Por ‘formalização de uma organização`, seja ela do terceiro setor ou do setor privado lucrativo, entenda-se o processo de obtenção de um CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), que é o seu número de identificação junto à Receita Federal; dessa forma, a organização passa a ser considerada como oficialmente registrada no país. Normalmente esse processo leva em torno de 6 meses a 1 ano, sendo necessário formalizar a criação da organização (Ata de Fundação), aprovar o seu Estatuto Social, eleger Conselhos e Diretoria, fazer o registro do Estatuto em Cartório, obter alvará de funcionamento junto à Prefeitura e, só ao final, entrar com a solicitação do CNPJ junto à Receita Federal.
Assim, vencida essa etapa de formalização, que em si já implica em custos e apoio especializado (de escritório de contabilidade ou de advocacia), a organização passa a gozar de direitos e benefícios, que vão viabilizar e ampliar significativamente a sua capacidade de atuação. Isto porque a organização / empresa passa a poder emitir notas fiscais, abrir contas bancárias, contratar colaboradores com carteira assinada, participar de licitações públicas e de editais, além de passar uma imagem de credibilidade. Por outro lado, essas vantagens vão também implicar em deveres e mais custos para a organização, como, por exemplo, ela começa a ter obrigações fiscais, do tipo ter que apresentar regularmente balanços financeiros e pagar alguns impostos.
Dado esse contexto, será que haveria um momento adequado (ou ideal) para uma organização do terceiro setor no Brasil se formalizar?
Faço esse questionamento a propósito de uma situação real que presenciei recentemente, e que sintetizo a seguir usando nomes fictícios.
Um Centro Social XPTO já vinha atuando há 15 anos em uma comunidade de baixa renda encravada em pleno centro urbano. Inclusive tinha uma atuação bastante ativa naquela comunidade, oferecendo reforço escolar no contraturno da escola para crianças e adolescentes, oficinas de esporte, ensino profissionalizante aos jovens, apoio às famílias mais vulneráveis por meio de cestas básicas e medicamentos. Alguns pré-requisitos, que garantiam esse “bom” funcionamento, eram:
- Havia um sentimento muito forte de pertencimento do Centro Social à comunidade. XPTO tinha uma relação muito estreita no seu dia-a-dia com a Associação de Moradores. Sem falar que todos as famílias da comunidade se sentiam no dever de ajudar e contribuir quando necessário. Viam como uma ajuda de mão dupla, pois o Centro Social estava sempre muito presente para ajudar nas dificuldades que os moradores enfrentavam.
- A casa onde o Centro funcionava havia sido abandonada há muito tempo. A luz, água e internet usados eram via “gato” (tipo clandestino); aliás, sistema bastante usual naquele local. O Centro Social contava sempre com doações de objetos e utensílios dos moradores da comunidade como também dos vizinhos “do asfalto”, pois todos (daquele entorno) se sentiam comprometidos com aquele espaço, e se mostravam solícitos em ajudar.
- O fundador e dirigente de XPTO era um líder comunitário nato. Impressionava a quem o acompanhasse em suas caminhadas constantes pela comunidade: conhecia cada morador pelo nome, sabia de sua vida e de suas necessidades. E mais: ele tinha uma ligação estreita com a Paróquia próxima, e também com as lideranças de outras comunidades e de órgãos públicos nas áreas de saúde, educação e assistência social, com isto abrindo portas para ele conseguir doações, parcerias e diferentes tipos de ajuda.
- Para o fundador, o Centro Social sempre representou o seu trabalho voluntário, pois ele tinha um emprego fixo que lhe garantia uma renda para sustentar a si e à sua família – e, mais importante ainda, lhe permitia tempo disponível para a sua atuação no Centro Social, sendo que havia certa complementaridade entre ambos os trabalhos.
O que ocorre é que, há um ano e meio atrás, esse “equilíbrio” no funcionamento do Centro Social XPTO se rompeu. De repente, o “nosso” líder comunitário ficou desempregado, e passou a ter que correr atrás de um novo emprego e a fazer bicos para poder se sustentar e à sua família. E, como se não bastasse, por razões políticas, uma parceria importante que o Centro Social tinha junto à Prefeitura (que cedia professores para várias das atividades com as crianças e adolescentes) foi também extinta de uma hora para outra.
Foi quando o Centro Social pareceu estar seriamente correndo risco de continuidade. Aliás, chegou mesmo a interromper algumas de suas iniciativas, e só estava podendo dar sequência àquelas que eram conduzidas por voluntários compenetrados de sua missão social.
Pouco depois, o nosso fundador conheceu uma “senhora idealista”, que ele denominou por “madrinha”. Aliás, termo que ele já vinha adotando para os benfeitores do Centro Social. A tal senhora se dispôs a financiar a “formalização” do Centro Social, e depois a arcar com o montante das despesas estimadas para a manutenção do 1º semestre pós formalização, que foi distribuído em parcelas mensais.
Ou seja, esse montante doado veio com a finalidade definida de pagar as chamadas “ajudas de custo” para garantir a disponibilidade e dedicação do Fundador/Dirigente, do contador, e de algumas outras poucas pessoas para apoiá-lo no (agora!) Instituto; de elaborar um site e instagram; e (agora com as devidas regularizações feitas!), pagar as primeiras contas de aluguel, internet, água, luz e a manutenção da conta bancária de XPTO (que havia sido aberta). A intenção era a de que, durante esse período inicial, o Instituto se preparasse e se organizasse para começar a mobilizar recursos junto a empresas e instituições do entorno (valendo-se dos contatos e do networking que o Fundador já detinha), de modo a poder se estruturar e, mais adiante, conseguir participar de outras formas de mobilização de recursos, como editais e licitações públicas.
Será que essa estratégia, a da formalização do Centro Social XPXTO (agora Instituto XPTO), foi acertada?
Olhando hoje em retrospecto, tendo a considerar que não. E por quê?
Primeiro, e aqui falando em sentido figurado, porque o nosso Fundador era o “maestro de uma orquestra” que funcionava à moda antiga, isto é, muito baseada em caridade, benevolência, voluntariado, ajuda e favor. Durante todos esses 15 anos, foi sempre tida como uma “orquestra” com um bom trabalho social no território – e certamente o fator-chave para esse bom desempenho esteve sempre associado ao carisma, generosidade e proatividade do seu “Maestro”.
Segundo, quando de repente as circunstâncias de funcionamento dessa “Orquestra” mudaram, de imediato se supôs que a melhor estratégia seria dar um upgrade no seu formato jurídico (de ‘sem cnpj`para ‘com cnpj`). Dessa forma, se conseguiria equipar a organização para atender às novas exigências dos doadores “do asfalto” e, então, retomar o ritmo perdido do trabalho social da organização.
Terceiro, na prática o que ocorreu foi que o tempo para a adaptação à nova condição de formalizada (dos 6 meses) se esgotou, e a estrutura de funcionamento da “Orquestra” não chegou a se alterar, e permaneceu baseada sobretudo em favor, boa vontade e ajuda (do “faz quando puder”). Possivelmente até tenha piorado, porque passaram a conviver lado a lado na “Orquestra” pessoas remuneradas com outras não-remuneradas.
Quarto, uma possível explicação para essa prevalência da estratégia antiga é a de que o tempo de adaptação teria sido curto, e não sido suficiente para mudar a mentalidade (mindset, em inglês) da “Orquestra”, para um padrão mais moderno e ágil de gestão, guiado por requisitos tais como planejamento estratégico, busca por capacitação, sistematização dos dados e uso de softwares. Alguns passos até chegaram a ser dados nessa direção, por meio de encontros orientados para fazer o planejamento estratégico, de sugestão de cursos online, sites e leituras, mas que não conseguiram obter o alcance desejado.
Enfim, passado esse período de adaptação, inicialmente estipulado em 6 meses, o que se contata é que a “Orquestra” pouco (ou quase nada) avançou na direção de sua nova condição de “formalizada”, de modo a poder fazer uso das vantagens que a nova condição lhe propicia e também de poder arcar com os novos custos e obrigações advindos. Em outras palavras, XPTO não usufrui das benesses da formalização e, o pior, ainda precisa bancar os novos custos.
Considerações finais
Atualmente o terceiro setor no Brasil é bastante diverso e complexo, constituído dos mais diferentes tipos de organizações sem fins lucrativos, que tanto podem ser informais (sem cnpj) como formais (com cnpj). O primeiro grupo engloba de modo genérico as ONGS (Organizações Não-Governamentais), aí incluídos os coletivos e as organizações de base comunitária – como era o caso do Centro Social XPTO. No segundo grupo estão as chamadas OSCs (Organizações da Sociedade Civil), ou uma parte delas – as que são voltadas para o bem público sob a forma de Fundações, Institutos ou Associações.
O caso aqui relatado nos leva a refletir sobre duas questões importantes em termos de formalização das organizações sociais. Primeiro, dependendo das especificidades de cada contexto e das condições dadas, uma organização do terceiro setor pode funcionar muito bem tanto de modo informal como formal, e conseguir gerar bons resultados para o seu público beneficiário – como foi o caso de XPTO durante quinze anos. Pode até ocorrer que, dependendo dessas circunstâncias, é preferível que a organização funcione como informal do que formal. Pois ser uma organização formalizada não necessariamente é pré-condição para um trabalho social efetivo. Fica a provocação.
Segundo, vimos que fazer essa transição do informal para o formal não é trivial, como tão bem evidenciou o nosso estudo de caso. Não se trata simplesmente de adquirir um registro de CNPJ. Ficou claro que atender a determinados pré-requisitos de maturidade da organização se mostra imprescindível para garantir que essa transição seja bem sucedida. Precisamos, pois, aprofundar sobre quais são esses requisitos de maturidade organizacional.