Filantropia de vizinhança:  por que precisamos praticar?

Por on 06/11/2023

Filantropia no território, que aqui vou chamar por filantropia de vizinhança, pode ser estratégica para todos. Daí, é importante ter clareza sobre porque devemos praticá-la.

No início dos anos 2000, a ação social das empresas (ASE) começava a ganhar força no Brasil. Mais tarde a ASE ganharia o nome charmoso de Investimento Social Privado – ISP. Naquela ocasião, defendi a tese de que, para ser bem-sucedida, a ação social das empresas deveria ter eficácia pública (alcançar de fato os objetivos anunciados para o público beneficiário) e eficácia privada (atingir os objetivos pretendidos para a empresa) – Editora FGV, 2005. Mais ou menos por volta desse mesmo período, Michael Porter desenvolvia a ideia da vantagem competitiva da filantropia corporativa, que se tornou conhecida como filantropia corporativa estratégicaHBR, dez. 2002. Vale lembrar que naquele momento a filantropia era termo malvisto no Brasil, pois associado a assistencialismo…..   

Hoje no Brasil seguimos convivendo com o desafio de estimular a cultura da doação, tanto por parte das empresas como das famílias.  As mazelas sociais no país continuam grandes, e o “cobertor” dos recursos públicos vem se mostrando cada vez mais insuficiente.

O grande problema das doações no Brasil

No Brasil, doa-se pouco e de forma concentrada. Senão, vejamos. A filantropia e o Investimento Social Privado no Brasil correspondem anualmente a cerca de apenas  0,2% do PIB (Produto Interno Bruto), valor muito baixo se comparado com outros países referência no tema, como os Estados Unidos, em que esse percentual é 10 vezes maior (2%).  (Cássio França, GIFE, 24.02.2023).

Além disso, o problema mais sério é que os recursos para a filantropia acabam restritos a um pequeno círculo de organizações filantrópicas com trabalho social já estruturado e reconhecido. As organizações filantrópicas menores e periféricas acabam sendo relegadas e ficando à mingua de recursos provenientes de doações.

 O Censo GIFE , que congrega os dados para os maiores investidores sociais privados no Brasil ( que são, por ordem de valor investido: 1 – Institutos / Fundações / Fundos filantrópicos Empresariais; 2 – Empresas; 3 – Institutos / Fundações / Fundos filantrópicos Familiares; e 4 – Institutos / Fundações / Fundos filantrópicos Independentes) ilustra, de certo modo, essa realidade desigual no acesso aos recursos filantrópicos. Assim, veja que em 2018 (último ano disponível que exclui os efeitos atípicos advindos da pandemia da Covid 19) a maior parte da alocação dos recursos orçamentários desses investidores se deu para iniciativas próprias (50%), 15% para despesas administrativas próprias, e (apenas) 35% para iniciativas / projetos de terceiros. Sendo que muito provavelmente essa reduzida parcela de recursos direcionada para projetos de terceiros acabou indo contemplar majoritariamente algumas poucas organizações filantrópicas com as quais os referidos investidores já mantinham vínculos de conhecimento e confiança. Diga-se, de passagem, uma lógica (também!) justa do ponto de vista social. Pois é junto a essas organizações, cujo trabalho social já é devidamente reconhecido, que esses investidores esperam obter uma melhor relação custo-benefício social para os seus recursos.

Assim, há que se reconhecer que, de 2000 para cá, a lógica do impacto social e da eficiência na aplicação dos investimentos sociais tendeu a penalizar as doações para as iniciativas sociais de periferia, pois vem canalizando cada vez mais recursos para os projetos sociais de organizações normalmente grandes e bem estruturadas. Ou seja, justamente as organizações periféricas, que estão dentro de territórios vulneráveis, que conhecem de perto as suas aflições e possíveis soluções, e que em sua maioria são geridas por seus próprios moradores, estão ficando cada vez mais fragilizadas em termos de recursos e, portanto, incapacitadas para uma atuação incisiva.

O que se observa é que esse círculo “vicioso” das doações vem se retroalimentando: quanto menor a capacidade de se estruturar da organização, menos recursos vão ser canalizados para ela. Por outro lado, quanto menos recursos a organização receber, menos ela vai ter capacidade para se estruturar e se fortalecer institucionalmente.

O Diagnóstico PIPA – Iniciativas sociais periféricas no Brasil quase sem recursos.

Foram esses incômodos que motivaram a Iniciativa Pipa, em parceria com o Instituto Nu (vinculado ao Nubank), a realizar no ano passado (2022) a pesquisa “Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil”, com o objetivo de apresentar a realidade financeira e cotidiana das organizações / iniciativas sociais de periferia no Brasil. A intenção era “entender a relação das periferias com a captação de recursos provenientes do Investimento Social Privado e da Filantropia, identificar possíveis caminhos a serem seguidos para descentralizar e desburocratizar o acesso a esses recursos, e criar soluções que ampliem o impacto social da alocação de recursos no país”.

Metodologia – A coleta de dados da pesquisa foi realizada por meio de um formulário on-line distribuído pela PIPA para todas as iniciativas de periferia mapeadas no país (em torno de 1000, tendo havido retorno de 607), a partir do contato direto e articulação em rede que foi sendo construída por 12 pesquisadores “de periferia” das 5 grandes regiões do Brasil, especialmente contratados para essa missão. As pesquisas qualitativa e quantitativa ocorreram em simultâneo nos meses de setembro e outubro de 2022, inclusive com visitas in loco.

No contexto da pesquisa, o termo periferia engloba “as favelas, os sertões, a zona rural e os territórios indígenas, ribeirinhos e quilombolas, ou seja, localidades não apenas afastadas dos grandes centros, geograficamente, mas também em termos de acesso a rede daquilo que o Estado define como bens culturais disponíveis nos grandes centros”.

Os principais achados da pesquisa

1 – A grande maioria das iniciativas pesquisadas está constituída de modo “menos formal e burocratizado do ponto de vista jurídico”. Assim, 41,8% delas se apresentam como “coletivos”; 12,4% como associações; 12,2% como OSC (Organização da Sociedade Civil);  9,1% como “movimento social”;  5,8% como “rede”;  5,8% como “comunidade”; 3,5% como “empreendedorismo social”; 2,8% como “independente” ou “autônoma”; 1,5% como cooperativa; 1,5% como ONG (Organização Não Governamental); e 3,8% foram classificados em “Outros”.

2 – Em geral são organizações pequenas – 58% delas têm apenas até 10 colaboradores. Também em termos do montante dos recursos geridos por essas iniciativas periféricas pesquisadas, quase metade delas (46%) administrou nenhum recurso ou apenas até R$ 5 mil por ano, considerando os últimos 2 anos.  Somente 13% delas conseguiu ter orçamento anual acima de R$ 100 mil.

3 – Das organizações pesquisadas 52% delas afirmou não possuir CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). Mas não basta possuir CNPJ, é preciso que ele esteja ativo (o que implica em custos mensais para a organização) e, só assim, passível de uso – ou seja, para permitir que a organização participe de editais e/ou possa atestar completa legalidade de suas atividades desenvolvidas. Algumas organizações pesquisadas até afirmaram ter CNPJ, porém ele não estava ativo e até correndo risco de ser cancelado.

4 – Dentre as organizações sociais pesquisadas, para 32,9% delas a principal fonte de recursos são os editais, seguidos por doações individuais (24,1%), recursos das próprias pessoas da organização (23,7%), realização de eventos (8,1%), “recursos filantrópicos” (4,2%), “regrants” ou renovação de doação (3,6%), Poder público (1,5%), Outros (1%), Não tem recursos (1%). Chama a atenção aqui o papel relevante dos editais e o papel pouco significativo do Poder público para o financiamento dessas ações sociais na periferia. A pesquisa observa que, em se tratando dos editais, uma estratégia bastante usada por iniciativas que não têm CNPJ (ou ele não está ativo) é realizar parceria com outras organizações com CNPJ ativo para poderem participar dos editais, porém essa estratégia as deixa dependente dessas outras organizações.  

5 – Para a maior parte das iniciativas (78,4%) a principal dificuldade para o não acesso aos financiamentos advindos dos editais é a alta competitividade entre organizações, e não a dificuldade para a compreensão e o correto preenchimento desses editais (para isto, eles podem tentar ajuda). Sendo que, para 57%  delas, a exigência de formalização da organização é outro fator também fortemente dificultador.

6 – O grosso dos colaboradores nessas organizações atuam de modo voluntário. Tanto que 58% das organizações pesquisadas contam somente com pessoas voluntárias e, em 26% delas, a maioria das pessoas é de voluntários.

7- Das organizações pesquisadas, 93% delas não possuem pessoas contratadas com vínculo empregatício formal (seguindo a CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas)

8- A quase totalidade da equipe gestora dessas iniciativas (89%) precisa trabalhar em outros lugares ou frentes para poderem ter renda suficiente para se sustentarem; apenas 11% não precisa trabalhar em outros lugares.

 9 – A maioria das pessoas que atua nesses projetos (74,1%) é de cor parda ou preta. Também a maioria das pessoas nessas iniciativas periféricas é constituída por mulheres (68%), sendo 17% por homens e 15% se identificando como “outros” ( LGBTQIAP+ , isto é, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queer, Interssexuais, Assexuais e Pansexuais)

10 – Para gerir os financiamentos, os principais desafios enfrentados por essas iniciativas pesquisadas (classificados como ‘muito relevantes` ou ‘relevantes`) foram “a necessidade de remunerar equipe suficiente para implementar o projeto com o recurso disponibilizado” (72%), “as condições de prestação de contas muito burocráticas” (60%), “o financiador não oferece flexibilidade para a execução dos recursos” (59%) e a “necessidade de mais conhecimento sobre gestão financeira e de projetos” (59%).  

 Por que devemos praticar a filantropia de vizinhança?

Ao ver esses achados da Pesquisa PIPA, fica evidente a situação precária em que vivem essas organizações / iniciativas periféricas no Brasil, o papel relevante que elas podem ter para a redução das vulnerabilidades sociais nessas áreas, e que precisamos estimular outras formas de filantropia no país.

Até 30 anos atrás, nós no Brasil entendíamos filantropia como ato essencialmente de caridade. A partir de então, a percepção de filantropia foi sendo cada vez mais associada à prestação de contas, medição de resultados, e atenção aos custos de oportunidade. E é muito bom que seja assim, uma vez que os recursos são escassos. A busca por efetividade social deve ser sempre valorizada.

Porém, o problema é que nesses últimos anos fomos estreitando e aprofundando esse modelo de filantropia de efetividade (ou filantropia baseada na efetividade), e fomos deixando de enxergar outras possibilidades e necessidades de fazer filantropia. Como, por exemplo, a filantropia com o foco em assistência social, em atendimento a emergências, crises humanitárias, e também a filantropia de vizinhança.

A filantropia de vizinhança permite conciliar as vulnerabilidades sociais existentes num dado território com o potencial de doação localizado nesses mesmos espaços (ou próximos a eles) de famílias moradoras e/ou de empresas e negócios operando nesses locais. Justamente em razão dessa proximidade física entre doadores e organizações / iniciativas receptoras da doação, a filantropia de vizinhança pode se basear em modos específicos de funcionamento, diferentes daqueles preconizados pela filantropia de efetividade.  Podem ser adotadas formas interativas mais personalizadas tanto para a mobilização de recursos como para a apresentação do trabalho desenvolvido e seus resultados – seja por meio de visitas, comunicados de porta em porta ou realização de eventos.

Por que estimular a filantropia de vizinhança?

De forma alguma estou querendo tirar o foco de que devemos fazer filantropia buscando transformação social, transparência e otimização da eficácia e eficiência na aplicação dos recursos doados. Mas vejo espaço e necessidade de se estimular também a filantropia de vizinhança, e a seguir procurarei listar algumas razões.

Primeiro, na filantropia de vizinhança os potenciais doadores locais conhecem de perto as necessidades sociais do território. Também em contraposição aos potenciais doadores à distância, são esses doadores locais que têm mais chances de conhecerem de perto, in loco, a seriedade e o comprometimento (ou não) de iniciativas / organizações filantrópicas envolvidas em buscar soluções para esses problemas sociais. Daí, essa proximidade física pode representar um diferencial em termos de facilitar a sensibilização para o apoio e mobilização de recursos em prol das organizações filantrópicas do território.

Segundo, e por conta dessa proximidade física entre doadores e organizações filantrópicas, o relacionamento entre eles pode se dar de modo mais informal no que se refere ao acompanhamento do trabalho social (visitas, contatos diretos, eventos, etc….). Assim, quando as organizações (ainda) são pequenas, estão iniciando o seu trabalho social e contam com baixo nível de estruturação, os doadores locais podem acompanhar o trabalho social delas de forma mais fluida, ouvindo os comentários da comunidade local, indo diretamente lá, participando de reuniões na organização, ou por meio da troca (individualizada) de e-mails e whatsapps. Como se vê, quando comparados aos doadores à distância, são os doadores locais que têm mais chances para enxergar e contribuir para suprir as fragilidades de funcionamento das iniciativas sociais periféricas, que foram detectadas pela pesquisa da PIPA.

Com o fortalecimento institucional sendo gradualmente construído, essas organizações sociais periféricas vão adquirindo capacidades para uma prestação de contas mais formalizada e, assim, se tornando também capazes de acessar novas fontes de doação e financiamento fora do território ( como, por exemplo, os editais) e, portanto, passando a poder ampliar e aprofundar o seu trabalho social.

Terceiro, na medida em que as condições sociais do território melhoram – isto é, em havendo eficácia pública dos projetos sociais junto ao público atendido, todos daquela região podem sair ganhando. Tanto as famílias moradoras quanto as empresas situadas no local. Isto porque passam a ter um ambiente mais seguro, uma convivência mais amistosa e uma qualidade de vida melhor. Em outras palavras, as iniciativas sociais locais podem também gerar eficácia privada (benefícios indiretos) para os seus doadores – sejam eles moradores e /ou empresas locais.

Quarto, em se tratando de empresas privadas que alocam (parte do) seu Investimento Social Privado (ISP) onde está(ão) instalalada(s) a(s) sua(s) unidade(s), também em havendo eficácia pública desse(s) seu(s) investimentos sociais, muito provavelmente o ISP no território terá caráter estratégico para o negócio. Isto porque vai poder gerar bom relacionamento e colaboração com as comunidades do entorno, preparar e atrair colaboradores e/ou fornecedores para as suas unidades locais, gerar boa vontade dos governos locais (prefeituras e instituições públicas), criar e ampliar a visibilidade e a boa reputação da empresa, e também (dependendo do tipo de serviço/produto oferecido) poderá até atrair/ampliar o seu mercado consumidor.  

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1 comentário
  1. Responder

    Evangelina de Andrade

    07/11/2023

    Ótima matéria

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.