Dando prosseguimento à reflexão que fiz em artigo anterior sobre a importância de se desanuviar a cortina de fumaça que ainda encobre o conceito de ‘empresa com propósito`, tão valorizado hoje em dia, vou abordar dois casos de empresas, ambas consideradas, pelos órgãos especializados, como exemplos de empresas com propósito até que…. Levanto, a seguir, o questionamento: serão elas realmente empresas com propósito?
O caso VALE
A Vale é uma empresa privada, de capital aberto, com sede no Brasil e atualmente presente em cerca de 30 países ao redor do mundo. Ocupa hoje o 1º lugar na produção mundial de minério de ferro, pelotas e níquel. A história da Vale teve início nos idos de 1909 como o “Sindicato Brasileiro de Hematita”, cujas ações viriam a ser integralmente adquiridas em 1911 pelo empresário americano Percival Farquhar, passando a se chamar “Companhia de Minério de Ferro de Itabira”. Em 1942 tornou-se empresa estatal, voltando a ser privatizada em 1997.
A Vale define o seu propósito (ou missão) como sendo “transformar recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento sustentável”. A Fundação Vale, que foi criada há mais de quatro décadas como sendo o braço social da empresa, tem por objetivo “contribuir para o desenvolvimento territorial e a melhoria da qualidade de vida das comunidades localizadas em áreas de operação da Vale, por meio de iniciativas sociais voluntárias e de caráter estruturante”. A Fundação visa também atuar na “na interlocução e articulação entre poder público, iniciativa privada e sociedade civil organizada, potencializando recursos locais”, indo na direção da ideia, muito em voga, do “impacto coletivo”.
A Vale tem ações negociadas nas principais bolsas de valores do mundo, a começar pela Bolsa do Brasil – conhecida como B3 (BM&F, BOVESPA e Cetip), e também nas Bolsas de Paris, Madrid, Nova York e Hong Kong. No Brasil, em 2017, foi comemorada a migração das ações da Vale para o Novo Mercado, segmento considerado como o de mais elevadas práticas de governança corporativa [na B3, as ações das empresas são classificadas segundo três níveis de governança corporativa, indo do nível B1 (menos exigente), passando pelo B2, até o Novo Mercado (mais exigente)].
Em 2010 a Vale começou a fazer parte da carteira do ISE, o Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa brasileira. O foco do ISE B3 (criado em 2005) é a sustentabilidade corporativa, analisada segundo as dimensões da eficiência econômica, equilíbrio ambiental, justiça social e governança corporativa. E, em 2013, a mineradora foi incluída no ranking do Dow Jones Sustainability Index para mercados emergentes. O índice aponta as empresas que são consideradas líderes mundiais em sustentabilidade empresarial, baseando-se em critérios econômicos, ambientais e sociais.
O ponto é, desde o final da década de 1990, a Vale e a Fundação Vale sempre foram percebidas no Brasil como instituições-referência dos movimentos da Responsabilidade Social Corporativa e do Investimento Social Privado. Interessante que essa percepção prevaleceu, apesar dos efeitos da atividade-fim da empresa sobre a natureza. De certo modo, a empresa sempre buscou compensar as crateras feitas nas montanhas (de minério de ferro) com outras “montanhas verdes” ou pastagens erguidas no próprio local, e/ou “adotando” praças e parques em áreas urbanas próximas.
Acidente? Ou tragédia?
Em 5 de novembro de 2015, ocorreu o rompimento da Barragem (de rejeitos) do Fundão no município de Mariana (MG), pertencente à empresa Samarco, que é controlada pela Vale e a BHP (50% cada). Na ocasião morreram 19 pessoas e houve o derramamento de 50 milhões de metros cúbicos de lama tóxica ao longo da bacia do Rio Doce.
Pouco mais de 3 anos depois, em 25 de janeiro de 2019, houve novo rompimento de barragem de rejeitos, pertencente também à Vale, dessa vez a do Feijão, que fica no município de Brumadinho (MG). Como o restaurante e a área administrativa da empresa ficavam muito próximos da barragem, dessa vez a tragédia atingiu proporções ainda maiores: o “mar de lama” matou 212 pessoas (já identificadas) e mais 93 pessoas não identificadas, e ainda deixou outras muitas mais desabrigadas e sem trabalho ao longo da bacia do Rio Paraopeba.
Segundo os especialistas, a tecnologia de barragem de rejeitos com alteamento a montante, que era utilizada nas barragens do Fundão e do Feijão, pode ter sido uma solução há 3 ou 4 décadas, por ser de menor custo e mais rápida implementação. Como as barragens se tornaram grandes demais, essa técnica (que consiste em ampliar para cima o reservatório usando o próprio material descartado) se tornou obsoleta e insegura, já tendo sido banida de vários países, como o Chile.
A mineração no Brasil, e em particular a mineração da Vale, já deveria ter se reinventado há alguns anos. Se houvesse, de fato, um equilíbrio estratégico entre propósito e lucratividade, muito provavelmente a Vale já teria feito essa transformação de suas barragens (antigas) de lama para o modelo (moderno) de barragens a seco e compactadas.
É sabido que o novo modelo de barragens a seco tem um custo mais elevado para as mineradoras. Mas a direção da Vale resolveu assumir o risco de continuar funcionando com as barragens antigas de lama em MG, baseada na crença de que o risco de acidentes com esse tipo de barragem é muito baixo – em média ocorrem no mundo apenas 2 acidentes por ano.
Também para os especialistas, a gestão do risco dessas barragens foi subavaliado. O risco é medido pelo cruzamento entre probabilidade de ocorrência (no caso, o rompimento da barragem) versus a gravidade do dano. Sobretudo no caso da barragem de Brumadinho, a gravidade do dano foi completamente subavaliada – em situações com tamanha gravidade, a segurança deveria ser de 100%, e não se poderia tolerar qualquer probabilidade de ocorrência, por mínima que fosse. Por que, então, a Vale não fez o descomissionamento imediato da barragem (por esvaziamento ou aterro), tendo em vista o alerta que veio de Mariana?
Muito possivelmente, se tivesse sido feita a mudança de tecnologia das barragens, a rentabilidade dos projetos da Vale no estado de Minas Gerais seria fortemente afetada no curto prazo. Isso porque em Minas Gerais, diferente das jazidas de Carajás no estado do Pará, o teor de ferro das minas vem se tornando cada vez mais baixo (no Pará, o novo modelo de barragem já foi adotado). Essa pode ter sido a razão porque até bem recentemente, nas decisões estratégicas da Vale relacionadas à questão das barragens em MG, o pêndulo da balança sempre pesou para o lado da lucratividade em detrimento do propósito. Na realidade, uma abordagem que se mostrou míope e que acabou penalizando a todos os públicos envolvidos.
A reprimenda dos órgãos de sustentabilidade só viria com as tragédias. Em 2016, com o rompimento da barragem de Mariana, os papéis da empresa deixaram de compor o Índice de Sustentabilidade da B3 (ISE). Em novembro de 2018, a Vale viria a ser perdoada e voltou a compor a nova carteira do ISE que vigorou a partir de janeiro de 2019. Porém, mal tinha entrado para o ISE, com o novo rompimento da barragem no final de janeiro (2019), a Vale foi excluída novamente. A Vale também foi vetada do DJSI (fev.2019) e como associada do Instituto Ethos.
O caso Heineken
A Heineken é uma cervejaria internacional, fundada em 1864 pela família Heineken na cidade de Amsterdam (Holanda). Atualmente conta com operações em mais de 70 países; é a cervejaria número um da Europa e a segunda maior do mundo, ficando atrás apenas da belgo-brasileira InBev.
Seu propósito é “produzir excelentes cervejas, construir grandes marcas e estar comprometida em surpreender e entusiasmar os consumidores em todo lugar. Dito nas palavras da própria empresa, “dentre os fatores que nos tornam única, está a construção de um mundo melhor, em que negócios e sustentabilidade estão interligados e onde há geração de valor para todos os nossos stakeholders. Queremos deixar uma pegada geográfica única e bem equilibrada, assumindo posições de liderança tanto nos mercados desenvolvidos como em desenvolvimento”.
Ocorre que, há 6 anos, o jornalista holandês Olivier Van Beemen decidiu estudar a trajetória da Heineken na África, onde a empresa opera desde os anos 1930. Em suas primeiras visitas ao continente, ele diz que sentiu orgulho da Heineken, típico de alguém que, quando está fora do seu país, constata que as “suas” marcas são bastante populares. Também logo identificou que “a Heineken gostava de se apresentar lá como uma empresa dinâmica que adquiriu grande sucesso comercial em um continente onde os países têm péssima infraestrutura, baixos níveis educacionais, corrupção e instabilidade política. E que ela queria ser vista como uma empresa que opera em circunstâncias difíceis, mas que faz muitas coisas boas para o povo e o planeta”.
A Fundação Heineken África foi criada em 2007, e desde então segue atuando no continente porque a empresa “acredita na África e no potencial do seu povo, e que todos merecem cuidados de boa qualidade com a saúde”. Apoia atualmente em torno de 111 diferentes projetos com o foco em água e saúde, nos seguintes países: Etiópia, Nigéria, Serra Leoa, Ruanda, Burundi, África do Sul e República Democrática do Congo.
Oportunidades para o povo africano? Ou exploração?
Aos poucos, Van Beemen foi percebendo que o discurso da Heineken na África estava longe da prática da empresa na região.
Naqueles países com baixo nível de regulação, as supostas propriedades “positivas” da cerveja eram alardeadas com muita facilidade nas escolas e entre os jovens. Formava-se, assim, um mercado cativo desde a mais tenra idade.
Naqueles países com baixo nível de escolaridade e mão de obra barata, o preço da cerveja era para ser bem mais baixo do que nos países da Europa. Mas não era: o preço da bebida na África era igual ou até mais caro. Certamente é o que explica porque, segundo pesquisas da Heineken em 2014, a cerveja na África conseguia ser 50% mais lucrativa do que em qualquer outro lugar.
Naqueles países, o grosso da mão de obra utilizada pela Heineken não era própria, e sim subcontratada por meio de agências, que pagavam salários baixos, não concediam planos de saúde nem de previdência. Porém, a alta gerência da empresa era bem paga, só que constituída em sua maioria por europeus brancos. Exemplificando, das 13 subsidiárias pesquisadas na África, 9 eram dirigidas por europeus e apenas 4 por africanos (31%).
Um trabalhador temporário da Heineken no Congo relatou a Van Beemen que “enquanto os diretores saiam para almoçar, nós tínhamos que continuar trabalhando. Era para termos uma cantina, que acabou sendo cortada do orçamento da empresa. Eles não tinham um chicote como nos tempos coloniais, mas a pressão do trabalho era muita e não tinha qualquer relação com os nossos baixos salários”.
O pior de tudo era o trabalho das “garotas de promoção da cerveja” nos bares, que se assemelhavam a “trabalhadoras do sexo” tais eram as suas condições de trabalho – roupas provocativas, baixos salários, o assédio que sofriam, a pressão por fazerem sexo com os consumidores e o risco de contraírem HIV. Segundo informou uma dessas promotoras para Van Beemen, “durante a fase de instrução, eles nos orientavam que haveria homens inconvenientes. Mas que teríamos que tolerá-los porque a nossa função era justamente aumentar as vendas e fazer a marca mais forte”.
A publicação do livro de Van Beemen na Holanda no ano passado (2018) [Heineken in Africa: A Multinational Unleashed (Heineken na África – Uma multinacional sem freios)] fez abrir os olhos dos órgãos competentes. Por conta do escândalo, o Parlamento holandês aprovou uma moção contra abusos cometidos por empresas do país no exterior. Também o Global Fund, apoiado por Bill Gates, excluiu a Heineken do seu fundo de investimento sustentável.
Com o escândalo, a “justificativa” dada pela direção da Heineken em Amsterdam foi de que “aquele era o jeito das promotoras de vendas trabalharem na África. Era muito difícil para a Heineken ser uma ilha de perfeição em um mar de miséria. …. Com toda a sinceridade, o que a Heineken mais queria era melhorar as coisas, contribuir positivamente para as sociedades onde a empresa opera”. Alguns meses depois, Van Beemen voltaria à África e, ao falar novamente com as promotoras de venda da Heineken em alguns daqueles países, ficou surpreso ao constatar que “nada havia mudado” na realidade delas, apesar das promessas de mudança de comportamento feitas pela empresa na ocasião do escândalo.
Considerações finais
Apesar da cortina de fumaça que ainda encobre o conceito de empresas COM propósito, já há evidências do que empresas com propósito não podem fazer. Elas não podem correr risco de tragédias anunciadas envolvendo os seus funcionários e comunidades do entorno. Elas não podem viver de explorar a dignidade e a desinformação dos seus trabalhadores e consumidores.
Se Vale e Heineken querem ser consideradas empresas COM propósito (e não apenas no discurso), devem promover com urgência uma mudança real de cultura, de valores e no modo de fazerem as coisas. E isso não é de um ano para o outro. Mudanças estruturais exigem vontade, determinação e persistência e, ainda assim, levam um bom tempo para se consolidarem. Nesse ínterim, há que se operacionalizar com clareza o conceito de empresa COM propósito, que não pode continuar envolvido na cortina de fumaça em que só se mostra o que é conveniente (para a empresa), e também põe em dúvida o aval dos organismos certificadores de sustentabilidade.
Bem Eco
É mesmo para chorar. E eu só observando, um milhão de influenceeeãrs da sustentabilidade defendendo empresas como essas.
Obrigada pelo artigo. Mas vou chorar o resto do dia.