Filantropia Familiar: experiências inspiradoras

Por on 30/11/2020

O brasileiro é generoso e quer ajudar. Basta ver o salto vertiginoso observado nas doações e no voluntariado com a chegada da pandemia aqui em março de 2020  (ABCR, Monitor das Doações). É uma prova de que temos um potencial filantrópico adormecido, apenas à espera de oportunidades. O que faltam são estímulos e inspiração para doar.

No seu dia a dia o brasileiro e suas famílias não têm o hábito da doação sistemática, como ocorre em vários outros países, independendo de ser desenvolvido ou não. Veja que, considerando o “score agregado”  do ranking mundial das doações (dinheiro, tempo e ajuda) dos  últimos 10 anos (2009-2019), o Brasil ficou em 74º lugar, atrás dos Estados Unidos, o melhor classificado (1º), do Reino Unido (7º), Kenya (11º) e Serra Leoa (20º). Coube à China o último lugar (126º ) nessa classificação (CAF, World Giving Index 2019).

Como constatado em pesquisa do CAF- IDIS (2019), no Brasil “doamos de forma esporádica, sem comprometimento com a sustentabilidade das organizações da sociedade civil. E doamos relativamente pouco, em termos financeiros, 0,2% do PIB (Produto Interno Bruto), se comparados a países com maior tradição filantrópica, como o Reino Unido ou os EUA, com 0,5% e 1,4% de seus PIBs respectivamente” .

Por isso, vale a pena iluminar boas iniciativas de filantropia familiar em nosso país, de modo a inspirar mais famílias a  trilharem por esse caminho da generosidade e do desapego.  A seguir,  apresento dois exemplos recentes – os casos da família Bracher e da família Pipponzi.  Para conhecer um pouco mais sobre essas histórias, recomendo os vídeos:

  1. Famílias ricas: Filantropia via doação (de parte) da herança

Um exemplo inspirador de filantropia é o da família Bracher, com vários de seus membros abrindo mão de parte do seu dinheiro e/ou herança  para formarem fundos patrimoniais filantrópicos e/ou fundos emergenciais filantrópicos. São três gerações de filantropos e, diga-se de passagem, de pessoas bem sucedidas em suas profissões.

Fernão Bracher foi presidente do Banco Central (1985-87), fundador do Banco BBA, e depois vice-presidente do conselho de administração do Banco Itaú (com a fusão Itaú-BBA). Um dos seus cinco filhos, Cândido Bracher, é hoje o atual presidente do Itaú Unibanco. Junto com a esposa Sonia (psicanalista) e a filha Elisa (artista plástica), Fernão Bracher criou, em 2001, o Instituto Acaia  para poder receber as crianças das favelas do entorno da Ceagesp (SP) para atividades diárias no contraturno da escola. Hoje o Instituto atua através de três núcleos educativos: Ateliescola Acaia ,  Centro de Estudar Acaia Sagarana e Acaia Pantanal.  Em 2016, o Instituto Acaia ganhou o seu fundo patrimonial, a partir de doações (endowments) que foram feitas pelo casal, seus filhos e amigos. Fernão Bracher presidiu o Instituto Acaia até o seu falecimento, em 2019.

Beatriz Bracher, também filha de Fernão Bracher, é escritora e roteirista, com vários prêmios recebidos. Ela conta que, em 2015 com o falecimento de sua mãe e com a herança recebida, ela  passou a colaborar com organizações ligadas à defesa de direitos humanos e democracia, como a Conectas, Instituto Igarapé e Redes da Maré. Mas em 2019, ela decidiu que seria mais efetivo se ela pudesse atuar de forma mais estruturada. Diz ela,

 Vi que seria melhor se eu pudesse fazer  de uma forma mais organizada e assessorada por quem conhece o campo (da filantropia).  Aí eu chamei o Rafael (..) para assessorar, e junto com a minha filha Julia  nós criamos o Instituto. A minha esperança é que assim eu consiga ter um foco – eleger quais os objetivos que eu vou ajudar considerando os milhares de problemas que o Brasil tem, para que eu possa acompanhar tudo mais de perto, manter uma interlocução e ver se está dando certo.

Foi assim que, em novembro de 2019, nascia o Instituto Galo da Manhã. Como explica Beatriz, “ser escritora não me preparou para ser filantropa. Mas me ensinou a me colocar no lugar do outro, a ter empatia”.  Ou seja, a “sentir” o sofrimento do outro.

Julia Bracher Mariani, neta de Fernão Bracher e filha de Beatriz, trabalha com desenho gráfico, e morava em Londres até há bem pouco tempo. Tem alguma familiaridade com as “charities” do Reino Unido, embora reconheça que lá a filantropia esteja bem mais evoluída do que aqui, além de ser também um país mais rico.

É a Júlia que vai ficar diretamente envolvida com o Instituto Galo da Manhã, que tem como foco contribuir para a justiça (por um sistema penal mais justo),  a democracia (liberdade de expressão), a proteção da infância, cultura, e também o saneamento básico.  Ela explica que a escolha do nome foi inspirada  em um poema de João Cabral de Melo Neto, Tecendo a Manhã, que diz que “um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”. 

A filantropia das famílias mais ricas deveria ser como os galos da manhã. Se todas essas famílias ajudarem de uma forma estruturada  se conseguirá “tecer” um Brasil menos desigual e com menos pobreza.  Beatriz Bracher vai além, “poder criar institutos deveria também ser mais simples no Brasil. Hoje em dia a filantropia virou uma área de especialistas, tem todo um jargão próprio. A pessoa precisa ser um especialista para poder criar um instituto….”

2. Famílias empresárias: Filantropia a partir da (experiência da) empresa

Outro exemplo inspirador de filantropia é o da família empresária Pipponzi, hoje liderando o conglomerado RaiaDrogasil  de farmácias, com mais de 1.500 lojas espalhadas pelo país.

Tudo começou em 1905 quando João Batista Raia criou a farmácia Raia em Araraquara (SP). A farmácia seguiu sendo administrada pelo filho, Arthuro Pipponzi; depois veio o neto, Antonio Carlos Pipponzi (conhecido como ACP), que promoveu um salto nos negócios da família pelo Brasil afora e, desde a fusão Raia + Drogasil em 2010,  ele ocupa a presidência do Conselho de Administração da companhia. Por último, o bisneto Rodrigo Pipponzi  vem, desde 2008, liderando as questões ESG (Environmental, Social and Governance) e do investimento social privado (ISP) na RaiaDrogasil, em paralelo com as suas muitas outras atribuições no campo do empreendedorismo social e da filantropia.

Rodrigo Pipponzi  explica como ele e a família vêm conseguindo integrar bem a filantropia aos negócios. Diz ele,

Atualmente eu tenho muitos “chapéus”.  Como empreendedor social, fundei em 2006 a editora Mol, que é uma empresa de impacto social que, em parceria com grandes redes varejistas (a RaiaDrogasil foi a primeira delas), gera doações para organizações sociais, a partir da venda dos produtos editoriais diretamente no caixa dessas redes. Com isso, já geramos desde 2008 um total de R$ 36 milhões em doações para mais de 100 ongs que atuam com as seguintes causas: saúde e bem-estar, educação&cidadania, proteção animal e vida sustentável. Recentemente foi criado o Instituto Mol com o objetivo específico de estimular a cultura da doação no Brasil.

No âmbito da RaiaDrogasil tenho participado ativamente nos Comitês de trabalho no que tange às questões de Sustentabilidade e do Investimento Social Privado. Um trabalho relevante recente que fizemos foi a aprovação e criação do Fundo Todo Cuidado Conta  no âmbito da companhia, que doou R$ 25 milhões ao “Fundo Emergencial para Saúde – Coronavírus Brasil” para apoiar 50 hospitais da rede pública de saúde.

Com o chapéu da filantropia familiar, a partir da destinação de um fundo patrimonial familiar, o meu pai criou em 2019 o Instituto ACP (iniciais dele, Antonio Carlos Pipponzi), sendo o Conselho diretor do Instituto constituído pelo meu pai e por nós, os três filhos. O Instituto ACP tem como objetivo apoiar o desenvolvimento  institucional das organizações do terceiro setor. É uma maneira de podermos canalizar, para as organizações sociais, o conhecimento em gestão que nós  (do setor empresarial) temos, como por exemplo em planejamento estratégico, governança, eficiência administrativa, avaliação, mobilização de recursos, desenvolvimento de lideranças, etc… Pois não raro vemos organizações sociais bem intencionadas e muito competentes no que sabem fazer, porém que acabam fracassando porque têm uma administração ineficiente.

Também acabo de assumir uma cadeira no Conselho do Sistema B – Brasil, movimento que é voltado para estimular e certificar empresas realmente comprometidas com propósito e valores (B, de “Benefits”).

O que encanta no Rodrigo Pipponzi é essa sua capacidade e liderança de, a partir de suas empresas, ir abrindo caminhos para expandir e fortalecer a filantropia no Brasil. O sonho dele é poder “criar pontes” e influenciar outras famílias empresárias a também fazerem filantropia, em que cada família contribui de acordo com a sua capacidade de doação, seus conhecimentos, e respeitando o seu “momento de vida”.

Considerações finais

Com certeza, seria ótimo se houvessem mais famílias comprometidas com a filantropia que transforma, que nem as famílias Pipponzi e Bracher. São pessoas que carregam um sentimento muito forte de responsabilidade em retribuir as muitas oportunidades que a vida lhes deu e o privilégio de pertencerem a famílias com dinheiro, em um país com tantas desigualdades e pobreza como é o Brasil. 

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.