ESG: nem 8 nem 80. Que tal 44?

Por on 21/12/2023

Muito se discutiu em 2023 sobre a política corporativa ESG, e se chegou a afirmar que estaria havendo atualmente uma “divisão transatlântica” entre a abordagem da União Europeia e a dos Estados Unidos. Em anos anteriores, essa polêmica também esteve sempre presente, a ponto de muito rapidamente os conceitos irem parecendo desgastados e sendo substituídos, de RSC (Responsabilidade Social Corporativa) para “Sustentabilidade” para “Valor compartilhado”, e mais recentemente ESG (do inglês: Environmental, Social and Governance) – in:Empresa com impacto: o discurso e a prática.

Por que tanta polêmica? Será que é porque as empresas ainda não conseguiram acertar o nível ótimo na gestão com os seus diferentes públicos?

Nível 8 – Que nível é este? Por que não se sustenta?

Por nível ESG 8, estou me referindo à abordagem de gestão social de empresa inspirada em Milton Friedman, expoente do capitalismo de mercado livre (Capitalismo e Liberdade, em seu livro publicado em 1962). Para Friedman, só há uma única responsabilidade social da empresa, que é a de aumentar os lucros dos seus acionistas (ou shareholders) dentro das leis vigentes.  Pois é ao proteger os interesses dos acionistas que a empresa cresce e promove os interesses da sociedade como um todo, aí incluídos o pagamento dos tributos aos governos para a realização das políticas públicas. Sob essa ótica, entende-se que a “mão invisível do mercado” é capaz de cuidar melhor do bem público do que o Estado e/ou de se querer impor tal exigência às empresas.

Ocorre que, nos dias de hoje, uma empresa que buscar atuar estritamente dentro desse receituário com o foco restrito nos shareholders, não se sustentaria. Isto porque, com o seu olhar exclusivo para os interesses dos shareholders, como essa empresa iria atrair e reter os outros públicos para trabalharem com ela? No atual contexto de mercado, certamente ela iria perder espaço para as empresas concorrentes que adotam uma política mais benevolente com os seus stakeholders; daí, ela não iria conseguir ter a seu lado colaboradores competentes e bons fornecedores; nem contar com a boa vontade dos governos e das comunidades do seu entorno. Assim, na busca do lucro máximo para os acionistas, o funcionamento dessa empresa acabaria sendo engolido nesse círculo vicioso, que em última instância repercutiria negativamente em sua lucratividade.

Nível 80 – Que nível é este? Por que também não se sustenta?

Já o nível ESG 80 seria como que o estágio extremo oposto do anterior, longe da primazia exclusiva dos donos do capital. Seria quando a responsabilidade da empresa se volta para atender de fato (e não apenas no discurso) aos interesses dos principais públicos e atores (ou stakeholders) envolvidos com ela – acionistas, colaboradores, fornecedores, clientes, comunidades, governos e meio-ambiente.

A gota d`água para acelerar essa corrida em direção ao nível 80 foi a carta de Larry Fink, CEO da BlackRock (maior gestora de investimentos do mundo), aos presidentes das empresas investidas no início de 2020. Ele foi firme em afirmar a decisão da maior gestora do mundo em passar a só investir, daí para frente, em empresas com propósito, comprometidas com as necessidades dos seus públicos relevantes, que fossem transparentes na alocação dos seus recursos, e que tivessem medidas efetivas em prol da transição energética em seus processos produtivos /serviços.

A meu ver, essa carta de Larry Fink de 2020 foi realmente decisiva para que os critérios ESG ganhassem tração no mundo corporativo. Pois foi somente, a partir de então, que a política ESG passou a ser defendida por representantes dos donos do dinheiro (desnecessário dizer que as grandes casas gestoras do mundo seguiram o posicionamento da BlackRock), indo para além do campo dos ativistas, ambientalistas e universidades.

O problema foi que, em decorrência desses estímulos que começaram a vir das casas gestoras e também dos grandes bancos, as empresas se viram empurradas a irem se moldando a esse novo modelo; e, no dizer crítico dos políticos do partido Republicano dos EUA, foram se tornando “demasiadamente woke”. Termo que significa excessivamente preocupadas (ou ‘acordadas`) para questões de injustiça social, racial, e causadoras de mudanças climáticas. Ou seja, as empresas, e aqui me refiro sobretudo à realidade das norte-americanas, tiveram que ir diversificando a aplicação do seu capital em tantas outras atribuições sociais e ambientais, a ponto de isso começar a afetar a rentabilidade dos seus acionistas – e, portanto, dos fundos ESG das casas gestoras (que investiam nessas empresas). Daí, os investidores (clientes) dessas grandes casas gestoras começaram a se sentir prejudicados por essa prática excessiva pró-ESG das empresas investidas, a ponto de já estar afetando a rentabilidade dos seus investimentos.

A reação não tardou. Basta ver que Larry Fink, da BlackRock, teve que retroceder em suas intenções e, já em sua carta anual no início de 2023, dessa vez dirigida aos investidores (e não mais aos presidentes das empresas, como fazia antes), ele foi enfático em defender que “o dinheiro (na BlackRock) não é da BlackRock, e sim dos clientes. O compromisso da BlackRock é com os clientes, com os interesses deles.”  De concreto, a mudança dessa nova ênfase foi que nas assembleias de acionistas das empresas investidas ao longo de 2023 foram os clientes da BlackRock – isto é, os acionistas das empresas, e não mais os gestores da BlackRock, que passaram a ter o poder do voto nesses temas sensíveis ESG, de acordo com as suas participações relativas nas empresas.

Como se vê, esse padrão benevolente ESG, voltado para solucionar todos os interesses e problemas de seus públicos relevantes, também está começando a dar água. E era previsível que isso viesse a ocorrer. Isto porque o fardo, e consequentemente os custos, dessas empresas “compelidas” a serem ESG [com os seus compromissos sociais e ambientais se tornando bem mais elevados do que o das demais empresas, e até incompatíveis com a sua capacidade financeira] passou a repercutir negativamente em sua lucratividade.

Nível 44 – Que nível é este? E por que ele pode ser sustentável?

Nível ESG 44 corresponderia ao desempenho mediano da empresa: nem ficar no desempenho mínimo do nível 8 (do foco exclusivo no shareholder), nem ir para o extremo oposto do nível 80 (do foco benevolente e “imposto” nos stakeholders). O pressuposto aqui é o de que no nível 44 a empresa está buscando atender aos interesses / problemas dos principais públicos envolvidos com ela, porém de forma equilibrada. E o que significa essa implementação da política ESG “de forma equilibrada”?

Retomo aqui os critérios que tenho defendido há 20 anos para planejar e avaliar os projetos sociais das empresas nas comunidades (que se constitui em uma das dimensões do ESG), a saber: eficácia pública e eficácia privada. Sob a ótica pública, o projeto social é dito eficaz se consegue atingir os objetivos anunciados (pela empresa) para atender à comunidade. Sob a ótica privada, o projeto social é eficaz se consegue alcançar os objetivos esperados para os negócios da empresa. (in: Ação social das empresas privadas: como avaliar resultados? Editora FGV, 2005)

Então, ampliando essa abordagem do critério da eficácia para planejar e avaliar as iniciativas ESG da empresa como um todo (e não apenas para o stakeholder ‘comunidade`), podemos dizer que a implementação equilibrada da política ESG da empresa deveria se guiar pelo critério da eficácia, contemplando as duas óticas. Em um segundo momento é que se buscaria verificar o cumprimento do critério da eficiência – que corresponde ao atingimento dos objetivos previstos (eficácia) ao menor custo possível.

Assim, todo projeto corporativo voltado para atender determinada(s) necessidade(s) de um, ou vários, dos seus públicos (stakeholders-alvo) deve produzir o resultado positivo anunciado para esse grupo (eficácia pública). Como por exemplo, investir em programas de diversidade ou de energias alternativas. Mas deve produzir também os efeitos positivos esperados para o funcionamento da empresa (eficácia privada), quer seja relacionado à sua maior produtividade, melhor qualidade da oferta dos insumos, ou de maior aproximação com os governos. E não há mal algum em mirar na melhora da imagem da companhia, como tem sido objeto de algumas críticas. Pelo contrário: iniciativas ESG devem trazer, sim, retorno positivo para a imagem como também para a reputação da companhia.

ENFIM, se as iniciativas ESG não se inserirem na lógica de funcionamento da companhia, elas vão acabar não se sustentando no médio / longo prazo. É da busca do equilíbrio entre a eficácia pública (geração de benefício de interesse específico dos stakeholders-alvo) e a eficácia privada (geração de benefício de interesse específico da empresa) das iniciativas ESG que elas vão se fortalecer no âmbito corporativo. Em outras palavras, não podemos perder de vista o equilíbrio do “valor compartilhado” proposto por Michael Porter. Em sentido figurado, algo em torno do nível ESG 44!

NOTA – Artigo também publicado no meu site.

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.