A conjuntura social no Brasil e no mundo segue um ritmo de mudanças incansável. Somos o tempo todo bombardeados por dados e análises de todo tipo, e na maior parte das vezes não temos tempo para refletir devidamente sobre elas, e fazermos inferências para a nossa atuação seja no campo econômico, social ou pessoal.
Exemplificando com base na leitura atenta de algumas publicações selecionadas (só) dos últimos 10 dias de agosto (2024), veja alguns questionamentos e insights interessantes que podem surgir para o Terceiro Setor no Brasil.
1 – Transferência de renda para o combate à pobreza: para além das cestas básicas?
Estudo divulgado nesse final de agosto evidenciou que, no auge da crise da Covid-19 no Brasil entre 2021 e 2023, os programas sociais públicos de transferência de renda, com destaque para o bolsa-família e o seguro-desemprego, foram decisivos para conter a escalada da pobreza – e até reduzi-la significativamente. Assim, considerando o Nordeste, que é a região mais pobre do país, a participação dos programas sociais na renda domiciliar das famílias em extrema pobreza subiu de 60,4% para 78,8% , enquanto a renda do trabalho caiu de 32,9% para 18,1%. Isso explica porque, nesse período crítico, a taxa da população em extrema pobreza (domicílios com renda per capita inferior a ¼ salário-mínimo) chegou a cair pela metade no Nordeste, de 9% para 4,4% – contrariamente ao que se poderia esperar.
Nessa mesma linha, outro estudo (desse final de agosto) aponta que, para além de solucionar o problema pontual da fome, o programa Bolsa-Família pode ser eficaz na promoção de mobilidade social. Para ilustrar, mostrou que crianças entre 7 e 16 anos de idade que faziam parte do Programa Bolsa-Família em dezembro/2005, dez anos depois e já adultos, 64% deles não constavam mais como beneficiários de programas sociais do governo federal , e 45% tinham conseguido emprego com carteira assinada entre 2015 e 2019. Ou seja, resultado alcançado no decurso de apenas uma geração, mas, para isto, foi fundamental manter as condicionalidades do Programa, como a exigência de frequência escolar e o foco nos mais necessitados.
Questionamento: Uma grande parte das organizações do terceiro setor no Brasil segue trabalhando basicamente com distribuição de cestas básicas. Sem dúvida, uma atuação essencial para atender às famílias que passam fome e vivem na miséria. Porém, e tendo em vista as evidências da eficácia das políticas públicas de transferência de renda, valeria a pena analisar se essas organizações filantrópicas poderiam também mirar o seu trabalho na captação de recursos financeiros a serem concedidos, de forma orientada, a essas famílias extremamente necessitadas. Pois seria uma maneira de dar a essas famílias a liberdade para priorizarem as suas necessidades e urgências (como moradia, transporte e saúde). Por outro lado, em função de sua proximidade com as famílias, essas organizações teriam a vantagem ( vis-a-vis ao setor público) de terem maior flexibilidade e capacidade de monitoramento da iniciativa.
Evidentemente, a ideia não pode ser concorrer nem com o bolsa-família nem com o microcrédito. Seria viável?
2 – Escolas públicas de tempo integral: cautela na implementação
Estudo mostrou o risco das escolas públicas de tempo integral gerarem mais desigualdade. Primeiro, porque, quando uma escola regular se transforma em integral, alunos com menor renda acabam sendo expulsos ou evadindo, pois não dão conta de acompanhar o ritmo ou porque precisem conciliar os estudos com o trabalho e/ou os afazeres domésticos. E segundo, porque essas escolas de tempo integral vêm sendo implantadas naqueles espaços públicos com melhor infra-estrutura, que atendem aos alunos com maior proporção de brancos e melhor nível sócio-econômico.
Desafios: À primeira vista, essa constatação pareceria um contrassenso. Isto porque as escolas públicas de tempo integral têm sido apontadas como estratégia eficaz de combate às desigualdades no Brasil, pois atuam direto na raiz do problema – ou seja, na oferta de boas oportunidades de educação para os mais pobres. E que deveriam ser estendidas a todo país. O que o estudo acima revelou é que é preciso muita cautela na implementação do sistema de escola pública integral.
Indo além, eu também tenho observado que a implantação de escolas públicas em regime integral nas comunidades de baixa renda tende a desestruturar o equilíbrio de horários existente entre escola e atividades do contraturno oferecidas pelos projetos sociais de ONGs nesses territórios. Outro desafio é também como conciliar o regime de escola pública integral com o trabalho social do terceiro setor, de modo a somar oportunidades nessas áreas carentes.
3 – Esporte de rendimento X Esporte-Educação?
Essa incompatibilidade parece estar deixando de existir. Matéria também publicada nesse final de agosto, motivada pelos Jogos Olímpicos 2024, trouxe os casos dos 3 medalhistas brasileiros, todos eles reforçando a importância dos estudos em suas vidas.
Até recentemente só apontávamos o papel do esporte-educação para a formação integral das crianças e adolescentes. Acreditava-se que a modalidade do esporte de alto rendimento seria incompatível com os estudos, uma vez que os treinos pesados acabavam afastando as crianças / adolescentes dos estudos. Tanto que em 2016 apenas 2% dos jogadores da 1ª divisão do futebol no Brasil se preocupavam em fazer curso superior. Segundo os especialistas, essa situação mudou: o atleta com boa formação intelectual terá mais chances nas competições esportivas e, caso não seja bem-sucedido como atleta profissional, estará bem-preparado para atuar em outros campos.
Alerta: A meu ver, é preciso cautela e não exagerar nesse otimismo (dos especialistas citados acima) com o esporte-rendimento. Sobretudo quando se trata do uso do esporte para promover o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes nas comunidades de baixa renda, a primazia deveria ser sempre para a implementação da estratégia do esporte-educação. Ainda que seja o esporte-rendimento com o maior potencial de gerar visibilidade positiva para o trabalho dessas organizações do terceiro setor trabalhando com o esporte.
4 – Controle demográfico para combater o aquecimento global. Será??
Artigo também publicado nesse final de agosto passado argumentou que (i)a população mundial aumentou de 4 bilhões para 8 bilhões só nos últimos 50 anos; (ii) o consumo de energia na Europa e Estados Unidos é em média 10 vezes maior do que nos países pobres da África; e (iii) já que o Planeta não tem conseguido ser bem sucedido para promover a mudança do padrão tecnológico compatível ao combate do aquecimento global, então a solução realista (apontada pelo artigo) passaria pelo controle demográfico contra o aquecimento global. E que chegar a uma média de 2 crianças por mulher já seria suficiente. Pois “sem medidas que mantenham o tamanho da população mundial em níveis com o que o Planeta suporta, a natureza fará isso por nós, e da maneira mais insensível, penalizando justamente os pobres dos países mais pobres”.
De fato, pelo Acordo de Paris (2015), havia ficado acertado limitar a elevação da temperatura média do Planeta em 1,5º C até 2100 em relação ao período pré-industrial (1850), sob pena de acarretar graves consequências à vida na Terra. Só que nesses últimos 50 anos a temperatura do Planeta já subiu 1,0º C.
Questionamento: Será que o controle demográfico ainda é solução para o aquecimento global? Não acredito. Estatísticas apontam que o crescimento populacional já está controlado. Basta ver que, entre 1960 e 2020, a taxa de fecundidade total nos países desenvolvidos já caiu de 3,7 para 1,7 filhos por mulher (Estados Unidos) e de 2,7 para 1,5 filhos por mulher. No Brasil, a queda foi ainda maior, de 6,3 para 1,7. Por sua vez, a média dos países africanos evoluiu de 6,7 para 4,4 filhos por mulher.
A meu ver, a contribuição do Terceiro Setor poderia se dar nesse momento no campo da educação ambiental das famílias morando em periferias, sobretudo em termos do descarte adequado do lixo e na formação de hábitos de consumo compatíveis com a economia circular.
5 – Grandes empresas nos Estados Unidos veem a Inteligência Artificial (IA) como um grande risco. Qual o “dever de casa”?
Segundo o novo ranking 2024 da “Fortune 500”, mais da metade das grandes empresas dos EUA (56%) veem a Inteligência Artificial (IA) como ameaça a seus negócios ante apenas 9% em 2022. Esse sentimento de ameaça vem crescendo desde o lançamento do ChatGPT pela OpenAI em novembro de 2022. Entre os principais riscos percebidos para os seus balanços financeiros estão (i) o aumento da concorrência com as empresas rivais que conseguirem explorar melhor a tecnologia, como relatou a Netflix; (ii) questões reputacionais advindos do possível impacto da IA nos direitos humanos, no emprego e na privacidade, como mencionou a Motorola; e (iii) riscos legais, regulatórios e de cibersegurança, como relatou a Disney. Já as companhias na área de saúde estão entre as poucas empresas do Ranking que estão vendo benefícios potenciais da IA generativa, sobretudo em se tratando do atendimento ao cliente.
A meu ver, esse sentimento de ameaça ao status quo percebido nos Estados Unidos pode ser um indicador antecedente do que está por chegar ao Brasil. E temos que estar preparados para esse novo salto de tecnologia que a IA vai promover, como ocorreu com a chegada da industrialização (em substituição à manufatura), depois com as ferrovias, a indústria do petróleo, os computadores de grande porte, e mais recentemente a Internet. É preciso entender que algumas empresas vão, sim, desaparecer porque se tornaram disfuncionais nessa nova estrutura de produção / comercialização.
Desafio: Como as organizações do terceiro setor no Brasil poderão se preparar para continuar apoiando a inclusão produtiva das populações mais desfavorecidas nesse novo cenário, em que as demandas por capacitação não vão ser mais as mesmas? Porque muitas profissões e funções poderão minguar ou se transformar (como a de programadores, médicos e pesquisadores), enquanto outras devem ganhar relevância e assumirem novos papéis (como a de cuidadores de idosos).
6 – ESG já é um valor corporativo em queda?
Como divulgado no final de agosto, a BlackRock, maior gestora de recursos do mundo, continuou reduzindo o seu apoio à política ESG de suas empresas investidas. Assim, nos 12 meses até o final de junho de 2024, a BlackRock apoiou 20 das 493 propostas sociais e ambientais que foram trazidas nas assembleias anuais de acionistas (das quais a gestora participou), ou seja, apenas 4% delas. Sendo que esse percentual havia chegado ao ápice de 47% em 2021, e depois despencado para 7% em 2023.
Acredito que, em boa medida, essa dinâmica recente do “apoio ESG” da BlackRock foi a ampla repercussão das cartas de Larry Fink, fundador e CEO da gestora, aos dirigentes das empresas investidas, que vinham sendo divulgadas todo início de ano desde 2012. Assim, as suas Cartas do período 2018 a 2021 conseguiram estimular fortemente o apoio ESG do mercado financeiro em âmbito global. Já a Carta de 2022, fortemente centrada no estímulo ao “capitalismo de stakeholders”, acabou sendo o pivô para a inversão da tendência. Ela foi alvo de pesadas críticas (i) dos acionistas das companhias norte-americanas, pelo fato de estar buscando promover o chamado “woke capitalism”, (despertar da consciência racial e social) e, com isto, prejudicando a lucratividade delas; e (ii) da ala liberal dos EUA (Partido Republicano), se transformando em “questão política delicada” no país.
Desafio: Será que as empresas no Brasil conseguem equilibrar as questões ESG de modo estratégico, isto é, para atender simultaneamente aos interesses das empresas e dos seus stakeholders? Diferente, portanto, do que ocorreu no início dessa década nos Estados Unidos, em que houve um exagero em querer atribuir funções sociais e ambientais para as empresas, indo contra a própria lógica do funcionamento corporativo.