Quem atua no setor da filantropia não precisa ser só movido a bondade e perfeição no modo de agir. Mas também não precisa atuar só guiado por “segundas” intenções, razões interesseiras e sentimento de culpa. Ou seja, nem anjo, nem demônio. Na realidade, na filantropia / organizações sem fins lucrativos, como em qualquer outro setor, todos nós atuamos como uma combinação desses dois extremos e, por isso, precisamos nos guiar sempre pelos desafios corretos.
Percepção ‘demoníaca’
Recente artigo publicado na New York Magazine (23.05.2022) por Nicholas Lemann, a partir de colocações de alguns autores (como Paul Vallely e Emma Saunders-Hastings) levanta a seguinte indagação: Será que o mundo estaria melhor se não fosse a atuação dos filantropos? Lemann desenvolve a sua análise baseado nos seguintes argumentos:
- Filantropos agem em causa própria. Pessoas ricas e grandes empresas dependem de condições políticas favoráveis para construírem e preservarem a sua riqueza. Assim, por exemplo, mega-filantropos buscam usar a sua riqueza para influenciar governos. Pois assim conseguem ter muito mais poder do que através do voto, como é o caso de todos os demais cidadãos. Foi assim no início dos anos 1900 com os milionários das grandes corporações industriais nas áreas da indústria siderúrgica, petróleo e automobilística se tornando grandes filantropos como Andrew Carnegie e John Rockfeller. E tem sido assim também nesse novo século (anos 2000), com os bilionários dos setores de tecnologia da informação e finanças também se transformando em grandes filantropos, como Bill Gates, Mark Zuckerberg e David Vélez.
- Diferente dos governos democráticos, as organizações filantrópicas sem fins lucrativos (fundações e institutos) não precisam prestar contas aos públicos que atendem nem a todas as leis de funcionamento do mercado. Quer isso dizer que essas organizações respondem basicamente aos representantes de seus próprios instituidores, e que elas têm poder/liberdade de decisão e ação muito maiores se comparadas a governos eleitos ou a empresas privadas.
- Filantropia gera “desigualdade relacional”. Isso porque coloca os doadores em posição de superioridade para influenciar padrões de comportamento (dos seus receptores), e coloca os beneficiados em posição de inferioridade para aceitar as condições e visões da realidade dos doadores.
- Filantropos tendem a ser paternalistas, pois não raras vezes impõem as “suas” soluções para os problemas dos públicos atendidos. Assim como na relação pais e filhos, eles partem do pressuposto de sua superior capacidade em equacionar os problemas.
Ao final de sua análise, Lemann se posiciona para concluir que não podemos ser tão rigorosos no julgamento da filantropia, que cuida das pessoas em situação de vulnerabilidade. Pois a alternativa a essa visão de filantropia cheia de falhas (trazida pelos autores analisados por ele), seria a de um governo idealizado, democrático e perfeito em todos os seus planos e práticas em prol da justiça social. Que, como ele admite, não é uma alternativa real.
Lembro que não é de hoje essa ênfase à percepção ‘demoníaca` da filantropia, seja ela conduzida por pessoas ou empresas. Há seis anos escrevi artigo para a Revista Filantropia, em que apontava a necessidade de se estimular a filantropia no Brasil, e também já compartilhava os alertas e críticas que vinham se formando à atuação filantrópica nos Estados Unidos, país que se encontrava anos à frente do Brasil nesse campo. Vale a leitura – Como estimular a filantropia no Brasil? .
Percepção ‘angelical’
Há quase 10 anos (2013) Dan Pallotta (empreendedor social nos EUA e ativista importante de causas sociais) fez uma veemente defesa do fortalecimento da filantropia e das organizações sem fins lucrativos (OSFLs) – video TED Talks. Segundo ele, o que essas organizações precisam é de recursos abundantes, tal como as lucrativas, para poderem multiplicar o bem que fazem.
Nessa palestra, Pallotta foi categórico em afirmar que a filantropia “é o mercado para o amor, é o mercado para todos aqueles para quem não há mercado ”. Citou como exemplos as populações de rua, as pessoas vivendo em extrema pobreza, os portadores de doença mental, as pessoas com câncer e AIDS. Como vamos monetizar os resultados alcançados junto a esses grupos, como a felicidade estampada no sorriso de um jovem com síndrome de Down?
Quanto mais recursos as OSFLs tiverem, maior será o poder delas em contribuírem para um mundo melhor. No entanto, as organizações filantrópicas estão sendo regidas por regras injustas vis-à-vis ao setor empresarial (ele faz referência à situação nos EUA), que as mantêm pequenas e não as deixam escalar para enfrentar os grandes problemas sociais existentes.
Para ele, embora as empresas e o setor lucrativo sejam capazes de gerar desenvolvimento para o grosso da população no longo prazo, há aqueles 10% ou mais da população em situação de vulnerabilidade, “ou de menos sorte”, que não conseguem acessar o mercado de modo algum e, por isso, precisam do apoio da filantropia. Porém, por razões éticas ou morais, as normas que regem o setor lucrativo são totalmente distintas das regras que regem o setor social não lucrativo. Há uma discriminação entre os princípios de atuação, que favorecem o setor lucrativo, enquanto penalizam a filantropia e as OSFLs, como por exemplo:
- Recompensa: quando se atua no setor social, não se pode ter a ambição de fazer dinheiro – seja como colaborador ou fornecedor de produtos e serviços. Senão a organização passa a ser malvista e tida como “parasita”.
- Propaganda e marketing: Normalmente os financiadores das OSFLs (pessoas ou empresas filantropas) não querem ver o seu dinheiro aplicado em propaganda da organização. Porém, se a organização não divulga o seu trabalho, como ela vai conseguir carrear recursos e dar escalabilidade ao trabalho que realiza?
- Inovação – A inovação pressupõe correr o risco de errar e fracassar para poder testar novas ideias e novos modos de fazer as coisas. Todavia nas organizações filantrópicas o fracasso é malvisto, e a reputação da organização é logo colocada em xeque. Com isso, se está matando a inovação no setor social.
- Paciência – No segmento lucrativo, normalmente se concede o tempo e os investimentos necessários para que o negócio nasça, amadureça, ganhe escala e comece a dar lucros. Porém, no setor social, as organizações não têm esse direito. Elas têm que começar de imediato a atender aos seus beneficiários. Pois quem iria doar ou investir recursos em uma organização filantrópica que estaria funcionando sem ter beneficiários?
Enfim, o ponto central defendido por Dan Pallotta é que nos relacionamos muito mal com as organizações filantrópicas. Elas são organizações voltadas para fazer o bem e atender às pessoas mais vulneráveis. No entanto, elas padecem de grave pecado original: os filantropos (sejam pessoas ou empresas) só querem doar para a causa social em si (ou os custos diretos do atendimento social), e resistem em doar para os custos indiretos (o chamado “overhead”) da organização executora.
Desse modo, ao restringir o overhead para a organização, a consequência é limitar / frear a sua capacidade de aprimoramento e expansão por meio da captação e retenção de talentos, inovação, aumento do quadro de doadores e voluntários. É um total contrassenso, que não ocorre no caso das empresas lucrativas.
Pallotta finaliza com o seguinte questionamento: do ponto de vista das pessoas que têm fome em um dado território, qual a organização filantrópica elas iriam preferir – a organização que consegue captar R$ 100 mil a um custo de overhead de 5% ou a que consegue captar R$ 100 milhões com overhead de 40%?
No primeiro caso haveria a disponibilização de (apenas) R$ 95 mil – e eu suponho que daria para (apenas) uma atuação emergencial. Ao passo que no segundo caso, a disponibilidade chegaria a R$ 60 milhões, e poderia até ser conduzido um trabalho estruturante na região, capaz de eliminar o problema da fome. Então, a julgar apenas por esses dados, a resposta seria que as ´pessoas com fome` vão preferir serem atendidas pela organização filantrópica que cobra overhead mais elevado para gerenciar o recurso doado (40% ao invés de apenas 5%), pois a sua capacidade em lidar com o problema social será muito maior.
Quais os desafios corretos?
Nem demônios, nem anjos. As OSFLs não podem ser vistas como instituições de (ou apoiadas por) capitalistas, que apenas tentam expiar a sua “culpa” (por ganharem muito dinheiro) ou imporem a sua prioridade de política pública. Nem também podem ser percebidas como organizações do bem, que fazem sempre as coisas certas da forma certa. A realidade da filantropia flutua entre esses dois extremos. É um campo complexo, que (como tudo na vida) tem virtudes e defeitos, e o mais fundamental é buscarmos a clareza dos desafios corretos para potencializar os seus impactos sociais positivos.
Da discussão acima, eu apontaria como os principais desafios para a filantropia hoje no Brasil – seja ela conduzida por empresas, famílias ou de modo comunitário:
- Desenvolver protocolos para avaliar os resultados e os atendimentos prestados no setor social. Se lidamos com resultados subjetivos, intangíveis e de baixa comparabilidade entre os sub-setores, precisamos criar marcos, por área especializada de atuação, que caracterizem uma trajetória bem sucedida no campo social – em termos de eficácia (de produto, de resultado imediato, de impacto) e eficiência (de custo por unidade de produto). O que é sucesso em uma organização que trabalha com o apoio para crianças com autismo? O que é sucesso em uma organização que trabalha o esporte para adolescentes? Não vejo, por ora, a monetização do impacto social como solução para esse desafio (retorno econômico de projetos sociais). Isto porque a objetividade do indicador econômico (que é gerado) não deixa transparecer as subjetividades e complexidades da estimativa que seguem existindo.
- Desenvolver estratégias para trazer o público-alvo da filantropia para ser ouvido “de verdade”, seja para o diagnóstico do problema social, seja para a identificação das soluções a serem implementadas. (engajamento com as comunidades)
- É preciso sensibilizar para a cultura da doação e o trabalho voluntário no Brasil, ainda muito incipiente. Não me refiro a uma doação pontual e residual das famílias e empresas (que doam quando solicitadas, e não raras vezes com certa desconfiança sobre se o dinheiro não estará sendo mal utilizado), mas para uma doação realmente comprometida com o trabalho da organização filantrópica apoiada. Dependendo do montante do recurso disponibilizado para a doação, é preferível doar para apenas uma organização do que diversificar para muitas. Filantropia deveria também ser incluída como disciplina obrigatória nas escolas, na condição de um quesito importante na formação do cidadão. (Como ser doador no Brasil)
- Desenvolver maneiras para expandir a doação baseada na confiança, de modo a capitalizar e dar autonomia ao trabalho das organizações filantrópicas (Confiança na Filantropia – que conceito é este?). Como vimos, à semelhança das organizações lucrativas, as OSFLs também precisam ter liberdade para divulgarem o trabalho que fazem, captarem novos financiadores e parceiros, inovarem para poderem fazer mais e melhor. Sem dúvida, a doação baseada em projeto e prestação de contas dos resultados representou um avanço no campo da filantropia. Mas a doação baseada na confiança, como fez Mackenzie Scott para organizações brasileiras (cuidadosamente) selecionadas, irá permitir vôos mais altos em prol das causas sociais dessas organizações – a esse respeito, sugiro conhecer a experiência do Vetor Brasil, uma das ONGs beneficiadas.
- Desenvolver e fortalecer a estrutura interna e a capacidade de funcionamento das organizações filantrópicas. Entender que só assim elas terão condições de realizar um trabalho social sólido, sustentável e capaz de gerar mudanças, e aqui miro nos exemplos do Amigos do Bem, CIEDS, e o Sistema Divina Providência. Entender que, quando nós (filantropos) doamos, a parcela dedicada ao overhead (custos indiretos) não está sendo extraviada da finalidade desejada, mas está garantindo a qualidade e a perenidade desse atendimento.
- Desenvolver parcerias com outras organizações atuando em um mesmo território ou causa social (sejam elas do setor filantrópico ou privado lucrativo ou público), de modo a poder criar complementaridades e sinergias e propiciar um atendimento mais abrangente e sustentável das necessidades do público-alvo. A ideia é ir na direção do impacto coletivo quando esse tipo de atuação no território fizer sentido e for viável. No Brasil temos ainda poucas iniciativas filantrópicas que já vêm buscando essa atuação integrada e coordenada nos territórios, como as do ICOM / Grande Florianópolis, Fundação Tide Setúbal / Zona leste de SP , Programa do IDIS / Transformando territórios.