Fundos Patrimoniais Filantrópicos: questões para debate

Por on 20/02/2020

Há exatamente uma semana, assisti no BNDES, aqui no Rio de Janeiro, ao evento do lançamento do livro  organizado pelo IDIS,  ´Fundos Patrimoniais Filantrópicos: sustentabilidade para causas e organizações`.  De imediato, comemorei o fato de um evento relacionado ao terceiro setor ser realizado no Rio, pois ultimamente  o mundo do terceiro setor parece que só existe em São Paulo…..

Devo deixar claro que sou uma entusiasta em prol da expansão dos Fundos Patrimoniais no Brasil.  Há um ano atrás, após a promulgação da Lei 13.800 de 04.01.2019, escrevi um artigo [ Fundos patrimoniais: vão mudar a cultura da doação no Brasil? ]   buscando entender o que são fundos patrimoniais, o seu histórico em outros países, a sua relação com a cultura da doação no Brasil e os desafios.  Para quem leu esse meu artigo, deve ter ficado claro como eu via de forma esperançosa a ligação virtuosa entre essa regulamentação dos fundos patrimoniais advinda da nova Lei e a expansão da cultura da doação no Brasil.

Após esse evento no BNDES, eu me vi levantando alguns questionamentos, do tipo “fora da caixa”, sobre a real possibilidade dos brasileiros ricos virem a adotar a estratégia dos fundos patrimoniais, no seu desejo de contribuírem efetivamente para mitigar os graves problemas de pobreza e exclusão social do país. Abaixo algumas ponderações e questionamentos nesse sentido.

  1. Na realidade, o foco da Lei 13.800, tão comemorada pelas organizações do terceiro setor (privadas, sem fins lucrativos) no Brasil, foram as instituições públicas. Como vem explicitado na própria chamada da Lei, o objetivo dela foi o de “autorizar a administração pública a firmar instrumentos de parceria e termos de execução de programas, projetos e demais finalidades de interesse público com organizações gestoras de fundos patrimoniais”. Os Fundos Patrimoniais, diga-se de passagem, são constituídos basicamente por doações privadas filantrópicas de recursos ou bens.

Assim, desde 2011, algumas organizações think-tanks do terceiro setor no Brasil já vinham trabalhando no desenvolvimento do modelo dos fundos patrimoniais, porém sem sucesso para a implementação da lei. O incêndio do Museu Nacional do Rio, em setembro de 2018, foi o estopim para rapidamente adaptar esse modelo para viabilizar a captação de recursos do setor privado para o apoio a instituições públicas (no caso, o Museu Nacional, patrimônio histórico fortemente destruído pelas chamas) e aprovar,  primeiro, a MP 851, de set. 2018, e depois a Lei 13.800 .

Parece-me que, não por outra razão, o evento do (2º) lançamento desse  livro organizado pelo IDIS foi trazido pelo BNDES para o Rio de Janeiro. O BNDES, como órgão do governo federal de financiamento do desenvolvimento econômico e social, passou a querer ser percebido também como parceiro do terceiro setor para estimular a mobilização de recursos para os Fundos Patrimoniais Filantrópicos.

Vejo com certo ceticismo essa aproximação das instituições do terceiro setor com o BNDES na defesa dos Fundos Patrimoniais, podendo, inclusive, surtir efeito negativo de afugentar os filantropos. Filantropia é filantropia; governo é governo. São macro-setores distintos, com lógicas diferentes de atuação, porém ambos devendo contribuir a seu modo “para fazerem o que a sociedade precisa”.  Se o setor público carece de recursos imediatos para cobrir emergências e desastres e não está conseguindo, como ficou claro nesse caso do  Museu Nacional, há que se tomar medidas internas em prol de uma gestão pública mais dinâmica, e não se “embaralhar” com os outros setores (privado e terceiro setor) na busca da solução. Pois há o sério risco de criar conflitos e ineficiências, piorando o que já estava ruim.

  1. São citadas duas vantagens dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos (FPF) em relação às Doações. Primeiro, como nos FPF são os rendimentos do “principal” doado que vão ser direcionados para a causa ou a organização social apoiada, então se espera que essa estratégia vai garantir segurança financeira perene para os beneficiários e o sentido de legado para os benfeitores. E, segundo, como no modelo dos FPF há regras explícitas de governança e funcionamento, então o filantropo vai ter  a garantia de que o recurso doado será aplicado segundo a sua vontade.

Será que na prática essas vantagens atribuídas aos Fundos Patrimoniais Filantrópicos vão se verificar de fato para a grande maioria dos filantropos? Ou correspondem a desejos do modelo?  Ou só vão funcionar apenas para os mega-filantropos?

Outra questão: será que os filantropos e/ ou seus familiares vão ter esse poder de influenciar / acompanhar as decisões do Conselho de Administração da Organização Gestora do Fundo Patrimonial para o qual eles alocaram os recursos?  Não é o que ocorre atualmente no caso dos investidores em geral de Fundos do mercado financeiro brasileiro (nesse caso, eles apenas são informados sobre como os seus recursos estão sendo aplicados. E, se não está conforme eles desejam, resgatam o título).  A menos, é claro, quando  eles têm participação majoritária na composição dos Fundos.

Mais outra questão: a organização ou a causa social que, por diferentes motivos,  “atrai” o filantropo hoje ou no curto prazo, muito provavelmente não será  a mesma no médio e/ou longo prazo. E é natural que assim seja, porque os contextos mudam e a dinâmica das organizações também. Da mesma forma, o filantropo ou ficou muito idoso ou já faleceu, e os herdeiros já são outras pessoas com motivações distintas. Então, não seria essa garantia do desejo do filantropo atendido uma mera ilusão?  Ademais, o legado da família cai no campo da história, desprovido de qualquer emoção, só contagiando até a 2ª geração dos herdeiros…..

  1. Considerando a abordagem mais ampla das doações, uma possível alternativa que precisa ser estimulada no Brasil, em paralelo aos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, é a estratégia do apadrinhamento. Vem sendo adotada no Brasil por relativamente poucas organizações do terceiro setor, e de forma duradoura. Por exemplo, há mais de 30 anos eu sou madrinha do Fundo Para Crianças (ChildFund Brasil); comecei ainda quando adolescente, e era o meu pai quem pagava a mensalidade em meu nome.

Como os Fundos Patrimoniais Filantrópicos, o apadrinhamento também tem a vantagem de gerar segurança financeira para a instituição social apoiada. E, para além do que ocorre com os Fundos Patrimoniais, nessa relação direta entre Padrinho Filantropo e  a(s) Instituição(ões) Apoiada(s), as chances são maiores de o Filantropo se envolver na gestão direta da organização, de modo a conseguir acompanhar / atuar  no andamento do trabalho desenvolvido e nos resultados alcançados.

Como se depreende da Lei 13.800/2019 e do livro coordenado pelo IDIS, a estrutura de governança de um Fundo Patrimonial Filantrópico é por demais complexa e onerosa, ainda correndo o risco de engendrar procedimentos burocráticos e demorados. A meu ver,  a estratégia do Fundo Patrimonial Filantrópico pode ter boa chance de funcionar para os extremamente ricos no Brasil, com benefícios para ambos os lados – benfeitores e instituições beneficiadas (Fundo Patrimonial constituído por um único ou poucos filantropos).

Já em relação aos ricos e à classe média alta que desejam fazer filantropia, não será que a estratégia do apadrinhamento teria mais chances de ser bem sucedida (para ambos os lados), além de ter uma estrutura de governança bem mais simples e direta do que os Fundos Patrimoniais Filantrópicos?

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MARIA CECÍLIA PRATES RODRIGUES
Rio de Janeiro - Brasil

Maria Cecília é economista e mestre em economia pela UFMG, e doutora em administração pela FGV /Ebape (RJ). A área social sempre foi o foco de suas pesquisas durante o período em que esteve como pesquisadora na FGV , e depois em seus trabalhos de monitoria, consultoria, pesquisa e voluntariado.