Institutos e Fundações – Impacto na encruzilhada

Por on 07/10/2019

Acabo de ler o livro do Fábio Deboni, “Impacto na encruzilhada: inovação social, negócios de impacto e investimento social privado – caminhos e descaminhos” (Editora Aupa, 2019).  Recomendo a leitura a todos, tanto para quem é como para quem não é do setor social.  Afinal, hoje em dia impacto (social e ambiental) permeia todos os setores, seja o público, o empresarial e o não-lucrativo, não é mesmo?

Como o próprio autor aponta, a maioria dos capítulos vem de artigos seus que já foram publicados, muitos deles no site do GIFE. Provavelmente foram escritos no calor das emoções do pós-debate dos muitos eventos de que ele participou, e daí adveio o estilo não-linear dos capítulos (as ideias vão e voltam) e cheio de empolgação com o novo, com o que pode ser e não ser.  Sem falar que o Fábio tem uma maneira muito peculiar de escrever, que atrai por seu jeito fácil e leve de tratar temas sérios, de ser provocativo e crítico do status quo, porém de maneira madura, simpática e comprometida com as soluções.

Sob a perspectiva dos institutos e fundações no Brasil, Fábio Deboni discute as perspectivas do atual  modelo de investimento social privado adotado por essas organizações do terceiro setor, frente ao rápido avanço das inovações sociais e dos negócios de impacto. Ameaça ou reforço ao campo de atuação dos institutos e fundações?

A  seguir pontuo algumas das importantes questões para reflexão trazidas por Deboni,  que é gerente executivo do Instituto Sabin desde 2011, além de coordenar a rede temática de Negócios de Impacto no GIFE . Depois levanto algumas indagações.

Principais questões e dilemas levantados no livro

  1. Os institutos e fundações no Brasil realizam “investimento social privado”. Na maioria dos outros países do mundo, os institutos e fundações fazem “filantropia”. No fundo é a mesma coisa; é mais uma questão de preferência de terminologia.
  2. No Brasil há também clara preferência dos investidores sociais privados (sigla ISP, aqui considerados os institutos, fundações e também as áreas de responsabilidade social das empresas) por executarem os seus próprios projetos sociais, ao invés de fazerem doações (atuarem como grantmakers) para as organizações da sociedade civil (OSCs). Por que essas instituições continuam executando os próprios projetos? Dessa maneira, será que conseguem realmente contribuir para o fortalecimento da sociedade civil no país, como é o propósito delas? Não seria mais efetivo doar para OSCs e causas sociais, ao invés de manterem estruturas internas pesadas para gerirem os seus programas?
  3. No Brasil, o modelo mental dos institutos e fundações prioriza o apoio a organizações (OSCs) já estruturadas, formalmente constituídas e que atendem a determinados requisitos legais e organizacionais. Na realidade, esse modo de operar condiz com as suas estruturas burocráticas e de compliance para com os mantenedores. Não deveriam ampliar as suas doações para os  “desorganizados” (como são chamados os  movimentos sociais por direitos, os “coletivos” ) e as organizações comunitárias, em geral  menos estruturados e muito necessitados?
  4. Alinhamento ao negócio, ou filantropia estratégica. Tem prevalecido a lógica de atuação dos institutos e fundações em sintonia com as áreas de negócio das respectivas empresas mantenedoras. Com isso, não se estaria perdendo o foco e a força do atendimento nas necessidades da esfera pública, que é a sua razão de existir?
  5. De modo nenhum, os negócios de impacto podem ser percebidos como a “evolução da filantropia”. Também não faz sentido pensar que no futuro os empreendedores sociais vão concorrer com as OSCs pelo apoio dos investidores sociais. A complexidade dos problemas sociais e ambientais garante espaço para todos, ou seja, para uma atuação complementar e sinérgica entre  OSCs e negócios de impacto. Isto porque “há questões que são e continuarão sendo invisíveis aos radares do mercado, sobretudo aquelas que não geram boa rentabilidade”, como assistência social e defesa de direitos.
  6. Os projetos das OSCs devem ter impacto (socioambiental), relevância (fazerem a diferença para os seus públicos-alvo) e transparência (para os públicos envolvidos). Por sua vez, nos negócios de impacto, além desses três quesitos, os projetos devem necessariamente ter retorno econômico (lucratividade) e serem escaláveis.
  7. Os negócios de impacto precisam ser vistos como “uma nova ferramenta que veio se somar à caixa de ferramentas dos institutos e fundações”. Assim, há várias maneiras dos institutos e fundações apoiarem os negócios de impacto, conhecido como Venture Philanthropy (VP), ou filantropia de risco: (i) concessão e gestão de empréstimos, dívidas e outros instrumentos financeiros reembolsáveis; (ii) fortalecimento do ecossistema por meio suporte não financeiro, como voluntariado e networking; (iii) mensuração do impacto, que continua sendo desafio metodológico no campo social.
  8. Inovação social significa “apresentação de solução para um problema social, que seja mais efetiva, eficiente e sustentável na comparação com outras soluções existentes. Tanto pode ser um produto, um processo de produção ou uma tecnologia, um princípio, uma ideia, … ou uma combinação entre eles”. Assim, negócio de impacto é apenas uma das dimensões da inovação social, talvez a mais comentada hoje em dia. As outras dimensões podem ocorrer no nível das OSCs; dos investidores sociais privados (ISP); das universidades; empresas; governos; startups; e investidores (investidores-anjo e fundos de venture capital).  Por que, então, os institutos e fundações têm andado distantes das áreas de inovação (em geral) que estão surgindo sobretudo nas empresas, deixando de incluir aí  a agenda das demandas sociais?
  9. Nesse tempo de fortes mudanças, os institutos e fundações têm sido provocados a saírem de suas zonas de conforto, da posição central de grantmaker, de quem “dá as cartas” (“fundacentrismo”), para passarem a inovar, com vistas à geração de impacto social maior (o “impactocentrismo”). Há várias possibilidades para os institutos e fundações: (i) atuarem mais em rede, e não no modo individual com o foco nos próprios projetos; (ii) fomentarem “negócios de impacto periféricos”, isto é, dos  grupos da base da pirâmade – pois até  agora os negócios de impacto têm sido empreendidos quase que só por homens brancos, de classe média alta e de grandes centros urbanos; (iii) fortalecerem as organizações intermediárias do ecossistema dos negócios de impacto (as aceleradoras de impacto, as organizações de finanças sociais, de formação, de avaliação social, etc..) por meio de suporte financeiro e não-financeiro; e (iv) atuarem também, direta ou indiretamente, na aceleração de OSCs e cooperativas.
  10. Enfim, nessa encruzilhada, parece não não haver mais (para os institutos e fundações) a opção entre mudar e não mudar. “Para tempos complexos, as estratégias e ferramentas (desses investidores sociais privados) também têm que ser complexas”. A mudança se tornou um imperativo: cada organização, a seu jeito, deve procurar as próprias formas inovadoras de atuação social e de convivência com os negócios de impacto. Há que assumir riscos, fazer experimentos, até acertar.

Indagações (minhas) finais

Assim como Fábio Deboni, acredito que o momento atual seja bastante propício para que o terceiro setor como um todo, e em especial os institutos e fundações como líderes nesse segmento, façam a reflexão, tipo brainstorming, sobre as novas alternativas de atuação com vistas à potencialização do impacto social. Sem dúvida, o grande vetor de mudança foi a revolução na tecnologia de informação desses últimos 20 anos, possibilitando a entrada de tantos novos atores e instrumentos no cenário pró impacto social.

Porém, frente a tanta empolgação e às novas oportunidades que se abrem, uma boa dose de cautela é fundamental. Senão corremos o sério risco de desestruturar todas as conquistas até aqui, não apenas o que se tornou disfuncional como também o que funciona. Dentro dessa ótica da cautela, que também é a do autor, concluo essa resenha com as seguintes indagações:

  • No novo cenário do mercado financeiro tradicional ( em ebulição também), com novos atores e mecanismos surgindo, por que é preciso que os institutos e fundações comecem por financiar os negócios de impacto social? Se os negócios de impacto são empreendimentos lucrativos, eles podem captar recursos no mercado financeiro, como qualquer outra empresa faz em diferentes fases de sua vida. Por ora,  os institutos e fundações deveriam se concentrar naquelas funções/atribuições onde podem fazer melhor (para o impacto social) do que os demais atores.
  • Por que os institutos e fundações não deveriam começar por priorizar o suporte a OSCs de um espaço territorial delimitado? Ou  o suporte a empreendedores tradicionais da base da pirâmide desse território?  A atuação em rede dos institutos e fundações pode ser virtuosa no âmbito do território, as chamadas “iniciativas de impacto coletivo”, e naquelas áreas onde eles já tenham vantagens comparativas.
  • Por que os institutos e fundações não poderiam continuar atuando de forma alinhada com o negócio de suas empresas mantenedoras? Precisam inovar, sim, em suas estratégias – no “como” fazer, de modo a gerar o máximo impacto social possível . No caso dos institutos e fundações corporativos, a busca simultânea da eficácia pública e da eficácia privada pode gerar sinergias positivas para o impacto social, e há bons exemplos nessa direção.
  • Como sensibilizar e estimular no Brasil a cultura da doação das famílias ricas, por meio da formação de fundos patrimoniais (endowments)? Essa, sim, é uma  fonte de financiamento para a filantropia, ainda muito tímida por aqui e com elevado potencial de crescimento.
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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.