Riqueza e filantropia, de 1889 a 2019: o que mudou?

Por on 16/10/2019

Nos idos de 1889 Andrew Carnegie, que criou a siderurgia nos EUA e se transformou em um dos homens mais ricos do mundo de todos os tempos, escreveu o  livro The Gospel of Wealth (O Evangelho da Riqueza). Nesse curto ensaio ele apresenta a sua percepção sobre a geração da riqueza e, sobretudo, sobre como ela deve ser utilizada. Para Carnegie, a filantropia é um dever e responsabilidade inerente aos milionários. Sem dúvida, um texto datado, mas bastante interessante.

Nessa primeira parte, sintetizo as ideias centrais de Carnegie sobre riqueza e filantropia. Na segunda parte,  tendo as ideias de Carnegie como pano de fundo, faço uma reflexão sobre  a relação entre riqueza e filantropia no Brasil nos dias de hoje : quais são as semelhanças? quais as diferenças? quais os riscos? quais as possibilidades?

 

Andrew Carnegie, 1889: Riqueza e filantropia, uma combinação virtuosa


 Melhores condições de vida. O preço foi a desigualdade

O problema é a boa administração da riqueza. Na época da manufatura, havia pouca diferença entre as condições de habitação, vestuário, comida e dos ambientes frequentados pelos mestres e seus aprendizes.  Eles trabalhavam lado a lado, muitas vezes o aprendiz morando com o mestre. Com a industrialização, o  contraste entre o palácio do milionário e a casa do trabalhador evidencia a mudança que veio com a civilização.

A mudança não deve ser lamentada, mas saudada como altamente benéfica. Melhor haver desigualdade do que a miséria universal. Sem riqueza, não pode haver mecenas. Na realidade os “velhos bons tempos” não eram assim tão  velhos bons tempos. Porque há que se reconhecer que, com a industrialização,  tanto o mestre como o criado estão melhores do que antes. O pobre tem uma condição de vida muito melhor, acesso a mais conforto, do que o rico dos tempos da manufatura.

 Todavia o preço pago por essa mudança foi elevado. Agora se reúnem milhares de operários numa fábrica ou numa mina, e o empregador conhece pouco ou nada sobre eles; por sua vez, para os empregados, o empregador se tornou quase um mito. Rígidas castas se formaram e, normalmente, a ignorância mútua alimenta a desconfiança mútua . Há conflitos entre empregadores e empregados, entre o capital e o trabalho, entre ricos e pobres. Tudo porque a sociedade perdeu a sua homogeneidade.

 

Talento do milionário deve ser recompensado. Comunismo X Capitalismo

Ter capacidade de gestão para fazer fortuna é um talento muito raro. É por isso que a recompensa aos seus possuidores tem sido altíssima.

Em nossa civilização, o direito à propriedade é sagrado: tanto o direito do trabalhador às suas centenas de dólares guardadas  em bancos como o direito dos milionários aos seus milhões.

Porém, se queremos passar do atual sistema (Individualismo) para o Comunismo [que é o sistema em que o homem trabalha não para si próprio mas, à maneira de um “anjo”, para compartilhar com todos os demais], então será preciso haver Revolução. Porque essa não seria a evolução natural, e o compromisso (dos ricos) é com as questões práticas do atual sistema.

 

Qual é o modo mais adequado para administrar a riqueza em mãos de poucos? Há relação entre riqueza e filantropia?

Há   três maneiras: ela pode ser deixada para os familiares e dependentes; ela pode ser transferida após a sua morte para “propósitos públicos”; ou ela pode ser gerida em vida pelos próprios milionários. Até aqui, os dois primeiros modos têm prevalecido.

O primeiro modo é o menos sensato. Por que deveriam os milionários deixar grandes fortunas para os seus filhos e familiares? Se a razão for afeto, seria mesmo a maneira correta de transmitir afeição? A experiência tem mostrado que não faz bem para os filhos serem “sobrecarregados”, uma vez que passam a ter que administrar grandes fortunas pelo resto de suas vidas; sem falar que muitas vezes já foram (mal)educados pois miraram uma vida tranquila, segura e preguiçosa. O que inspira a herança não é o bem dos filhos, mas um certo orgulho de família.

O segundo modo é o mais mesquinho. Pois quem deixa fortunas em testamento para instituições de interesse público é sinal de que, se pudesse, teria levado consigo todo o dinheiro para além túmulo. Só não levou consigo, pois foi impedido pela morte. Daí porque quando o Estado impõe pesadas taxas de transmissão de fortunas é sinal de que reconhece e condena a “vida egoísta e sem propósito dos milionários”.

O terceiro modo é o mais virtuoso, pois representa o antídoto da distribuição desigual e temporária da riqueza, a reconciliação entre o rico e o pobre. É quando a riqueza excedente dos poucos (milionários) se tornará, no bom sentido, em propriedade dos muitos, porque será bem administrada em função do bem comum pelos próprios milionários em vida.

Portanto, o dever do  homem rico é o de levar uma vida modesta, sem ostentação nem extravagância; e, uma vez atendidas as necessidades legítimas das pessoas que dependem dele, produzir o máximo de resultados benéficos com esse excedente, em favor da comunidade. Ou seja, colocar a sua superior capacidade de gestão ( seja por seus conhecimentos, habilidades e experiência) a serviço da grande maioria da população. Será capaz de fazer melhor pela comunidade do que as próprias pessoas, se fossem elas a administrar os mesmos recursos. 

 

Os melhores campos para a filantropia

A existência de grandes fortunas em uma comunidade tanto  pode ser uma benção como uma maldição: vai depender sobre como o dinheiro será utilizado para a comunidade.

A caridade (filantropia) indiscriminada mais atrapalha do que ajuda. Afirmo que 95% dela é mal utilizada a ponto de produzir os malefícios que pretendia mitigar ou eliminar. Seria preferível jogar o dinheiro dos milionários ao mar do que usá-lo com os preguiçosos, bêbados e os sem-valor. A obrigação de cuidar deles é do Estado.

 Como regra, o pecado dos milionários não tem sido a omissão, mas a “comissão” – eles não querem usar o seu tempo para pensar, e principalmente porque é mais fácil doar do que ter que recusar, muitas vezes estimulando o “espírito da dependência de esmolas”.

Ao fazer filantropia, a principal consideração dos milionários deve ser a de providenciar os meios para aqueles que queiram se desenvolver. Ou seja,  dar as escadas para que eles possam progredir. Porém, não deve ser privilégio dos milionários atuar em prol da comunidade. Aquelas pessoas que são (apenas) ricos com um pequeno excedente podem compartilhar o privilégio com outros ricos. Já aqueles que não têm excedente podem dedicar parte do seu tempo.

Os melhores usos (mais inteligentes) que um milionário pode dar aos excedentes de sua riqueza em prol do bem público, e cujos recursos ele próprio deve administrar, são:

  • Fundar ou apoiar as necessidades de uma universidade. Tal foi o caso, nos EUA, das doações para Harvard, Stanford, Yale, e muitas outras.
  • Fundar e/ou apoiar as necessidades de uma biblioteca pública. Mr. Pratt foi o exemplo de discípulo ideal do Evangelho da Riqueza, por seu apoio permanente e atento às necessidades das bibliotecas públicas de Baltimore.
  • Fundar e/ou apoiar hospitais, faculdades de medicina, laboratórios e outras instituições conectadas como o alívio do sofrimento humano, e especialmente com a prevenção mais do que com a cura das doenças humanas. O exemplo aqui foi Mr. Vanderbilt, o grande empresário das ferrovias.
  • Fundar e/ou manter os parques públicos das cidades, de modo a tornar esses espaços urbanos mais atraentes à convivência. Pois “nem só de pão vive o homem”
  • Fundar e/ou manter os salões para eventos da comunidade e para os concertos de música, que tanto encantam. Nos EUA, estamos muito atrás das cidades da Europa e sobretudo da Inglaterra.
  • Fundar e/ou manter os clubes de piscina para ensinar natação para as crianças e adultos. Também nesse quesito, os EUA estão muito atrasados em relação aos países da Europa.
  • Contribuir para a manutenção do prédio das Igrejas – aqui entendido como o espaço físico que reúne as pessoas da comunidade toda, e não propriamente para os cultos, que só dizem respeito a parcelas da comunidade.

Uma condição importante para a seleção do campo da filantropia a ser apoiado é a identificação e o entusiasmo do milionário pela causa. A seleção é pelo “coração”.

Enfim, e para sintetizar a proposta de Carnegie, o milionário virtuoso entra em sintonia com os ensinamentos de Jesus Cristo de que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Porque ao longo de sua vida ele faz fortuna, mas é capaz de distribuir todo o excedente para o bem público. Daí, não morre rico. Por sua vez, o milionário que morre rico é porque foi avarento e egoísta em vida.  

 

Riqueza e Filantropia, 2019: riscos e possibilidades

 

Melhores condições de vida. Mais desigualdade com desemprego

Assim como no final do século XIX, período retratado por Carnegie, se vivenciavam os efeitos da ruptura no modo de produção (da manufatura para a industrialização), também hoje vivenciamos em âmbito mundial nova ruptura no modelo de produção, talvez de mesma intensidade ou até maior. A revolução da tecnologia da informação (TI) provocou, de 2000 para cá, mudanças profundas nas formas de produção, de acesso a dados e de comunicação entre as pessoas.

Como naquela análise de Carnegie para os EUA, também agora no caso brasileiro é inegável que esse salto na indústria de TI trouxe um avanço sem igual nas condições de vida da população em geral. Tanto os ricos como os pobres do Brasil têm muito mais conforto hoje do que  20 anos atrás. Têm agora amplo acesso a celular, televisão, carro, internet, transporte em geral, viagens de avião; e também facilidade para se comunicar com familiares nos lugares mais remotos, fazer compras e buscar qualquer tipo de informação necessária para o dia-a-dia.

Também como ocorreu em 1889, o avanço cobrou o seu preço, sendo que agora mais alto ainda: desigualdade aliada ao desemprego. Antes, a industrialização havia trazido a multiplicação de postos de trabalho, sem exigência de qualificação. Agora, a difusão da tecnologia da informação gerou o fechamento de muitos empregos de baixa qualificação (nas fábricas, comércio, nos bancos) além da exigência de maior qualificação para os novos postos de trabalho que estão surgindo. Há o risco de que essa maior exigência de nível educacional contribua para amplificar o funil das disparidades de renda e a crise social.

 

Talento para inovação  recompensado. E Capitalismo repensado

Novamente fazendo um paralelo com a lógica de Carnegie, também hoje o talento para a inovação (antes: talento de administração para fazer fortuna) tende a ser altamente recompensado. Basta ver as grandes fortunas construídas por Bill Gates (Microsoft), Mark Zuckerberg (Facebook) e Jeff Bezzos (Amazon) em função da capacidade extraordinária deles em desenvolver equipamentos e aplicativos em TI.

Por sua vez, a dicotomia Capitalismo X Comunismo daquela época parece hoje superada. Atualmente a questão central passou a ser como repensar o capitalismo. Os sérios problemas de desigualdade, pobreza e mudanças climáticas põem em risco os modelos tradicionais de produção e consumo, que estão se tornando insustentáveis.

Para reformar o capitalismo, a estratégia do valor compartilhado (ou “shared value”) na empresa é uma alternativa. Tão importante quanto o desempenho econômico da empresa é o seu desempenho social e ambiental, ou seja, o seu compromisso com todos os públicos envolvidos e não apenas com os acionistas – ou os donos, como nos tempos de Carnegie. Outra alternativa que vem ganhando destaque são os negócios (ou empreendimentos) de impacto, que já nascem com o propósito de resolverem um problema social / ambiental e terem lucratividade.

 

Qual é o modo mais adequado para administrar a riqueza? Há relação entre riqueza e filantropia?

No final do século XIX, do ponto de vista corporativo prevalecia uma partição bem nítida entre a vida na empresa e a vida individual. O dono da empresa era mesquinho e rude com os seus empregados (baixos salários, más condições de trabalho) e cruel com os seus fornecedores, para poder se transformar em um empresário bem sucedido (altas taxas de lucro). Fora da empresa, muitas vezes era um indivíduo generoso e caridoso com a comunidade em geral. Assim era Andrew Carnegie em 1889: um empresário exemplar e um filantropo exemplar, porém figuras totalmente destoantes entre si.

Hoje a cobrança é bem diferente. Empresário e indivíduo devem compor uma figura só, e é assim que eles querem ser percebidos. Haja vista as estratégias corporativas predominantes, como a do valor compartilhado na empresa; ou do negócio/ empresa com impacto; ou ainda a filantropia corporativa – sendo que no Brasil a preferência é pelo termo Investimento Social Privado (ISP).

Indo para o plano individual e familiar, quais seriam atualmente as maneiras para administrar o patrimônio dos indivíduos / famílias e sua relação com a filantropia? Notar que, nessa pergunta, não estou me referindo à “riqueza dos milionários”,  como fez Carnegie, mas sim ao patrimônio das famílias.

Particularmente em relação ao Brasil, vejo dois modos sendo adotados. O primeiro é a pessoa gerir o seu patrimônio em vida, e depois o excedente  ser transferido para os herdeiros. Em nosso país, o imposto sobre heranças ainda é relativamente baixo (de 4 a 8%, dependendo do estado) quando comparado, por exemplo, com as taxas vigentes no país-símbolo do capitalismo, os EUA (de 29 a 40%). Ao longo de sua vida, a pessoa pode optar por fazer doações (regulares ou não) a determinadas organizações do terceiro setor, em função de sua identificação com a causa social e/ou com o seu julgamento acerca do trabalho que a instituição realiza. Esse é o modo mais usual no Brasil, e vem sendo praticado por famílias de qualquer classe de renda.

O segundo modo é quando a pessoa decide, em vida ou ao morrer (por testamento – a parcela do “disponível”), doar o seu patrimônio para criar uma Fundação e/ou um Fundo Patrimonial,  associados a determinadas causas sociais; ou ainda deixar um legado para determinada instituição beneficente. Esse modo é mais raro ocorrer do que o anterior, e normalmente se dá entre as famílias muito ricas e caridosas. Exemplos no Brasil de fundações familiares  são a Fundação José Luiz Edydio Setubal e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Quanto aos fundos patrimoniais (ou endowments), eles foram recentemente regulamentados em nosso país – Lei 13.800 / 2019, e precisam ainda entrar no cardápio da filantropia das famílias ricas de nosso país.

Não se pode dizer que exista um modo mais adequado para estabelecer a relação entre riqueza e filantropia. Vai depender de cada situação. Pode ocorrer, que na condição de acionista, a pessoa aplique melhor a sua riqueza em benefício do bem-estar social do que na condição de filantropo, ou vice-versa.

 

Os vários campos da filantropia

Na época de Andrew Carnegie, o foco da filantropia nos EUA era apoiar o Estado na oferta de melhores condições de vida da população em geral daquele país. O ideal almejado de qualidade de vida  era o padrão vigente nos países europeus, sobretudo no Reino Unido. Foi espelhando nesse modelo que Andrew Carnegie elencou os campos onde a filantropia poderia fazer a diferença, tais como o apoio a universidades, bibliotecas, parques e laboratórios.

Já nos dias de hoje, tendo em vista o problema sério da desigualdade e pobreza, o foco da filantropia, não apenas no Brasil como no mundo,  tem sido apoiar os governos no atendimento das populações vivendo em situação de vulnerabilidade.

Como já analisei anteriormente, no Brasil doa-se pouco quando comparado a outros países; e o pior, há dificuldades práticas quando se decide fazer a doação.  Portanto, há um amplo espaço  para expandir a filantropia em nosso país, seja para organizações que desenvolvem trabalhos estruturantes como para aquelas com ações assistenciais. Ambos os campos são necessários e precisam de apoio; o fundamental é que as iniciativas sejam desenvolvidas de forma participativa, planejada e monitorada.

Se queremos expandir a filantropia no Brasil, e muitas vezes via incentivo público, é importante haver certo direcionamento pelo Poder Público sobre as prioridades sociais do território. As ações não podem ser guiadas exclusivamente pela identificação dos filantropos com a causa, pois há o risco de provocar distorções sérias no atendimento à comunidade.

Considerações finais

Concluo esse diálogo de 2019 com 1889 sobre riqueza e filantropia, com as seguintes palavras do Papa Francisco:  “de nada serve a riqueza no bolso, quando há pobreza no coração”.  Ou seja, a virtude está na riqueza do coração da pessoa, independente  de como estejam os  seus bolsos.  Diferente do que pensava Andrew Carnegie, a pessoa virtuosa é um todo indivisível [ profissional + empresarial + familiar + individual], que aloca os seus talentos, bens e expertises da melhor maneira para fazer os outros felizes.

 

 

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.