Confiança na Filantropia – que conceito é este?

Por on 05/05/2022

De três anos para cá a discussão sobre confiança na filantropia entrou em evidência. Em 2020, fiz uma reflexão sobre se as doações deveriam ser guiadas por projeto ou por confiança, inspirada em webinar sobre esse tema organizado pelo Synergos / Brasil com o GIFE. No início de 2021, fiz outro texto comentando sobre o modo da (super bilionária) Mackenzie Scott fazer filantropia: uma vez feita a escolha criteriosa da organização, ela dá total liberdade à organização receptora para aplicar os recursos recebidos, pois ela já tem confiança na organização.

Ontem (03.05.2022) tive a oportunidade de assistir ao evento organizado pela ponteAponte  sobre como abordar de forma prática o conceito da confiança na filantropia. O evento constou do lançamento da versão brasileira do artigo “Confiança na filantropia: uma ferramenta de acompanhamento e autoavaliação” criada pelo Philanthropy.Insight Project na Maecenata Foundation (Alemanha). O webinar constou da introdução feita por um dos autores do estudo, Ralf Alter, seguida da apresentação da ferramenta por Luisa Bonin, pesquisadora brasileira convidada na Maecenata Foundation que foi responsável pela tradução do artigo e, por último,  tivemos os comentários de especialistas brasileiros convidados.  

Como está explicado no referido artigo, o objetivo da ferramenta, chamada de Ferramenta de Avaliação da Philanthropy-Insight (FAPI), é gerar um conceito abrangente de filantropia baseado na confiança. Ou seja, é disponibilizar para as organizações filantrópicas uma maneira para elas se avaliarem e avaliarem o seu trabalho em relação a uma série de princípios e qualidades que caracterizam a filantropia baseada na confiança.

Para os autores da metodologia, a construção da confiança é condição central para se criar um novo ecossistema de filantropia, capaz de desenvolver todo o potencial das doações. Pois só boas intenções das instituições não são suficientes para captar a confiança dos doadores. Difícil para conquistar e fácil de perder, o que se pretende com a metodologia é inaugurar a confiança como elemento central da ação filantrópica, o que requer “aliados” fortes e competentes, de modo a passar das “meras promessas de salvação à representação autêntica da ação filantrópica”.

Nesse estudo na Maecenata Foundation, o referencial (framework) proposto para conceituar a confiança na filantropia é decomposto segundo  5 princípios ou critérios, sendo 3 deles relacionados à robustez das intenções [ os critérios de Comprometimento, Propósitos públicos, e Relevância]; e 2 à robustez  da competência –  Performance e Accountability.  Cada um desses 5 princípios é aberto em 3 qualidades  (tabela abaixo) que, por sua vez, também são decompostas em 3 perguntas cada uma. Em última instância, o conceito de confiança na filantropia acaba sendo tangibilizado por meio de  45 perguntas.

As organizações filantrópicas não operam isoladamente. Daí que em relação ao modo de operar delas, a metodologia definiu  3 dimensões para o lócus de atuação da confiança: dentro da própria organização filantrópica (intraorganizacional); entre as organizações do sistema filantrópico (interorganizacional); e da confiança entre os 3 setores – público, privado e terceiro setor (intersetorial).

Comentando  a metodologia da Maecenata Foundation…..

Fazendo aqui um breve comentário a essa metodologia para conceituar “confiança nas organizações filantrópicas”, levanto três pontos.

Primeiro é que, por trás da metodologia da Maecenata Foundation, o pressuposto básico é o de que confiança não se pede, mas se conquista. Assim, para  captar doações e novos doadores, as organizações filantrópicas devem evidenciar a solidez do trabalho que realizam, e não (apenas) se aterem a pedir confiança como um ato de fé e boa vontade do filantropo. A meu ver, esse pressuposto vale não apenas para o setor da filantropia (ou terceiro setor), mas também para os demais – como o chamado setor 2.5 (empresas de impacto), o  segundo setor (o das empresas privadas, “só lucrativas”) e o setor público.

O segundo ponto, e como decorrência do anterior, é que a explicitação clara do trabalho a ser realizado pela organização filantrópica e como ele será acompanhado são pre-requisitos fundamentais para conquistar a confiança dos filantropos e atraí-los para o apoio perene. Considero que a aplicação da (já familiar) metodologia do Marco Lógico (Logical Framework), se bem utilizada, consegue muito bem cumprir essa função. Daí, na tabela abaixo, procurei traçar, a grosso modo, um paralelo entre os critérios estabelecidos pela Maecenata Foundation para a filantropia baseada na confiança, e as orientações da abordagem do Marco Lógico.

Fonte: Philanthropy.Insight Project na Maecenata Foundation (Tradução Luisa Bonin)

(*) Comentários próprios

Terceiro, no decorrer de 2000 para cá do uso do Marco lógico em projetos sociais, um dos  graves desvirtuamentos foi o foco exagerado na medição do impacto, por meio de métodos complexos, custosos e com retorno mínimo para a própria efetividade do projeto e a captação de financiadores (que são, em sua maioria, pouco permeáveis à linguagem de medição do impacto). 

Daí porque acredito que uma importante contribuição da Maecenas Foundation tenha sido justamente a de iluminar a seguinte questão: para poderem exercer a sua importante função social, as organizações filantrópicas precisam de medição / avaliação sim, mas sem exageros. Pois é a avaliação adequada que vai contribuir para gerar confiança.

Concluindo, o uso adequado e equilibrado do Marco Lógico pode continuar sendo importante ferramenta para gerar confiança nas instituições filantrópicas e atrair novos apoiadores para o trabalho social delas. Indo além, o FAPI e o Marco Lógico podem se complementar para fortalecer o ecossistema dos investimentos sociais e ambientais, sejam eles filantrópicos ou não.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.