Nascimento de uma OSC: dores e desafios

Por on 16/04/2024

São inúmeros os casos de iniciativas surgidas em áreas de favela e de pobreza, que são organizadas pelas próprias comunidades por meio de suas lideranças, para buscarem, a seu modo, as soluções para os muitos problemas com os quais convivem no seu dia a dia.  Em geral são problemas que só vieram se agravando com o tempo nesses territórios, em razão sobretudo por não receberem a adequada atenção das políticas públicas (como é o padrão em áreas tidas como “nobres”), seja no campo da moradia, educação, saúde, saneamento, segurança, transporte, lazer, dentre outros.

É bem verdade que, vez por outra, essas iniciativas comunitárias contam com a boa vontade e o apoio dos governos (muitas vezes por razões políticas, para obtenção de votos), do setor corporativo (na medida em que essas áreas se tornam estratégicas para os seus negócios), e também daqueles indivíduos /famílias movidos por sentimentos de altruísmo e religião.  Mas o que as evidências têm mostrado no Brasil é que esses apoios  não têm tido a força suficiente para enfrentar de forma sustentável os muitos problemas sociais advindos de anos de pobreza e exclusão.

Desde o final da década 1990, o papel das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) vem ganhando reconhecimento no Brasil por sua condição de ator relevante de apoio ao Poder Público no combate às diferentes formas de pobreza e exclusão social. É o chamado Terceiro Setor, em oposição ao Primeiro Setor (Setor público) e ao Segundo Setor (Setor privado lucrativo). Vale aqui explicar o que se entende por OSC, Organização da Sociedade Civil que precisa atender simultaneamente a 5 requisitos básicos, a saber: (i) ser privada; (ii) sem fins lucrativos; (iii) ser de interesse público; (iv) ser formada pelo livre interesse de associação; e (v) ser legalmente constituída.

Será que as organizações de base comunitária, a que me referi no parágrafo inicial, atendem a todos esses requisitos para serem, de fato, consideradas como uma OSC (Organização da Sociedade Civil)?

A resposta é não. Muito embora, na maior parte das vezes elas tenham sido legitimamente constituídas dentro de suas comunidades para enfrentar os graves problemas da pobreza e exclusão social. Sendo que elas entendem (melhor do que ninguém) desses problemas, porque convivem de perto com eles. Porém, a grande maioria desses coletivos e organizações comunitárias não atendem ao (último) requisito de “serem legalmente constituídos”; sendo, portanto, considerados como “informais”.

E qual a consequência de não poder ser considerada uma OSC – ou seja, atender a 4 requisitos básicos necessários, mas deixar de atender ao requisito de ser legalmente constituída?

Não ter o status de OSC significa que a organização não tem legitimidade  para, na maior parte das vezes, representar os interesses da comunidade  junto aos entes públicos e privados legalmente constituídos, e buscar apoio junto a eles. E isso porque, na maior parte das vezes, a primeira exigência que é feita para começar a estabelecer o diálogo com esses entes da esfera formal  é a organização possuir (também) a sua identidade legal, isto é, o seu CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). Daí, a consequência é que a organização se vê incapacitada para acessar boa parte do estoque de recursos disponíveis para apoiar as organizações do terceiro setor, em termos de recursos financeiros, apoio técnico, capacitações, visibilidade e parcerias.

Se queremos, e precisamos, ter um Terceiro Setor fortalecido no Brasil, o primeiro passo é criar as condições para o nascimento de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) saudáveis e preparadas para vencerem os desafios dos seus primeiros dois anos de vida.

Nascimento de uma OSC: quais as dores do parto e da primeira infância?

Por “nascimento de uma OSC” estou me referindo à conquista da identidade legal (do CNPJ e do direito de ter uma conta bancária) por uma organização que (já) era privada, sem fins lucrativos, de interesse público ( ou de impacto social) e livremente constituída. Ou seja, o “nascimento” seria como que a formalização desse tipo de iniciativa social – que passa, então, a possuir os 5 critérios necessários para ser (finalmente) tratada como OSC (Organização da Sociedade Civil) .

Dito em sentido figurado, uma OSC pode nascer em vários berços. Menciono a seguir 3 tipos de berços, embora possam existir outros mais, que são:

  1. Em berço de ouro, quando o seu fundador tem (ele próprio) ou como acessar os recursos suficientes (financeiros, humanos, técnicos, conhecimentos, networking,…..)  para bancar as necessidades do “parto” e dos dois primeiros anos de vida (primeira infância) da organização;
  2. Em berço da comunidade, quando o seu fundador é uma liderança da comunidade com atuação social já reconhecida no território e muito baseada em voluntariado e em sua rede de contatos dentro e fora da comunidade. Porém, o fundador não tem recursos suficientes para bancar as necessidades do “parto” e dos dois primeiros anos pós-legalização. Nessas situações, é comum relatos de experiências antigas, de partos anteriores ou de “primeira infância”, de OSCs que foram mal sucedidas;
  3. Em berço da comunidade, quando o seu fundador é nascido na comunidade porém não representa uma liderança local, mas tem expertise (conhecimentos e contatos) em sua área de atuação. Também aqui, o fundador não dispõe de recursos suficientes para bancar as necessidades do “parto” e dos dois primeiros anos pós-legalização.

Não vou me referir nesse artigo à situação (1). Vou me ater às situações (2) e (3), que dizem respeito ao nascimento da OSC em um “berço da comunidade”. Nesses casos, as dores do “pré-parto, do parto e da primeira infância” são enormes, a ponto de, na maior parte das vezes, prejudicar e até mesmo estrangular o trabalho social que antes era desenvolvido em pequena escala e de modo informal, baseado sobretudo em doações e no voluntariado locais.  Senão, vejamos algumas dessas dores relatadas por alguns fundadores de OSCs nascentes:

Legalizar se tornou (quase) uma imposição para as organizações de base comunitária:

  • “Se a organização não tem conta bancária, como vou conseguir captar doação? O dinheiro vai entrar na minha conta pessoal? Quem vai querer doar (para o meu nome)? Nenhuma empresa vai querer.  E o pior, caso as doações venham a aumentar (no meu nome), o que seria bom para a organização, mas o fato é que daí a pouco vou acabar tendo problemas com a Receita Federal…. “(Fundador X)
  • “Tenho uma vontade grande de a organização poder prestar muito mais serviços à comunidade do que vem fazendo – e isso seria possível, sim! Vejo que a nossa organização poderia fazer muito mais (do que faz atualmente), e muito melhor!  Para isto, eu teria que ter tempo. Porém, muito infelizmente não posso me dedicar a ela integralmente, como eu deveria. Tenho que dedicar boa parte do meu tempo ao meu trabalho remunerado, que é o que garante o meu sustento e o da minha família”. “Outro sonho (que eu tenho) seria eu poder pagar uma pessoa para me ajudar diretamente com a organização. Não ficar só dependendo de parcerias…..”(Fundador Y)
  • “Ficar na dependência de governo não é nada bom. Às vezes, o dinheiro entra. E depois não entra mais. Tem momentos que a parceria não funciona. Não há segurança assim para desenvolver um projeto social com continuidade, de assumir compromissos com as pessoas da comunidade….” (Fundador Z)
  • Depender do governo é muito ruim. Porque dependendo da pessoa e do partido político que estão no governo, a gente consegue estruturar um bom trabalho, que vai de vento em popa. Porém, de uma hora para outra, muda o governo, e todo o nosso trabalho desmorona. Isso representa uma quebra de confiança e de expectativa com as pessoas que estávamos atendendo…” (Fundador N)
  • Se a organização não tem cnpj – e de preferência no mínimo há 2 anos, ela não consegue sequer se inscrever em cursos de capacitação de gestão,  os chamados “programas de aceleração de OSCs”, ou em “plataformas voltadas para a transformação digital de pequenas OSCs” .   “ E se a organização não progride, não melhora, ela vai ficar o tempo todo estagnada, vivendo ao sabor de alguns recursos que ora entram, ora não” (Fundador W)

Porém, legalizar é caro, complexo e com uma série grande de exigências a serem atendidas.

  • Há um sentimento de estar tateando no escuro, sem saber qual a direção certa seguir ou que tipo de ajuda procurar. Sim, sabemos fazer muito bem o que a comunidade precisa. Da atividade-fim, a gente entende!”(Fundador M)
  • “Se a organização vive numa escassez constante, quase uma situação do ´Eu-comigo`, como conseguir dinheiro e orientação ( de advogado e contador) para elaborar Estatuto Social adequado, montar os Conselhos e Diretoria executiva, resolver problemas de cartório e registro na Receita Federal (CNPJ), abrir conta bancária, etc….Chega a ser uma situação ´surreal`, pois foge à realidade do dia a dia da organização a que estamos acostumados”…. (Fundador N)

Tão logo a organização esteja legalizada, as dificuldades e obrigações da “primeira infância” surgem aos montes e parecem intransponíveis

  • “Para além do que já fazemos na comunidade (atendendo as pessoas e conseguindo doações no entorno), vamos ter que pagar agora o contador todo mês, pois virou obrigatório o envio regular de relatório mensal de prestação de contas para a Receita, senão lá vem multa para a organização. A gente já vai começar devendo…. E isso foi só um exemplo. Muita burocracia pela frente, que teremos que atender.”. (Fundador L)
  • “Já me disseram que será preciso fazer o que chamam de planejamento estratégico da organização, criar site e redes sociais (o instagram até já tínhamos!), e preparar um tal de plano de captação de recursos. Pra dar conta de tudo isto, vou ter que estudar, me capacitar para me aprofundar sobre esses temas, que até então praticamente não sabia nada….. Também vou acabar precisando de gente especializada na equipe! Aliás, vejo que agora a organização vai precisar de ter uma equipe (que não tinha até então), por menor que essa equipe seja no início. Não dá mais para ficar dependendo só de trabalho voluntário. E evidentemente vou ter que pagar às pessoas da equipe para poder ter o comprometimento delas – e nem que seja com “ajuda de custo”. Pagar via e-social só mesmo daqui a muito tempo….” (Fundador J)
  • Muitas vezes para conseguir algum tipo de capacitação gratuita ou doação financeira, a exigência é comprovar que já estamos formalizados há pelo menos 2 anos e com uma estrutura administrativa que já funciona. Eu até entendo: o doador quer garantir que a sua doação não será perdida, quer ajudar quem (a organização) minimamente preparada para receber a ajuda. Só que a nossa organização ainda não conseguiu chegar nesse ponto. É muito difícil mesmo, bate um desânimo, penso até em voltar atrás, à estrutura pequena de antes, vivendo basicamente de caridade, que fazia pouco, mas fazia….”  (Fundador K)
  • Penso que se a organização teve que ser formalizada – gerando essa trabalheira toda e tantas novas despesas para a manutenção da organização, isso tem que valer a pena. Temos que conseguir beneficiar cada vez mais pessoas e famílias das comunidades, e não só isso: realmente conseguir transformar as vidas dessas pessoas atendidas, dar a elas as oportunidades que lhes foram negadas até aqui”. Fundador V)

OSCs nascentes: como enfrentar os primeiros desafios?

Inicialmente, para entender e começar a trilhar os desafios relacionados ao “nascimento” propriamente de uma OSC, recomendo a leitura do Guia Lupa do Bem: Como Começar uma ONG (Sherlock Communications, 2024). De modo bastante prático e didático, o Guia introduz os diferentes conceitos atualmente adotados no terceiro setor, e logo em seguida apresenta o passo a passo sobre como fazer a abertura de uma OSC.

Outras duas sugestões, a título de capacitação gratuita e on-line em questões relevantes dessa área ( como criação de OSCs; elaboração / gestão / avaliação de projetos sociais; mobilização de recursos; teoria da mudança; voluntariado;  leis e incentivos; engajamento / gestão de voluntariado;  contabilidade; finança; dentre outras) são os cursos da Escola Aberta do Terceiro Setor e o Portal do Impacto. A Escola Aberta é constituída por cursos curtos e ministrados por profissionais experientes nos temas que abordam. Já o Portal do do Impacto, desenvolvido pela Phomenta, apresenta e-books, podcasts e artigos com análises de especialistas sobre diferentes temas no campo do terceiro setor.

Porém, é preciso ter claro que conquistar o status de OSC não representa garantia de uma organização do terceiro setor madura, bem estruturada e com um trabalho social efetivo. Basta ver que dentre o total das 815 mil OSCs existentes no Brasil, segundo o último levantamento disponível do Mapa das OSCs (IPEA,2021), apenas 10,3% delas tinham vínculo formal de trabalho (isto é, colaborados contratados com base no e-social).  Isso denota o quão fragil ainda é a situação da  gestão nas organizações do terceiro setor no Brasil.

O Mapa das OSCs surgiu no Brasil em decorrência de uma imposição legal (Lei 13.019 / 2014), mas, a meu ver, com potencial para se transformar em uma vitrine (plataforma virtual ) efetiva e gratuita para todas as OSCs no país. Isto porque, por lei, vários orgãos do Poder Publico Federal (a começar, por exemplo, pela Receita Federal) são obrigados a publicar informações sobre o universo das OSCs. Porém, o que me chama a atenção é o baixo grau de preenchimento pelas OSCs das informações a serem inseridas de modo voluntário no Portal  (Mapa das OSCs: a organização deve mesmo entrar com os seus dados nesse Portal?). A meu ver, isso revela que, de modo geral, as nossas OSCs ainda não estão devidamente estruturadas internamente, pois elas estão perdendo uma oportunidade (concedida pelo Poder Público) valiosa de darem visibilidade ao trabalho que realizam e de conquistarem parcerias.

Mas, sem dúvida alguma, conquistar o status de OSC representa o primeiro passo para desenvolver um trabalho de impacto social sério em paralelo com as políticas públicas. O que é importante é buscar ter o máximo de clareza possível para começar a enfrentar os desafios de gestão da OSC que forem surgindo após o seu “nascimento”.

Nesse sentido, recomendo a leitura do livro de João Paulo Vergueiro, Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil (Ed. Senac, 2023), com orientações práticas e objetivas sobre o que uma OSC deve fazer para se tornar sustentável economicamente. Evidentemente cada OSC deve fazer a leitura do livro compatível com o seu estágio de vida e a sua situação específica. Considerando uma OSC que esteja vivenciando a sua primeira infância, eu destacaria os seguintes pontos que estão abordados no livro.

FONTES DE CAPTAÇÃO DE RECURSOS – As principais fontes de recursos para as OSCs são (capítulo 2):

  • Recursos públicos – JP Vergueiro afirma que “já que as OSCs atuam com causas sociais de interesse público, é natural que um dos principais financiadores seja a administração pública. Governos em todo o mundo são parceiros estratégicos e financiadores de instituições sem fins lucrativos, e o Brasil não pode ser exceção”. Assim, ter essa clareza já  responde a uma das (ou váriás das) dores pré-nascimento da OSC, que é (como vimos acima) a de ter o sentimento de que com a legalização, a organização “vai poder se livrar da dependência dos governos”.

Ou seja, o importante a reter é que, pela própria natureza das atividades que as OSCs realizam, isso não vai ocorrer. O desafio será, portanto, equacionar instrumentos para acessar os recursos públicos, e compreender as limitações e potenciais deles. O livro apresenta algumas delas: Termos de Parceria; Termos de Fomento; Emendas Parlamentares; Multas pecuniárias; Termos de Ajustamento de Condutas (TACs); e Outras possibilidades, como doações de bens e terrenos.

  • Geração de renda – Por meio de (i) Vendas (Realização de Bazar beneficente, Loja social, Licenciamentode marcas e Eventos); (ii) Prestação de serviços (ou consultoria);
  • Receitas provenientes de Patrimônio Próprio (rentabilidade de Fundos patrimoniais, dividendos de Ações e royalties, aluguel de Imóveis);
  • Recursos privados (ou Doações) – Diferente das outras fontes acima, a sua vantagem é ser uma  transferência de recursos sem a obrigatoriedade de contrapartida. As doações podem ser provenientes de (i) Indivíduos e famílias; (ii) Empresas; e (iii) Outras OSCs
  • Outros recursos – Que podem ser provenientes de: (i) Organismos bilaterais e Agências de Cooperação Internacional; (ii) Embaixadas e Agências de Cooperação; e (iii) Igrejas.

PRINCIPAIS TÉCNICAS DE CAPTAÇÃO – Estão mencionadas no capítulo 3 do livro, a saber:

  • Editais e elaboração de projetos / propostas – No Brasil, a principal plataforma citada para a divulgação dos editais é a da Prosas.
  • Plataformas de financiamento coletivo (ou crowdfunding) – No Brasil, as principais são: Vakinha; Benfeitoria; Kickante; e Catarse.
  • Eventos para captação – Realizar eventos do tipo: rifas; de bebidas e comidas; shows; de atividades esportivas, etc…
  • Captação on-lineAtravés de: (i) Página na internet (site) da organização; (ii) Redes sociais, como Instagram, Facebook e WhatsApp; (iii) Envio de e-mails (iv) Parceria com empresas terceiras especializadas, para que as doações sejam recebidas por meio dessas terceiras, como Doare, Paypal e PagSeguro (nesse último, um exemplo com a aba para doação);
  • Telemarketing (por telefone), mala direta (cartas impressas), e diálogo (abordagem) direto em ruas e locais de grande movimentação.

JP Vergueiro atribui papel central aos sites para a captação de recursos. Nas palavras dele, “o site (página) da instituição na internet é a porta de entrada para a sua comunidade. É nele que estão disponibilizadas todas as informações importantes e completas da organização, como a sua missão, seus projetos, suas atividades, sua equipe, seus relatórios anuais, etc… É também no site que está o ´botão de doações`, um dos principais meios de aquisição de novas doações e doadores – por isso, é necessário que esteja visível e à disposição de todos que acessarem a página”.

Por outro lado, a meu ver,  as técnicas de telemarketing /mala direta e diálogo direto estão  tendendo a se tornar cada vez mais desacreditadas. Isto porque as pessoas acabam se sentindo bombardeadas por pedidos de ajuda para OSCs que elas mal (ou nada) conhecem, e isso resulta de imediato em um sentimento de má vontade e desconfiança grande para com essas organizações vistas como “pedintes”.  Já as  técnicas de captação on-line, pelo contrário, tendem a estimular atitudes proativas nas pessoas, que passam a buscar a internet para conhecer as OSCs e, possivelmente, doar para elas.

PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO –  A meu ver, o planejamento estratégico da OSC representa  a espinha dorsal do funcionamento da instituição como um todo. Embora no livro (e possivelmente em razão do escopo dele, que é a sustentabilidade econômica das OSCs), a abordagem do planejamento estratégico tenha ficado bastante limitada a embasar e delimitar o plano da captação de recursos (capítulo 4).

Como sintetiza JP Vergueiro, o planejamento estratégico “permite que as instituições identifiquem aonde querem chegar, como traçar esse caminho e o que é preciso para garantir o sucesso da trajetória ……  Ajuda a definir a missão, a visão e os objetivos gerais da instituição, além de proporcionar a construção de orçamentos, o levantamento de recursos necessários, prazos, etc…

COMUNICAÇÃO DE RESULTADOS E PRESTAÇÃO DE CONTAS – Não raras vezes, quem atua em OSCs tende a achar que “o que a mão direita faz, a esquerda não precisa saber”. Ou seja, que devemos ser o mais “low-profile” possível quando se faz o bem. Porém, JP Vergueiro é firme em reforçar que as OSCs “fazem parte e se financiam com recursos da própria sociedade. Por isso, elas devem, sim, estar em constante comunicação com a sociedade, fazendo-se conhecidas e apresentando o impacto de seu trabalho” (cap.5.)

Uma das formas de comunicação de uma OSC se dá por meio da prestação de contas das atividades que realiza e dos resultados alcançados a partir delas. Ao agir dessa maneira, a instituição está tomando uma atitude de transparência e abertura, com efeito direto e positivo no fortalecimento da sua sustentabilidade econômica (cap.6). Dentre os principais instrumentos são citados no livro:

  • O Relatório de Atividades é tido como “o documento máximo que expressa a prestação de contas”. Deve ser publicado anualmente, e ficar disponível no site da OSC.
  • Prestação de contas para investidores – para além do Relatório de Atividades, cada financiador pode ter o seu modelo e as suas regras sobre como gostaria de receber o retorno da OSC financiada.
  • Prestação de contas para o poder público – Diferente do que ocorre quando o investidor tem origem privada, em relação ao investidor público não há flexibilidade na prestação de contas, e deve ser seguido o que é determinado pela legislação existente. A principal norma que regulamenta a relação entre a administração pública e as OSCs é a Lei 13.019, de 2014, conhecida como o Marco Regulatório das OSCs (MROSCs). Inclusive vale lembrar que o Mapa das OSCs, comentado anteriormente, teve origem a partir dessa Lei.

FERRAMENTAS DE TRANSPARÊNCIA – Hoje em dia as OSCs têm sido cada vez mais cobradas por transparência no seu dia a dia – seja na sua relação com a administração pública, com empresas ou mesmo com doadores individuais (cap. 7). No Brasil, as principais iniciativas e ferramentas disponíveis para as OSCs que “buscam o caminho da transparência e, com isso, a sua independência financeira” são:

  • Página na internet (site) – Representa o principal veículo de transparência de uma OSC, pois é no site que “qualquer pessoa pode encontrar as informações necessárias para conhecer a organização mais detalhadamente e aumentar a sua confiança na instituição, ampliando inclusive a possibilidade de doar recursos para ela”.

Principais componentes que um site deve conter: Missão, visão e valores; Conselhos e Diretoria; Equipe; Estatuto Social; Atas; Relatório de Atividades; Documentos contábeis; Formulário de contato; Endereço da organização; Midias sociais; Acessibilidade.

  • Selos de transparência e gestão – Funcionam como uma garantia de “credibilidade” para as OSCs que são laureadas com esses selos, pelo fato de terem sido avaliadas e certificadas por instituições terceiras independentes e com metodologia própria. No Brasil o Selo Doar é um bom exemplo.

O Selo Doar é concedido pelo Instituto Doar, organização criada em 2012, e que também lidera o Prêmio (anual) das Melhores ONGs no Brasil. Para obter o Selo Doar (versão 2024-2027), a OSC “deve pontuar em em pelo menos 34 do total dos 41 critérios que são avaliados pela equipe do Instituto Doar em 9 dimensões, que são: Causa e estratégia; Governança; Contabilidade e Finanças; Gestão; Recursos humanos; Estratégia de financiamento; Comunicação; Prestação de contas e transparência; e Agenda 2030. As OSCs que alcançarem de 34 a 41 pontos, recebem o Selo Doar A; e as que pontuarem de 38 a 41 pontos recebem o Selo Doar A+.

Recomendo o exame cuidadoso da publicação Critérios do Selo Doar, versão 2024-2027.  Não que as OSCs em estágio nascente devam buscar atender a todos esse critérios. Longe disso, mas a explicitação aí contida dos 41 critérios segundo as 9 dimensões devem servir como um checklist para guiar essas OSCs em sua trajetória de amadurecimento institucional sempre com o seguinte questionamento: em relação a esse critério, o que a nossa OSC já está fazendo ou planejando fazer?

Agora em 2024, com o intuito já mais abrangente de apoiar diferentes tipos de organizações na área social,  o Instituto Doar passou a se chamar Certificadora Social e criou o Selo Transparência (10 critérios) e o Selo Ong Verificada (apenas 3 critérios).

Só agora lendo o livro do JP Vergueiro é que tomei conhecimento da publicação do Guia de Indicadores da Vitrine de ONGs para o Terceiro Setor (Instituto Liga Social, 2021). Considero esse trabalho um avanço importante na direção da construção e compartilhamento dos indicadores sociais para as OSCs no Brasil.

O Guia contém 450 indicadores, devidamente validados por especialistas e OSCs-referência no Brasil, distribuídos segundo 8 áreas temáticas: Trabalho e renda; Educação; Esportes; Fortalecimento institucional; Desenvolvimento territorial; Cultura e Arte; Defesa de direitos; e Saúde. O objetivo do Guia é o de “disponibilizar um conjunto de incidadores que auxiliem as ONGs atuantes em diferentes áreas, tanto (i) em seus processos internos do monitoramento de suas ações, quanto (ii) na divulgação de informações relevantes sobre seus projetos e alcance, facilitando o entendimento e acompanhamento por parte de seus parceiros, doadores e sociedade” (Guia, p11 ).

Por sua vez, e como bem enfatiza JP Vergueiro, a seleção dos indicadores para uso em cada OSC deve levar em consideração “3 critérios: relevância do indicador (para o seu trabalho); facilidade de compreensão; e possibilidade de ser coletado com precisão e regularidade”.

Vencido esse desafio da disponibilização de um cardápio abrangente de indicadores para as OSCs no país, vejo que os próximos e urgentes desafios serão:

  1. Ampliar ao máximo a divulgação dessa ferramenta do Guia para a grande maioria das OSCs (veja que até hoje, eu mesma não sabia de sua existência!);
  2. Digitalizar as bases de dados das OSCs, sem o que o levantamento das informações (para a construção dos indicadores) se torna praticamente inviabilizado.  Em relação a esse 2º desafio, sugiro visitar o site do Hub do Bem, que tem uma proposta interessante e necessária de apoiar as pequenas ONGs no Brasil em seu processo de transformação digital.

Considerações finais

Vimos que o “nascimento” de uma OSC, gerada a partir de uma organização de base comunitária, busca tratar as muitas dores da etapa “pré-formalização”, e realizar o sonho de fortalecer as atividades já conduzidas pela organização e de ampliar a sua capacidade de fazer o bem.  Porém, a nova etapa do “pós-formalização” também virá carregada de novas (e diferentes) dores e desafios, que precisarão ser equacionados com disciplina e obstinação.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.