadores sociais com elevado IDH (0,925 em 2021) e baixa desigualdade social (Coeficiente de Gini 0,314).

Já o Sri Lanka é um exemplo de política pública que pode ser geradora de pobreza, evidenciando que há uma tênue fronteira entre a fome e a busca da produção sustentável.

O Sri Lanka é um país bem pequeno, com 22 milhões de habitantes, constituído por uma ilha ao sul da Índia. De maioria budista, foi colônia do Reino Unido até 1948, e tem histórico de convivência com  guerras civis internas. A economia do país é baseada na exportação de produtos primários, como arroz, produtos têxteis, chá, coco e borracha.

Em 2019, foi eleito um novo presidente (Gotabaya Rajapaksa) com a promessa de revolucionar a produção agrícola. De fato, alegando razões de sustentabilidade, em abril de 2021, ele proibiu a importação de fertilizantes químicos, usados por 90% dos agricultores locais.

O que parecia ser uma boa estratégia sob a ótica da sustentabilidade acabou sendo um desastre em termos econômicos e sociais. Com essa proibição abrupta , a agricultura do Sri Lanka perdeu produtividade, e a produção de arroz despencou. Os pequenos agricultores foram os mais penalizados. De exportador do produto, o Sri Lanka se viu forçado a importar arroz. Nos demais produtos, a queda também foi muito grande.

A principal consequência daquela proibição abrupta no uso de fertilizantes e pesticidas  no país foi trazer de volta  a fome, com a disparada nos preços dos alimentos e a falta dos alimentos básicos. O governo se viu obrigado a importar produtos como arroz, já que muitos produtores rurais não conseguiam continuar plantando, devido aos custos exorbitantes de produção e as perdas de safra.  Revoltados com essa situação de crise generalizada, em julho 2022 o presidente foi obrigado a renunciar.

5. Como o governo brasileiro tem impactado na pobreza?

Na política governamental de combate à pobreza, a Constituição Brasileira de 1988, a partir da redemocratização do país, é considerada um marco. Por isto, ela ficou conhecida como “Constituição Cidadã”.

Assim, na década de 1990, a introdução de vários programas federais de combate à pobreza, tais como: de apoio à agricultura familiar, de apoio ao pequeno empreendedor (1995), de educação profissional (1996), de benefício de prestação continuada ao idoso e pessoas com deficiência, de erradicação do trabalho infantil (1997).

Em 2004 foi iniciado o programa de transferência direta de renda para as famílias em situação de pobreza (conhecido como Bolsa-Família), desde que obedecidas certas condicionalidades (exames pré-natal, acompanhamento das mães em fase de amamentação, acompanhamento da vacinação e do crescimento das crianças com até 7 anos de idade, frequência escolar de no mínimo 85% da crianças e adolescentes)

Em 2011, foi a vez de novos programas federais voltados para moradia, como o Luz para Todos, Água para Todos, Minha Casa Minha Vida (financiamento de moradias populares a juros baixos), etc…, sendo que em 2023 esse último programa passou a ter o foco em pessoas em situação de rua, de calamidade ou emergência

Em 2019, com a pandemia da Covid  e a crise de saúde pública no país e no mundo, houve um agravamento da pobreza como consequência da abrupta elevação nas taxas de desemprego e de inflação. Daí o governo federal teve que recorrer à concessão ampla de auxílio-emergencial em 2020, auge da crise.

No entanto, pode-se afirmar que as taxas de pobreza no Brasil continuam relacionadas a fatores conjunturais, tais como os ciclos econômicos, taxas de inflação, programas de transferência direta de renda para os pobres,….. Quer isso dizer que os programas governamentais (alguns deles mencionados acima) ainda não conseguiram ter um impacto positivo e sustentável no combate à pobreza no país.  E por quê?

A principal razão é a falta de continuidade nos programas governamentais de combate à pobreza. Com o tempo, esses programas acabam perdendo força, organização e senso de relevância. O ponto central é que esses programas deveriam ser tratados como políticas de Estado (de longo prazo) e não como política de governo (de curto prazo, normalmente ciclo de 4 anos).

Precisamos, sim, de medidas conjunturais e emergenciais de atendimento às famílias pobres (como vem sendo feito);  mas mais do que isto, o Brasil precisa de políticas públicas sólidas e estruturantes para tirar as pessoas do círculo reprodutor de pobreza, sobretudo nas áreas de educação, saúde, moradia, segurança pública e transporte.

O Brasil é um país rico em termos de potencialidades e produção  – segundo o FMI, em 2022 o Brasil foi classificado entre as 10 maiores economias do mundo (PIB de US$ 1,8 trilhão, 9º lugar). Porém, segue sendo um país com uma elevada população ainda vivendo em condições de pobreza (34,4% de pobres, o que equivale a 71,5 milhões de brasileiros em situação de pobreza).

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.