FILANTROPIA e DESIGUALDADE: há diferença entre Brasil e EUA?

Por on 20/07/2023

Dos ESTADOS UNIDOS vem o alerta: o aumento recente na desigualdade de renda naquele país já está colocando em risco o seu sistema de filantropia. Este estaria se transformando em uma plataforma subsidiada para os ultra-ricos não pagarem os seus impostos e fazerem crescer o seu poder político, para além do econômico.

Por que esse alerta nos Estados Unidos (EUA)? Será que ele se aplica para o caso do BRASIL?

Filantropia: é preciso que ela cresça no Brasil. Porém nos EUA a filantropia vem sendo criticada.

É fato que a filantropia nos Estados Unidos (EUA) está em nível bem mais avançado do que no Brasil. Pois lá a cultura da doação está arraigada há muitos anos. Aqui no Brasil, ainda é uma prática tímida e muito necessária, dadas as nossas muitas carências sociais e a incapacidade do Poder Público em atendê-las. Daí porque também é fato que precisamos estimular a filantropia no Brasil, fazendo uso de todos os mecanismos possíveis, a começar pela educação (sobre filantropia) nas escolas, passando pela conscientização das famílias, a gestão transparente e eficiente das organizações do terceiro setor e, last but not least a utilização de incentivos fiscais.

Em 2016, eu escrevi um artigo para a Revista Filantropia sobre como deveríamos estimular a filantropia no Brasil. Na ocasião eu sistematizei alguns dos potenciais riscos advindos da expansão da filantropia, a partir da experiência dos EUA– seja da filantropia das famílias ou corporativa, pois lá a filantropia já vinha sendo objeto de críticas.

E a principal dessas críticas dizia respeito à ampliação do poder político dos grandes filantropos vis-à-vis aos governos e cidadãos comuns.  Pois, ao terem as suas bases tributárias encolhidas (uma vez que boa parte dos recursos da filantropia daquele país provêm de incentivos fiscais) os governos eleitos, com legitimidade para definir as prioridades sociais, acabavam cedendo espaço para os grandes filantropos, em sua maioria (já) os donos do poder econômico.

Nos EUA: desigualdade distorce a filantropia, que se torna geradora de mais desigualdade

O alerta recente veio do IPS (Institute for Policy Studies), um centro de pesquisa em Washington / EUA, que estuda sobre desigualdades há mais de 20 anos. Mais especificamente, o alerta veio do seu Programa de Reforma da Filantropia (em inglês: IPS Charity Reform Program), criado em 2020, com o objetivo de “consertar a filantropia para combater a desigualdade, proteger a democracia e servir ao bem comum”.  

Em julho de 2022, o IPS lançou a publicação, a terceira de uma série iniciada em 2016, intitulada “Doações Douradas 2022: Como a desigualdade de riqueza distorce a Filantropia e põe em perigo a Democracia” (do inglês: Gilded Giving 2022: how Wealth Inequality Distorts Philanthropy and Imperils Democracy). Inclusive, a figura acima está na capa da publicação, e é bastante sugestiva de sua mensagem central – que é referente à concentração da filantropia nas fundações privadas, que passam a ter um poder cada vez maior de decisão sobre a alocação de recursos para as ONGs executoras.

E, então, qual tem sido a relação observada entre Filantropia e Desigualdade nos EUA? Dentre os vários aspectos abordados no Relatório, eu destacaria dois pontos, que relacionei às seguintes perguntas:

  1. Como o aumento recente da desigualdade nos EUA tendeu a distorcer o padrão de filantropia? 
  2. Como esse novo padrão de filantropia pode estar amplificando a desigualdade lá?

Primeiro, e aqui usando os dados do Statista Research Department (março 2023), é fato que nos últimos 30 anos a distribuição de renda piorou nos EUA, com o índice de Gini subindo de 0,43 (1990) para 0,49 (2021) – vale lembrar que o Gini varia entre 0 (total igualdade na distribuição da renda) e 1 (total desigualdade na distribuição de renda).

Relatório do IPS vai mostrar que esse aumento na desigualdade de renda nos EUA acabou por gerar um perfil de filantropia mais concentrado e dependente de grandes filantropos. Ou seja, a desigualdade de renda como geradora de um perfil desigual de doadores. Assim, logo na introdução do Relatório, é dito que

Como a desigualdade tem crescido nos EUA, o sistema de filantropia no país está em perigo de virar uma plataforma de poder privado para os ultra-ricos, subsidiada pelos contribuintes (os cidadãos pagadores de impostos). Isso coloca em risco o setor não-lucrativo independente e a nossa sociedade como um todo.

Desde que fizemos a primeira edição do nosso Relatório em 2016, temos mostrado que as organizações filantrópicas estão recebendo cada vez menos recursos de doadores das classes baixa e média, e que elas estão se tornando cada vez mais dependentes das grandes doações provenientes de um número cada vez menor de doadores ricos. E que esses doadores ricos tendem a “despejar” os seus dólares em fundações (privadas) e em fundos filantrópicos (do inglês: Donor-Advised Funds ou DAFs) – veículos intermediários de sua filantropia, que estão sob o seu próprio controle – ao invés de doar diretamente para as organizações filantrópicas executoras. (Relatório, p.4)

O Relatório mostra que em apenas dez anos, entre 2008 (auge da crise financeira e imobiliária nos EUA, conhecida como a “crise do subprime”) e 2018, a proporção das famílias que faziam doações nos EUA caiu de 66% para 50%, em grande medida em razão de fatores de insegurança econômica das famílias, como a deterioração em suas condições de emprego e salário. Também mostra que a proporção das doações subsidiadas provenientes de doadores do topo da pirâmide aumentou sensivelmente: em 1993 as famílias com renda superior a US$ 1 milhão representavam apenas 10% do total das isenções concedidas, sendo que esse percentual saltou para 40% em 2019. (Relatório, p.8;11-12)

segundo ponto (pergunta 2) é que esse perfil mais concentrado de filantropos tem atuado como fator gerador de desigualdade de renda. Ou seja, a desigualdade no perfil dos doadores / filantropos tem tido como consequência a produção de desigualdade de renda.  O Relatório ilumina como isso vem ocorrendo na filantropia nos EUA.

Doadores ultra ricos (doação de mais de US$ 1 milhão no ano) doam muito mais para veículos intermediários (Fundações privadas e Fundos filantrópicos próprios) do que diretamente para as organizações filantrópicas executoras. (p. 13-14)  

Dados da Giving USA mostram que as doações para fundações privadas aumentaram de 5% para 15% do valor total das doações entre 1991 e 2020. Já os dados da National Philanthropic Trust mostram que as doações para os Fundos Filantrópicos próprios (do inglês: Donor-Advised Funds ou DAFs) aumentaram de 4% (2007) para 15% (2020) do valor total das doações. Assim, juntos esses dois intermediários agora absorvem 30% de todas as doações dos EUA, isto é, quintuplicaram a sua parte do bolo da filantropia em menos de trinta anos. Vale lembrar que em 1991 ainda não existiam os Fundos Filantrópicos próprios, os chamados DAFs (p.19-20).

Mesmo quando os muito ricos doam, eles apoiam causas diferentes do que os doadores em geral. Assim, suas doações tendem a ir majoritariamente para instituições que possam ajudá-los a estabelecer legados pessoais – instituições como faculdades, universidades e centros médicos – e menos para as causas que a maioria dos americanos escolhe apoiar – que, em 2020, foram religião, cuidados com a saúde e problemas internacionais) (p.15-16)

Nesses dois argumentos, a questão central destacada é que diferente da filantropia “pulverizada” (nas mãos de muitos doadores), quando há concentração da filantropia em mãos de poucos filantropos ricos ou ultra-ricos, eles passam a ter o direito de decidir e priorizar as causas a serem enfrentadas, e como querem fazê-lo. Com isso, a filantropia pode acabar perdendo o seu papel de atuar como complementar ao Estado na solução dos problemas sociais mais críticos e diretamente relacionados à pobreza, exclusão social e desigualdade de renda.

A título de ilustrar esse poder dos grandes filantropos em decidir livremente sobre a alocação do elevado volume de recursos que eles destinam com finalidade pública, a publicação do IPS dá alguns exemplos. Em 2021, o CEO da Tesla, Elon Musk, fez segredo sobre a destinação de sua doação (US$ 5,7 bilhões). Mackenzie Scott, ex-esposa de Jeff Bezos / CEO da Amazon, seguiu os seus  próprios critérios ( Mackenzie Scott: um novo modo de fazer filantropia) na alocação de sua filantropia de US$ 2,7 bilhões, grande parte fora dos EUA. E Michael Bloomberg, fundador e CEO da Bloomberg L.P., decidiu doar U$ 1,7 bilhão para a sua própria Fundação, a Bloomberg Philanthropies.

Essa total liberdade de decisão dos ultra-ricos na alocação de sua filantropia não é novidade nos EUA. Haja vista que, nos idos de 1889,  Andrew Carnegie, empresário que impulsionou a siderurgia, também definiu a sua própria política de filantropia (Riqueza e Filantropia, de 1889 a 2019: o que mudou?), que foi centrada em doações para universidades, bibliotecas, parques públicos e laboratórios.   

Filantropia: esses alertas vindos dos EUA valem para o Brasil?

Fazendo essa pergunta de modo mais direto e claro: será que, se a filantropia no Brasil atrair grandes filantropos – seja famílias ou empresas, isso poderá resultar em mais desigualdade de renda no Brasil?

Essa pergunta pode até parecer contrassenso, já que no Brasil o que mais desejamos nesse momento é estimular a filantropia, criar incentivos fiscais, atrair grandes filantropos e combater as desigualdades de renda no país. Há vários aspectos a serem abordados, e vou elencar alguns deles.

1 – No que se refere à filantropia e desigualdade de rendaos contextos do Brasil e dos EUA são bastante distintos. Vivemos estágios bem distintos.

No Brasil a cultura da filantropia ainda é incipiente, precisando ser estimulada e difundida. Diferente dos EUA, em que há uma longa tradição de doação, é um valor cultural já consolidado entre as famílias e empresas.

Só para ilustrar essa discrepância, basta ver que segundo pesquisa do CAF (Charities Aid Foundation) para o período 2009-2018 e levando em conta o WGI  (World Giving Index), os EUA foram classificados em 1º lugar como o país mais doador do mundo, ficando o Brasil em 74º lugar, num total de 126 países. O WGI é constituído pela média simples de 3 indicadores, que são: no último mês, percentual de pessoas pesquisadas que (1) doaram dinheiro para uma organização filantrópica; (2) trabalharam como voluntárias para uma organização; (3) ajudaram um estranho que precisava de ajuda. No caso desse primeiro indicador, o percentual médio para o Brasil  foi de 22%, saltando para 61% para os EUA. Como se vê, nem de longe é o momento no Brasil para se pensar em reduzir estímulos à filantropia.

Evidente que, em ambos os países, em situação de crise econômica e desemprego, a filantropia da maioria das famílias tende a decair – como, por exemplo, ocorreu nos EUA pós crise de 2008.

Já no que se refere à distribuição da renda, o Brasil é um país com um padrão histórico de desigualdade bem mais elevado, sem falar que Brasil e EUA tiveram dinâmicas recentes em sentido opostos. Enquanto nos EUA houve piora na distribuição de renda entre 2002 e 2021 – com o índice de Gini subindo de 0,46 para 0,49, no Brasil houve uma melhora nesse indicador, porém ainda dentro de um patamar bastante elevado – média do Gini caiu de 0,547 (2000-2010) para 0,489 (2010-2021).

– No Brasil ainda não temos um sistema tributário estruturado para estimular a filantropia. Diferente dos EUA, pois lá o sistema tributário oferece incentivos significativos para as doações filantrópicas. Os doadores podem deduzir as doações de seus impostos, o que incentiva a contribuição para organizações sem fins lucrativos. Pois, como se sabe, quanto mais rico o indivíduo, mais elevados são os seus tributos devidos.

No Brasil, só agora a Reforma Tributária em tramitação (parcialmente aprovada na Câmara dos Deputados) menciona a possibilidade de isentar as organizações sem fins lucrativos do imposto sobre doações, o ITCMD – até hoje, as doações vêm sendo taxadas com as mesmas alíquotas que as heranças. Sem falar que as alíquotas tributárias no Brasil ainda são bem menores do que nos EUA – por exemplo, o teto do ITCMD nos EUA chega a 40%, sendo de 8% no Brasil. Quanto ao Imposto de Renda / federal, esse teto bate em 27,5% no Brasil; podendo chegar a 37% nos EUA (dados de 2021), sendo que lá ainda há a tributação estadual de imposto de renda (que não existe no Brasil). Ou seja, o que se vê é que nos EUA já há um sistema de tributação consolidado de estímulo à filantropia, que parte da lógica de que é melhor doar do que pagar imposto.

3 – Nos EUA, é dito que a filantropia se tornou concentrada nas mãos de alguns poucos filantropos ultra-ricos, sobretudo às custas de subtração de recursos tributários e com total poder de alocação desses recursos. Com isso, lá a filantropia parece estar se tornando em ameaça à capacidade do setor público em promover políticas públicas de equidade social.

Em certa medida, discordo dessa posição. Pois, por definição, o filantropo (entendido como a pessoa / empresa que faz filantropia) tem liberdade na escolha sobre onde e como alocar os seus recursos (financeiros, de tempo, de conhecimento, de bens), sejam eles de origem voluntária (proveniente de recursos próprios) ou incentivada (gerados por meio de incentivos fiscais e/ou outros benefícios concedidos pelos governos).

Evidentemente na filantropia incentivada, os governos podem definir determinados parâmetros para o uso dos recursos filantrópicos. Por exemplo, no Brasil foi definido que tanto empresas como indivíduos podem fazer filantropia a partir dos seus recursos que são frutos de deduções do imposto de renda apenas naqueles projetos de interesse público já aprovados nas leis de incentivo fiscal. Portanto, a meu ver, é no campo da filantropia incentivada que há espaço para estimular a alocação os recursos filantrópicos para áreas consideradas prioritárias pela política pública.  

4 – A crítica de que lá nos EUA o padrão de filantropia concentrado nas mãos de alguns poucos ultra-ricos e ricos tende a gerar mais desigualdade de renda (porque esses filantropos preferem doar para setores charmosos ao invés de setores de atendimento a necessidades básicas) não procede no caso do Brasil.

Isto porque aqui as carências sociais ainda são muito grandes e de todas as naturezas. Independente da área de atuação, a filantropia pode ter papel relevante na promoção seja do bem-estar público (caráter universal) ou da qualidade de vida de pessoa(s) / grupos em situação desfavorável. Assim, ainda que a filantropia atenda às causas “do coração” da família doadora ou aos interesses estratégicos da empresa, no caso da “filantropia corporativa”, o que é relevante é que os impactos sociais /públicos gerados sejam realmente efetivos. Um bom exemplo nesse sentido no Brasil é o da Fundação Lemann (de Jorge Paulo Lemann) que durante a pandemia da Covid-19 apoiou diferentes iniciativas para combater a disseminação do vírus e minimizar seus impactos, incluindo investimentos em pesquisa científica, doações para hospitais e organizações de saúde.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.